segunda-feira, julho 27, 2020

Salazar, 50 anos depois

[Wikipedia]
>>> Como é que o país encarou a morte de Salazar?
Nunca há ‘o país’. Só nos concursos tipo Big Brother, as apresentadoras ou apresentadores dizem «os Portugueses decidiram!» ou «os Portugueses escolheram!». E os demagogos, também dizem essas coisas. Havia os que seguiam e respeitavam Salazar e os que o detestavam e odiavam. Alguns quase paranoicamente. Ainda existem essas duas espécies. Mas houve, em geral, o sentimento de que era o fim de uma época.

1. Esta é uma resposta dada por Jaime Nogueira Pinto [numa entrevista a Luís Claro, semanário Sol], cujo precioso didactismo importa sublinhar. Ou seja: por uma vez, além (ou, talvez, melhor: aquém) das especificidades de um ponto de vista, alguém postula a necessidade intelectual de não ceder a grosseiras generalizações que apenas nos enredam nos conflitos mais equívocos e paralisantes.

2. Observe-se o que aconteceu com a recente paranóia dos debates "sobre" o racismo, tantas vezes condensada num miserável maniqueísmo: "Portugal é ou não é um país racista?" — como se a complexidade dos problemas, seja qual for a respectiva natureza, política, social ou simbólica, se superasse através de respostas pueris a abstracções de coisa nenhuma.

3. Meio século depois da morte de Salazar (a 27 de Julho de 1970), a questão persiste. Se a herança do salazarismo nos acompanha, continua a acompanhar, como uma espécie de fantasma em relação ao qual mantemos alguma distância, prudente ou envergonhada, creio que isso resulta, em parte, da incapacidade de o olharmos e pensarmos como matéria, não de uma história que acabou, milagrosamente, com a dádiva que recebemos do MFA, mas sim da nossa história — próxima ou distante.

4. Não poucas vezes, deparamos com um discurso de piedoso recalcamento, explícito ou induzido, segundo o qual a dimensão democrática do nosso viver poderia dispensar, ou até rasurar, tudo o que aconteceu ao longo de uma ditadura de quase meio século. Com frequência encontro essa postura em pessoas da minha geração — os que, genericamente, viveram a adolescência nas décadas de 60/70 — que parecem sentir a necessidade de descrever (?) a nossa existência juvenil como um estado amorfo em que tínhamos até medo de colocar um pé na calçada, como se nada tivesse acontecido na nossa clausura sem alternativa: para eles, não houve nada, nem Camões, nem Beatles, nem Lawrence da Arábia, nem o teatro de revista... Só saíram à rua no dia 25 de Abril de 1974.

5. Ao fazer o seu admirável Hitler, Um Filme da Alemanha (1977), Hans-Jürgen Syberberg reagiu aos que o acusavam de representar o horror nazi de forma não-naturalista, lembrando que o seu trabalho não era "descritivo", em sentido convencional, mas sim sobre a herança alemã do nazismo, isto é, Hitler em nós. No contexto português, há todo um circuito de memórias de Salazar em nós que muitos continuam a tratar como matérias inefáveis vividas por "outros". Não tenho nenhuma solução mágica para lidarmos com tais memórias e a perturbação que arrastam. Em todo o caso, atrevo-me a pensar que o mascaramento da dificuldade de as enfrentarmos fragiliza os elos com as gerações que nos seguiram. Os outros somos nós.