segunda-feira, abril 13, 2020

50 anos depois do fim dos Beatles
— memórias e nostalgia

Foi a 10 de Abril de 1970 que o mundo ficou a saber que não haveria mais nenhum álbum editado pelos quatro de Liverpool: meio século depois, as memórias cruzam-se com a possibilidade de voltarmos a poder ver o filme sobre as gravações de Let it Be, o disco final — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Abril).

Acertemos o calendário: os Beatles acabaram há 50 anos. E se há assunto em relação ao qual podemos e devemos aceitar as dores da nostalgia, esse assunto é os Beatles.
Afinal de contas, nos pátios de liceus e escolas secundárias, mas sobretudo através dos fundamentais gira-discos caseiros, o ano de 1970 foi vivido como uma longa e amarga viagem de decomposição do quarteto de Liverpool, repartida por episódios paradoxais, entre as ilusões da adivinhação e a contundência dos factos. Se necessitamos de uma espécie de ponto de fuga emocional para que a história faça algum sentido (se é que continuamos a acreditar que há um sentido para a história…), encontramo-lo no dia 10 de abril desse ano. Paul McCartney respondia a uma dúvida que pairava como um assombramento: “Consegue antecipar um tempo em que a dupla Lennon-McCartney volte a funcionar como uma aliança activa na composição de canções?” Desafiando os oráculos da música e da mitologia, McCartney respondeu em tom de cruel minimalismo: “Não”.
Meio século depois, sabemos também que nada mudou. Que é como quem diz: o património musical legado pela genial aliança de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr persiste como um dos mais belos capítulos da história da música popular do século XX, mesmo se não podemos deixar de revisitar, em tom de resgate afectivo, as convulsões desse ano de 1970.
A resposta negativa de McCartney entrou para a história como o fim oficial dos Beatles (e, na prática, como tal funcionou), mas nem sequer foi dada numa intervenção pública em que se abordasse tal possibilidade. Em boa verdade, tratou-se daquilo que o marketing costuma chamar uma “auto-entrevista”: McCartney pediu a Peter Brown, da editora Apple, que lhe preparasse um questionário, não exactamente sobre o futuro dos Beatles, antes para divulgar o seu primeiro álbum a solo, intitulado McCartney. O seu lançamento estava marcado para uma semana mais tarde, 17 de abril — e assim aconteceu.
Na prática, a aventura discográfica de McCartney sem os outros Beatles estava longe de ser um acto isolado. Em finais de 1968, Lennon já lançara Unfinished Music No. 1: Two Virgins, o seu primeiro registo experimental com Yoko Ono, seguindo-se Unfinished Music No. 2: Life with the Lions e Wedding Album, ambos em 1969. Harrison também assinara dois álbuns a solo: Wonderwall Music (1968) e Electronic Sound (1969), enquanto Ringo, cerca de duas semanas antes do “anúncio” de McCartney, se estreara com Sentimental Journey. Isto sem esquecer que, em finais de 1970, Harrison e Lennon editariam ainda, respectivamente, All Things Must Pass e John Lennon/Plastic Ono Band, obras decisivas na sua afirmação independente.
Convenhamos que já andávamos todos inquietos com a energia criativa dos Beatles — sendo, neste caso, a inquietação um sinónimo de redobrado fascínio. O lendário “Álbum Branco”, lançado em finais de 1968, impôs-se como esplendorosa expressão de tal conjuntura artística e mitológica. Com um primeiro paradoxo que, também ele, ficou para a história: a designação “Álbum Branco” resultou tão só da austeridade da sua capa, de uniforme branco leitoso, mas o seu verdadeiro título era… The Beatles.
Como vivia, então, o quarteto? Em ambiente de muitos conflitos, explícitos ou latentes, contaminados por dois peculiares eventos: primeiro, a agitada e, em muitos aspectos, frustrante viagem à Índia para conhecerem um santuário de meditação transcendental; depois, o crescente envolvimento de Yoko Ono na vida e na obra de Lennon (casaram-se em 1969).
O “Álbum Branco” é um duplo LP nascido de tal ambiente. Nele encontramos uma incrível colecção de disparidades, da alegria pop de Ob-La-Di, Ob-La-Da ao intimismo de While My Guitar Gently Weeps, passando pelo experimentalismo de Revolution 1 e Revolution 9 [video]. Mais tarde, Lennon diria mesmo que “não há música dos Beatles” no álbum, já que cada canção foi surgindo como uma criação “individual”, segundo a fórmula: “John e a banda, Paul e a banda, George e a banda” (Ringo terá sido o mais ausente).


Este estado de coisas reflectiu-se, inevitavelmente, nos dois álbuns finais dos Beatles: Abbey Road e Let it Be. De tal modo que a sua chegada às lojas não correspondeu à agenda de gravação da maior parte das suas canções: o primeiro surgira a 26 de setembro de 1969; Let it Be, quase todo registado antes de Abbey Road, passou por um atribulado período de misturas e remisturas, com intervenção do produtor americano Phil Spector (suscitando o veemente desagrado de McCartney), e foi posto à venda a 8 de maio de 1970 — um mês antes, McCartney tinha-nos feito saber que aquela banda já não existia…
Let it Be esteve para se chamar Get Back, a canção editada como primeiro single do álbum [video], posto à venda a 11 de abril de 1969 — chegou mesmo a existir um projecto de capa como Get Back, mas com o envolvimento de Spector prevaleceu a designação Let it Be. O derradeiro single dos Beatles, lançado a 11 de maio, seria The Long and Winding Road, título que adquiriu a inesperada força de um encerramento simbólico (à letra: “A estrada longa e sinuosa”).
O certo é que o capítulo final da discografia dos Beatles nascera pontuado por uma ideia de renovação e relançamento, isto é, pela possibilidade de a banda regressar aos concertos ao vivo. A sua derradeira actuação pública ocorrera nos EUA, a 29 de agosto de 1966, no estádio de Candlestick Park, em São Francisco. McCartney, em particular, mostrava-se seriamente empenhado em tal possibilidade — rezam as crónicas que os outros três, sobretudo Harrison, estavam longe de partilhar o seu entusiasmo.
Ironicamente, Let it Be ficaria associado ao mais peculiar concerto de toda a história dos Beatles, uma performance francamente atípica, cuja sedução a passagem do tempo apenas reforçou. Acabou por ser uma maneira de resolver as desencontradas opiniões sobre um possível local para o reaparecimento do grupo ao vivo: aconteceu a 30 de janeiro de 1969, no telhado dos estúdios Apple, em Londres, com o quarteto a ser acompanhado nas teclas por Billy Preston, que já participara nas gravações em estúdio.
Foi um agitado princípio de tarde, marcado pela atmosfera invernosa e , a certa altura, o aparecimento de elementos da central de polícia de West Wend, alertada pela multidão que começava a formar-se em frente ao nº 3 da Savile Row. Os Beatles interpretaram nove temas, incluindo cinco versões de Get Back; as “takes” de I’ve Got a Feeling, One After 909 e Dig a Pony foram mesmo escolhidas para integrar o alinhamento final do álbum [video: Don't Let me Down].


Para a história, o concerto no telhado da Apple ficou registado em filme pelo americano Michael Lyndsay-Hogg, ele que era já um especialista de performances musicais, tendo gravado vários pequenos filmes (a noção de “teledisco” só surgiria no começo da década de 80, com a MTV) para canções dos Beatles e Rolling Stones. Lyndsay-Hogg tinha por missão acompanhar com as suas câmaras as gravações do álbum — o que aconteceu, desde logo, nas sessões nos estúdios (cinematográficos) de Twickenham —, visando a elaboração de uma longa-metragem destinada às salas escuras. Do seu trabalho nasceu o filme Let it Be, lançado no Reino Unido a 20 de maio de 1970 (entre nós exibido com um título bizarro: Improviso).
Se Let it Be, o álbum, veio a adquirir o peso simbólico de um involuntário testamento, Let it Be, o filme, possui o ambivalente fascínio de um genuíno documento sobre o trabalho musical: por um lado, nele descobrimos as canções em estado nascente, incluindo uma tocante “take” de Let it Be (não usada no álbum), interpretada por um admirável Paul McCartney, ao piano, em pose de transparente tristeza; por outro lado, pelos olhares e gestos, mesmo nos momentos de maior harmonia musical, circulam sinais dispersos das clivagens interiores que o futuro próximo iria confirmar.
Let it Be é um dos títulos mais esquecidos da filmografia dos Beatles (há muito desaparecido dos circuitos de difusão), eles que inventaram o seu próprio modelo de musical cinematográfico, graças à direcção do magnífico Richard Lester nas longas-metragens A Hard Day’s Night (1964) e Help! (1965). A boa notícia é que Let it Be deverá reaparecer em paralelo com um outro filme dirigido por Peter Jackson. O novo projecto, intitulado The Beatles: Get Back, será construído a partir das gravações do álbum, ou seja, nada mais nada menos que 55 horas de material filmado por Lyndsay-Hogg e mais de 140 horas de audio.
O projecto envolve a reposição de Let it Be, em cópia restaurada, logo a após a estreia de The Beatles: Get Back, prevista para 4 de setembro. Será que a situação de pandemia, que tem afectado todos os domínios da actividade cinematográfica, vai permitir cumprir tal calendário? Ninguém sabe… De uma maneira ou de outra, são intensas e indeléveis as memórias dessa época em que ficámos a saber que já não poderíamos comprar um novo disco dos Beatles. Resta-nos esperar, pacientemente. Ou, como se canta em Let it Be, “sussurrar palavras de sabedoria”.

>>> Let it Be (remasterização de 2009).


>>> Paul McCartney com James Corden (Junho 2018).


>>> Os Beatles na Enciclopédia Britânica.