No mundo do Tio Patinhas: memórias de histórias aos quadradinhos em que o dinheiro surge, literalmente, nas imagens |
A maior parte das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. O que justifica uma pergunta sobre o nosso mundo iconográfico: como é que as imagens representam (ou não) o dinheiro? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Julho).
Tenho saudades do Tio Patinhas, confesso. Nas histórias aos quadradinhos (a classificação aristocrata de “BD” estava por inventar), não era das minhas personagens preferidas. Mas não quero arranjar desculpas: é bem provável que a sua avareza militante tenha corrompido de modo irremediável a minha frágil mente infantil, educando-me para uma convivência perversa com o dinheiro. Seja como for, nunca possuí a quantidade suficiente de moedas e notas, já para não falar de lingotes de ouro, que me levasse a compreender a sua relação com o dinheiro e, sobretudo, as bizarras componentes dos respectivos prazeres e tormentos.
De facto, ele nadava em dinheiro. Literalmente: sozinho ou na companhia dos atónitos sobrinhos (pobres crianças…), o Tio Patinhas dava mergulhos no seu tesouro, por vezes em pose de feliz veraneante, deslocando-se num pitoresco barco a remos. Com o passar dos anos, tendo falhado a minha carreira de milionário, tornei-me um intelectual. O que, com resultados certamente desiguais e discutíveis, me leva a conceptualizar os eventos mais díspares, discutindo de modo potencialmente infinito as suas significações. Ou seja, o Tio Patinhas legou-me uma herança iconográfica que muito prezo: o dinheiro ainda acedia ao mundo das imagens, era possível representá-lo nas imagens.
BACON [site oficial] |
A questão complica-se face ao desigual tratamento mediático do dinheiro ganho por determinadas personalidades públicas. Assim, o país pode ser abalado por homéricos debates em torno de alguns milhares de euros auferidos por alguém que, melhor ou pior, desempenha um cargo oficial. O certo é que uma qualquer personalidade do mundo do futebol pode ser paga em milhões sem que tal situação desencadeie o mais ténue torpor social.
Lembram os mais sensatos que aquilo que é pago com o dinheiro dos contribuintes não se pode confundir com o universo dos negócios privados. Assim será, mas permito-me dar conta do meu cepticismo face a tal racionalização. Não porque tenha qualquer dúvida em relação à legitimidade e transparência de tais negócios. Antes porque seria interessante enriquecer o debate e perguntar quem paga os dinheiros de que o futebol se alimenta: as quotas de sócios, os bilhetes dos estádios, as assinaturas de televisão por cabo, os produtos promovidos nas camisolas dos jogadores, as próprias camisolas dos jogadores, etc. Dir-se-ia que, face ao Estado, o cidadão comum é um contribuinte; quando financia um clube de futebol, passa a ser um anjo da guarda.
GODARD [Vogue Paris] |
Algo de semelhante se poderá dizer a propósito da circulação do dinheiro. Afinal de contas, o dinheiro somos nós: o essencial das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. No universo das imagens, seria interessante, por exemplo, mostrar as moedas e as notas que fazem um salário mínimo, colocando ao lado as moedas e as notas ganhas por alguns profissionais de futebol. Entenda-se: não por qualquer suspeita ou insinuação malévola. Apenas para termos uma outra perspectiva sobre o mundo à nossa volta.