quinta-feira, julho 23, 2020

Beatles, contracultura & cinema

Pouco tempo antes da ruptura:
Ringo Starr, Paul McCartney, George Harrison e John Lennon (e também Yoko Ono)
no estúdio de gravação de Let it Be
As memórias cinematográficas de Let it Be, o álbum final dos Beatles, vão ser revisitadas pelo realizador Peter Jackson: será o reencontro com um tempo em que os filmes e a música rock mantinham uma riquíssima relação criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho).

Correm mundo as notícias sobre o adiamento das estreias das grandes produções norte-americanas que estavam agendadas para esta temporada de Verão. E compreende-se que assim seja: está em jogo toda uma temporada de distribuição/exibição.
Podemos (e creio que devemos) repensar, de forma crítica e construtiva, o estado das coisas nos mercados cinematográficos. Seja como for, não será possível satisfazer tal desígnio sem reconhecer que a globalização gerou uma interdependência perversa: a rentabilização dos maiores investimentos dos estúdios dos EUA tornou-se indissociável dos países estrangeiros; o que quer dizer também, de acordo com as regras vigentes, que a maior parte das salas desses países necessitam dos títulos americanos para garantir a sua sobrevivência.
Vasta e complexa questão, sem dúvida, que vale a pena observar e continuar a discutir. Em todo o caso, podemos também lembrar que não foram apenas os chamados “blockbusters” (incluindo a nova realização de Christopher Nolan: Tenet) a serem atingidos pela reconversão dos calendários de distribuição imposta pela pandemia. Um dos exemplos a reter será The Beatles: Get Back, o documentário sobre as gravações do álbum Let it Be, dos Beatles, refeito por Peter Jackson — inicialmente marcada para 4 de Setembro, a sua estreia foi transferida para 27 de Agosto de 2021.
Documentário refeito? Enfim, é uma forma de dizer. O que sabemos é que Jackson, por certo bem distante da lógica criativa e industrial que o levou a produzir e realizar a trilogia de O Senhor dos Anéis (2001-2003), fez um trabalho que será uma espécie de versão alargada de um outro filme que se chama, justamente, Let it Be, realizado por Michael Lindsay-Hogg e lançado na maior parte dos países europeus há precisamente meio século, no Verão de 1970. Aliás, está prevista a sua reposição, em cópia restaurada, a par do lançamento de The Beatles: Get Back.
Obviamente, Let it Be, o filme, ficou indissociavelmente ligado ao luto pelo fim dos Beatles, vivido na avalanche do ano de 1970: o lançamento de Let it Be, o álbum, a estreia do filme e o aparecimento do primeiro álbum a solo de Paul McCartney (aliás, repetindo um “desvio” já consumado pelos outros elementos da banda), tudo isso aconteceu no espaço de poucas semanas. O filme foi mesmo encarado por muitos, e antes do mais pelos próprios Beatles, como o registo incómodo de uma separação.
Convenhamos que tal visão é discutível, não só pelo carinho com que Michael Lindsay-Hogg filma o quarteto, mas também porque o filme inclui o célebre mini-concerto no telhado dos estúdios Apple, numa tarde fria de Janeiro de 1969. O certo é que, com o passar dos anos (em que Let it Be nem sequer teve direito a uma edição em DVD), os sobreviventes dos Beatles foram encarando a hipótese de fazer alguma coisa com o material filmado que não foi utilizado. Na prática, garantem as notícias, são 55 horas de película (além de 140 horas de audio) que Jackson teve à sua disposição.
O regresso a Let it Be, através de The Beatles: Get Back, será uma revisitação de um tempo em que o cinema, e não a televisão (faltava mais de uma década para nascer a MTV), mantinha uma relação forte com o universo do rock. Basta lembrar que 1970 foi também o ano de dois marcos dessa relação. O primeiro, Woodstock, de Michael Wadleigh, já teve a sua efeméride. O outro, Gimme Shelter, tem assinatura dos irmãos Albert e David Maysles, em colaboração com Charlotte Zwerin, e regista a digressão americana dos Rolling Stones em 1969, culminando no célebre e trágico concerto de Altamonte.
São referências cinematográficas que participam desse imenso movimento da década de 60, recheado de energias contraditórias, que entrou para a história como “contracultura”. E se é verdade que as suas singularidades não admitem qualquer paralelismo automático com dados do nosso presente, não é menos verdade que estes são filmes capazes de nos ajudar a reflectir sobre um tema fascinante. A saber: as potencialidades de relação entre o cinema e as convulsões da música popular.