sábado, novembro 30, 2019

Quantos Oscars pode ganhar "O Irlandês"?

Harvey Keitel, Joe Pesci, Robert De Niro, Martin Scorsese e Al Pacino
Com O Irlandês, de Martin Scorsese, a plataforma Netflix tem por sua conta um dos grandes filmes dos últimos tempos. Apostar no filme para os Oscars principais será, obviamente, um objectivo fundamental: resta saber quais os efeitos das discussões em torno de circuitos tradicionais e plataformas de “streaming” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro).

O menos que se pode dizer do novo filme de Martin Scorsese, O Irlandês, sobre as relações entre o sindicalismo americano e a mafia nos tempos de Jimmy Hoffa, é que estamos perante um dos grandes acontecimentos cinematográficos de 2019. Ao mesmo tempo, o facto de, em muitos países (incluindo Portugal), só poder ser visto na Netflix coloca-o no centro de um debate actualíssimo. A saber: quais as relações que se podem estabelecer entre os circuitos clássicos das salas e as plataformas de “streaming”? Ou ainda: como equilibrar os interesses legítimos das entidades envolvidas neste processo, sem excluir qualquer modelo de consumo do cinema?
No plano simbólico, é óbvio que, para a Netflix, O Irlandês pode vir a ser um inestimável trunfo de prestígio. Como? Se conquistar o Oscar de melhor filme de 2019 (a atribuir na cerimónia da Academia de Hollywood marcada para 9 de Fevereiro de 2020).
Em boa verdade, tratar-se do renovar de uma estratégia ambiciosa que, há cerca de um ano, já foi protagonizada por outro título forte da Netflix: Roma, de Alfonso Cuarón. O filme não conseguiu arrebatar o prémio máximo, mas ganhou em três categorias importantes: filme estrangeiro, realização e fotografia (este último, também para Cuarón).
É sabido que, no interior da Academia, há vozes discordantes sobre o facto de os filmes gerados pelas plataformas de “streaming” poderem concorrer a par daqueles que nascem das tradicionais estruturas de produção — Steven Spielberg tem sido uma dessas vozes, e das mais veementes. Seja como for, não parece possível que um filme com a riqueza temática e o fôlego dramático de O Irlandês, para mais com um elenco liderado por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, possa ficar fora das nomeações em muitas categorias.
Para além do Oscar de melhor filme do ano, eis cinco dessas categorias em que os trunfos de O Irlandês são especialmente fortes:
* REALIZAÇÃO: escusado será lembrar que Martin Scorsese é um dos realizadores mais respeitados no interior do sistema de Hollywood. A polémica sobre as produções Marvel em que tem estado envolvido (considerando que os respectivos produtos “já não são cinema”) não abalou essa posição e é bem possível que ele arrecade a sua segunda estatueta dourada nesta categoria, treze anos depois do triunfo com The Departed - Entre Inimigos (que foi também consagrado como melhor filme de 2006).
* ACTOR: será difícil, mas por certo não impossível, que Robert De Niro e Al Pacino sejam ambos nomeados nesta categoria. Aconteça o que acontecer, já foram “oscarizados”: De Niro como actor secundário em O Padrinho: Parte II (1974), de Francis Ford Coppola, e principal em Touro Enraivecido (1980), também de Scorsese; Pacino como actor principal em Perfume de Mulher (1992), de Martin Brest.
* FOTOGRAFIA: o director de fotografia de O Irlandês, o mexicano Rodrigo Prieto, é um dos grandes mestres das imagens no cinema contemporâneo. Esta é a sua terceira colaboração com Scorsese, depois de O Lobo de Wall Street (2013) e Silêncio (2016); este último valeu-lhe uma nomeação, a segunda da sua carreira, mas nunca ganhou.
* MONTAGEM: Thelma Schoonmaker é, há mais de três décadas, a fundamental colaboradora de Scorsese nas tarefas de montagem. Com os seus filmes ganhou três Oscars: Touro Enraivecido (1980), O Aviador (2004) e The Departed - Entre Inimigos (2006). A complexidade narrativa de O Irlandês, tecida a partir de um verdadeiro labirinto temporal, coloca-a na linha da frente para vencer nesta categoria.
* CARACTERIZAÇÃO ou EFEITOS VISUAIS: eis um dos enigmas que o próprio filme instala na definição institucional dos prémios. Assim, como tem sido amplamente noticiado, para interpretarem as cenas do passado, os actores principais foram “rejuvenescidos” através de efeitos especiais (em particular no rosto). Nas entrevistas sobre o filme, Scorsese, De Niro e Pacino têm insistido numa ideia muito pragmática, afinal plena de lógica: trata-se apenas de uma nova forma de maquilhagem… Sem dúvida, mas quando essa maquilhagem resulta também de elaboradas manipulações digitais, em que área dos Oscars fará sentido inserir o respectivo trabalho? O simples facto de a pergunta surgir é revelador da dimensão experimental que O Irlandês também tem.

sexta-feira, novembro 29, 2019

A purificação do YouTube

READY PLAYER ONE [2018]
Como é que as formas de violência surgem tratadas nas imagens do mundo virtual, nomeadamente no YouTube? Eis uma velha questão que importa enfrentar para além de qualquer oposição maniqueísta entre “jogo” e “realidade” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Novembro).

Na quinta-feira, dia 21, Susan Wojcicki, CEO do YouTube, publicou a sua “última carta de 2019”, fazendo um balanço do ano da plataforma de partilha de videos a que preside. Reforçando o que já escrevera em agosto (estas são comunicações trimestrais), lembrou que persiste uma prioridade na gestão de conteúdos do YouTube: "conseguir o equilíbrio correcto entre abertura e responsabilidade”.
A apresentação de Wojcicki possui o mérito de não escamotear os muitos e complexos problemas que têm sido suscitados pelo funcionamento das redes classificadas como “sociais”. Afinal, pelo menos desde o escândalo Cambridge Analytica (com o Facebook a “ceder” informações de milhões de utilizadores, sem o seu consentimento expresso, para utilizações de propaganda política), desagregou-se o mito virginal da circulação de informação: tudo o que circula participa da nossa percepção do mundo.
Depois de abordar questões tão complexas como a gestão dos direitos envolvidos na difusão de conteúdos musicais, Wojcicki dedica um breve parágrafo a uma velha questão: as imagens que dão a ver actos violentos, ou melhor, o acesso a essas imagens. "Velha questão” porque a sua abordagem está há muitos anos contaminada pelas cruzadas dos que, ciclicamente, despertam para a figuração de “sexo e violência”, visando as formas de ficção (cinematográfica e televisiva), ao mesmo tempo que cultivam um silêncio comprometedor face ao horror normativo do comportamento humano, em particular no domínio da sexualidade, todos os dias difundido pela “reality TV”.
Vale a pena citar na íntegra o parágrafo de Wojcicki: “Quanto aos criadores de jogos, ouvimos alto e bom som que as nossas regras necessitam de estabelecer uma diferença entre a violência do mundo real e a violência dos jogos. Brevemente, isso mesmo acontecerá através de uma actualização da nossa política. A nova política terá menos restrições para a violência nos jogos, mas manterá a nossa fasquia bem alta no sentido de proteger as audiências da violência do mundo real.”
Eis um enunciado que, perversamente, participa da “naturalização” do universo hiper-tecnológico em que vivemos. Não se trata, entenda-se, de pôr em causa a boa fé seja de quem for, nem de escamotear que a boa saúde do YouTube implica lidar com as suas inevitáveis convulsões figurativas. Resta saber se semelhante programa de purificação — enraizado numa dicotomia moralista entre o mundo “real” e o universo do “jogo” — nos conduz a algo mais do que uma visão beata da tecnologia e dos seus “malefícios”.
Triunfa, aqui, uma visão do cidadão concreto, não como aquele que é a peça fulcral dos referidos processos de abertura e responsabilização, antes como um peão abstracto que a própria tecnologia se deverá encarregar de “proteger”. Assim se reforça o quotidiano processo de infantilização dos consumidores: venham a nós, que não os deixaremos cair em tentação...
Ao mesmo tempo, assim se exclui de qualquer responsabilidade a poderosíssima indústria dos jogos. Será, então, importante “regular” a figuração da violência nos produtos dessa indústria? Essa é, quase sempre, a hipótese normativa sustentada pela classe política. Sempre com o mesmo efeito: excluir de qualquer reflexão (social, precisamente) que os jogos não são o contrário do mundo real, mas sim dispositivos que encenam e reencenam esse mundo real, contaminando a visão que milhões de cidadãos, jovens e menos jovens, vão elaborando de assuntos tão díspares como os combates com metralhadoras ou os gestos técnicos de Ronaldo e Messi.
Curiosamente, a discussão das formas de profilaxia sustentadas pela CEO do YouTube começa no interior da própria cultura “made in USA”. Veja-se ou reveja-se o filme Ready Player One (2018), de Steven Spielberg. O que nele se encena não é exactamente o conflito do “jogo” com a “realidade”, mas sim a morte trágica de qualquer realidade que não passe pela vertigem do jogo. Spielberg é um optimista, eu sei, mas tem a coragem de lidar com o medo.

quinta-feira, novembro 28, 2019

E.T. voltou à Terra

[1982]
Se há filmes cuja dramaturgia se instalou de modo visceral no imaginário popular, E.T., O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg, é obviamente um desses filmes. Como se prova, parece possível refazê-lo, não exactamente como sequela, antes "desviando" as suas peripécias para outro universo. A publicidade, neste caso: o novo anúncio da plataforma digital Xfinity consegue a proeza de revisitar com contagiante alegria algumas das principais linhas de força (e situações) do filme, para mais contando com o próprio intérprete de Elliott, Henry Thomas, agora com 48 anos e... chefe de família. Eis aquele que é, por certo, um dos melhores anúncios do ano.

A futilidade do IMDb
contra Martin Scorsese

1. As recentes opiniões expressas por Martin Scorsese sobre os filmes do chamado MCU (Marvel Cinematic Universe) são tudo menos irresponsáveis. Decorrem, aliás, de um profundo amor pelo cinema. O que ele discute está muito para além de qualquer guerra de polegares ao alto para esgotar os filmes num conflito de "bons" e "maus"... No limite, trata-se de reflectir sobre o poder devastador que os filmes da Marvel passaram a ter nos mercados de todo o mundo, chamando a atenção para a perda cultural e económica (sublinho: económica) que será o eventual esvaziamento dos valores narrativos e de consumo (sublinho: consumo) enraizados em mais de um século de história do cinema.

2. Já sabíamos que o IMDb funciona como megafone promocional dos filmes da Marvel e, de um modo geral, de todos os modelos que, com resultados melhores ou piores, estão associados ao mercado dos super-heróis. Como se isso não bastasse, agora, o site dá-se ao luxo de descontextualizar e manipular as declarações de Scorsese para as reduzir a um esquematismo estúpido e, pior um pouco, para sugerir que podemos encontrar uma avalanche de pontos comuns entre os seus filmes e os filmes do MCU.

3. A provocação pueril do IMDb vai ao ponto de argumentar (?) que, entre outras "semelhanças", o facto de as técnicas de rejuvenescimento digital dos actores terem sido previamente usadas no MCU transforma O Irlandês numa variação de matrizes... da Marvel. É como se se dissesse que todos os filmes a preto branco são descendentes directos de Citizen Kane! Só vendo (e escutando) é possível acreditar que a futilidade "informativa" tenha chegado a este cinismo — brincar com coisas sérias passou a ser a lei da cultura mediática dominante.

Piano solo [8/10]



No imaginário popular da música clássica (ou deveremos dizer imaginário clássico e falar de música popular?...), a Sonata nº 8, Op. 13, de Ludwig van Beethoven, ocupa um lugar lendário e, por assim dizer, intimista. A designação de "Patética", especialmente adequada ao belíssimo Adagio cantabile (o segundo de três andamentos), consagra a sua dimensão trágica e introspectiva, mitologicamente ligada a uma depurada maturidade — curiosamente, Beethoven tinha apenas 27 anos (viveu até aos 56) quando a compôs em 1798.
Na discografia de Daniel Barenboim, a respectiva performance é indissociável de uma das referências mais emblemáticas dos seus concertos e também da sua discografia: o seu registo integral das 32 sonatas de Beethoven (compostas entre 1795 e 1822) surgiu em 1998, com chancela da EMI.
Em 2005, em oito concertos realizados ao longo de duas semanas na Staatsoper de Berlim, Barenboim interpretou as 32 composições — eis o registo da "Patética".  

quarta-feira, novembro 27, 2019

"O Irlandês", de Martin Scorsese,
não está num cinema perto de si...

A. Não receemos a contundência das palavras: há qualquer coisa de chocante no facto de um filme tão admirável como O Irlandês, de Martin Scorsese, não poder ser visto nas salas de cinema (mesmo se teve uma projecção de imprensa realizada, precisamente, numa sala). Como é sabido, a entidade produtora do filme, a plataforma de streaming Neflix, colocou O Irlandês por um curto período em algumas salas dos EUA (não satisfazendo a ideia de um lançamento alargado, difundida no começo da respectiva produção), optando em muitos países, incluindo Portugal, por disponibilizar o filme apenas na Net.

B. Entenda-se: chocante não significa demonizar a Netflix e santificar todos os outros elementos que fazem a indústria e o mercado. Afinal de contas, é fundamental não esquecer que sem a Netflix o filme nem sequer existiria: Scorsese tentou durante mais de uma década concretizá-lo através de um grande estúdio de Hollywood, recebendo sempre respostas negativas — a Netflix, por sua vez, disponibilizou-lhe um astronómico orçamento de 159 milhões de dólares, além do mais permitindo-lhe trabalhar na mais absoluta independência criativa.

C. Chocante é o facto de se ter chegado a este impasse em que as diversas instâncias de difusão dos filmes se vão entrincheirando no seu território como se, afinal, não participassem de uma paisagem comum. Lembremos apenas o mais óbvio: o génio de Scorsese levou-o a fazer O Irlandês como um objecto de cinema, isto é, através do desejo de uma sala escura. Vê-lo apenas num ecrã caseiro não o reduz a um filme medíocre... Acontece que diminui, literalmente, as possibilidades de diversificação da sua relação com o espectador, em última instância pondo em causa as raízes económicas e e culturais de mais de um século de história do cinema.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Lisboa, um urso e uma girafa

Tendo como ponto de partida uma peça de Tiago Rodrigues, o realizador Tiago Guedes propõe-nos uma fábula real e surreal: Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é uma aventura vivida por uma menina que se chama “Girafa” e um urso de peluche que gosta de... falar em calão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro).

Ao descobrirmos agora um filme como Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, talvez seja inevitável recordar que o seu realizador, Tiago Guedes, assinou recentemente A Herdade, título marcante da mais recente produção portuguesa (candidato a uma nomeação para o Oscar de melhor filme internacional). O contraste, pleno de ironia, é sintoma de uma evidente versatilidade: se A Herdade aposta num registo de melodrama histórico ligado ao mais depurado classicismo, Tristeza e Alegria na Vida das Girafas segue os caminhos insólitos da fábula, cruzando o mais básico realismo (tudo se passa em reconhecíveis cenários lisboetas) com uma insólita pulsão fantasista.
A sinopse é, de uma só vez, estranha e sugestiva. A personagem central, uma menina que se identifica como “Girafa” (Maria Abreu), está envolvida na produção de um trabalho escolar sobre... a vida das girafas, ao mesmo tempo que mantém uma relação de proximidade e conflito com o seu urso de peluche (Tonan Quito), um boneco gigante que escapa à visão dos adultos, gosta de aplicar o calão de forma exuberante e responde pelo nome de... Judy Garland!
Que procura a protagonista? Por certo alguma forma de equilíbrio com o mundo dos adultos, de alguma maneira pontuada por uma reivindicação — ter acesso ao Discovery Channel — que o pai (Miguel Borges), militante da herança de Tchekhov, tem dificuldade em garantir-lhe. O filme desenvolve-se, assim, como uma viagem real e surreal em que as palavras desempenham um papel nuclear, até porque a “Girafa” parece empenhada em esgotar todas as nuances que o dicionário lhe oferece.
Tal importância das palavras não será estranha ao facto de estarmos perante a adaptação de uma peça homónima de Tiago Rodrigues (também intérprete do filme). Mais do que isso: sem complexos, o filme de Tiago Guedes explora os artifícios de uma teatralidade que consegue transfigurar e, de algum modo, reinventar os mais diversos cenários, desde o quarto da “Girafa” até às ruas de Lisboa.
Talvez seja inevitável reconhecer também que o jogo de contrastes que o filme explora tem os seus desequilíbrios, de tal modo é difícil cruzar o reconhecimento “naturalista” dos lugares com o apelo fantástico de uma aventura vivida por um ser humano e um urso falante. Seja como for, é o risco criativo que tudo isso envolve que, a meu ver, pode e deve ser valorizado. Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é mesmo um dos mais desconcertantes “ovnis” da mais recente produção cinematográfica portuguesa, além do mais acreditando que o espectador pode distanciar-se de qualquer “novelesca”, mostrando-se disponível para ser surpreendido. E aceder ao fascínio que a surpresa pode envolver.

Leonard Cohen
— na companhia de Cristo e Marx

E reencontramos Leonard Cohen — música para além da morte, mensagens do passado, vibração presente, sempre presente. Aí está o primeiro álbum póstumo do poeta canadiano (falecido a 7 de Novembro de 2016, contava 82 anos), com um título de serena gratidão: Thanks for the Dance. A canção Happens to the Heart chega-nos através de um esplendoroso teledisco, de uma só vez carnal e imponderável — como quem encontra Cristo e lê Marx.

I was always working steady
But I never called it art
I got my shit together
Meeting Christ and reading Marx
It failed my little fire
But it’s bright the dying spark
Go tell the young messiah
What happens to the heart

There’s a mist of summer kisses
Where I tried to double-park
The rivalry was vicious
The women were in charge
It was nothing, it was business
But it left an ugly mark
I’ve come here to revisit
What happens to the heart


I was selling holy trinkets
I was dressing kind of sharp
Had a pussy in the kitchen
And a panther in the yard

In the prison of the gifted
I was friendly with the guards
So I never had to witness
What happens to the heart

I should have seen it coming
After all I knew the chart
Just to look at her was trouble
It was trouble from the start
Sure we played a stunning couple
But I never liked the part
It ain't pretty, it ain't subtle
What happens to the heart

Now the angel’s got a fiddle
The devil’s got a harp
Every soul is like a minnow
Every mind is like a shark
I’ve broken every window
But the house, the house is dark
I care but very little
What happens to the heart

Then I studied with this beggar
He was filthy, he was scarred
By the claws of many women
He had failed to disregard
No fable here no lesson
No singing meadowlark
Just a filthy beggar guessing
What happens to the heart

I was always working steady
But I never called it art
It was just some old convention
Like the horse before the cart
I had no trouble betting
On the flood, against the ark
You see, I knew about the ending
What happens to the heart

I was handy with a rifle
My father’s .303
I fought for something final
Not the right to disagree


domingo, novembro 24, 2019

Prince na FNAC

Na nossa mais recente sessão na FNAC [23 Nov.], percorremos memórias justificadas por algumas reedições musicais (recheadas de inéditos), começando por 1999 (1982), um álbum emblemático de Prince, e passando também pelos universos de David Bowie, George Michael e Leonard Cohen. Eis alguns dos videos apresentados.

* * * * *
Próxima sessão:

SOUND+VISION Magazine
Rolling Stones: "Let it Bleed", 50 anos

Foi o último álbum dos Rolling Stones em que Brian Jones ainda participou: assinalamos os 50 anos do lançamento de Let it Bleed, evocando os caminhos criativos da banda, em estúdio e em palco.

* FNAC, Chiado — 14 Dezembro (18h30).

* * * * *
>>> Prince (Little Red Corvette) + David Bowie (Wide Eyed Boy from Freecloud 2019) + George Michael (This Is How (We Want You to Get High)).





Michael J. Pollard (1939 - 2019)

Figura bizarra, inclassificável e fascinante, foi um secundário com uma carreira irregular, mas pontuada por momentos inesquecíveis: o actor americano Michael J. Pollard faleceu no dia 20 de Novembro, em Los Angeles, vitimado por uma paragem cardíaca — contava 80 anos.
Formado no Actors Studio (foi colega de Marilyn Monroe), começou a sua carreira na televisão, tendo surgido, por exemplo, em Alfred Hitchcock Presents, The Andy Griffith Show ou The Lucy Show. A sua peculiar figura "infantil" valeu-lhe pequenos papéis em dois filmes significativos das convulsões económicas e formais da indústria ao longo da década de 60: Vêm aí os Russos, Vêm aí os Russos (1966), de Norman Jewison, e The Wild Angels (1966), de Roger Corman, este uma referência exemplar da nova produção independente.
Seja como for, foi em 1967 que Pollard interpretou o papel que ficou, para sempre, associado à sua imagem: C. W. Moss, o cúmplice nem sempre muito talentoso dos anti-heróis de Bonnie e Clyde, o par de bandidos da Grande Depressão interpretados, respectivamente, por Faye Dunaway e Warren Beatty. A realização de Arthur Penn soube transformá-lo numa personagem cuja vocação caricatural envolvia, afinal, uma desconcertante pulsão trágica — a notável composição de Pollard valeu-lhe uma nomeação para o Oscar de melhor actor secundário.
Em 1972, obteve um dos seus poucos papéis principais em Billy the Kid, História de um Patife (título original: Dirty Little Billy), por certo um dos mais brilhantes westerns "revisionistas" dos anos 60/70, encenado num tom de surpreendente realismo barroco. Vimo-lo também, por exemplo, em Melvin e Howard (1980), insólita comédia de Jonathan Demme sobre a herança de Howard Hughes, Roxanne (1987), variação moderna de Cyrano de Bergerac com assinatura de Fred Schepisi, Tango & Cash (1989), thriller quase burlesco de Andrei Konchalovsky, Dick Tracy (1990), admirável recriação da BD por Warren Beatty, e Arizona Dream (1993), comédia surreal de Emir Kusturica. Ironicamente, depois de Bonnie e Clyde, que lhe valeu também nomeações para os Globos de Ouro e os BAFTA (sem qualquer vitória), nunca mais obteve qualquer nomeação na sua carreira de mais de meio século.

>>> Bonnie e Clyde: Michael J. Pollard + Faye Dunaway + Warren Beatty.


>>> Entrevista com Skip E. Lowe, em 1990.


>>> Obituário em The Washington Post.

sábado, novembro 23, 2019

Brooklyn por Alex Webb

As cidades, seus espaços e enigmas, são tema transversal na história da agência Magnum. Eis um belo exemplo dessa lógica: Brooklyn: The City Within é o retrato íntimo de uma zona emblemática de Nova Iorque, com assinatura de Alex Webb — realismo e poesia.

Prince: 1982, 1999, 2019
— SOUND + VISION Magazine [ hoje, 23 Nov. ]

A reedição do álbum 1999 (1982), um clássico da discografia de Prince, é pretexto para viajarmos através de memórias musicais (mas também cinematográficas...) que continuam a regressar ao mercado — Leonard Cohen não será esquecido.

* FNAC, Chiado — hoje, 23 Novembro (18h30).

Jean Douchet (1929 - 2019)

Crítico de cinema, historiador, realizador, a sua personalidade é indissociável da história, da imaginação e do imaginário da Nova Vaga francesa: Jean Douchet faleceu no dia 22 de Novembro — contava 90 anos.
O obituário do jornal Le Monde chama-lhe "o último moicano de um período lendário da crítica de cinema". A designação não tem nada de pomposo nem peca por excesso de simbolismo; resume mesmo, com sugestiva precisão, o papel de Douchet como compagnon de route de Jean-Luc Godard, François Truffaut & etc., cruzando o gosto da análise crítica com o labor específico do cinema. Participou mesmo num "filme-bandeira" da Nova Vaga, Paris Visto por... (1965), assinando um dos seus seis sketches. Por essa altura, está ligado aos Cahiers du Cinéma, participando das convulsões teóricas e práticas de uma época de profunda interrogação do cinema e da sua relação com o mundo — recentemente, numa reedição com chancela da própria revista, ressurgiu L'Art d'aimer, antologia dos principais textos de Douchet para os Cahiers du Cinéma e a revista Arts.


Foi professor do IDHEC e, mais tarde, da escola que o integrou, La Fémis. A sua elaborada e elegante arte de exposição, combinando a contextualização histórica com a especulação analítica, ficou célebre através de muitas sessões públicas regulares, nomeadamente na Cinemateca Francesa (onde existe um cineclube com o seu nome) e na sala de cinema Le Panthéon, em Paris. Como realizador, assinou uma série de trabalhos sobre cineastas e diversas temáticas fílmicas, com destaque para Godard plus Godard (1985) e Eric Rohmer, preuves à l'appui (1994), este para a série "Cinéastes de notre temps".
Insolitamente, ou talvez não, cumpriu uma carreira de actor, surgindo em mais de duas dezenas de títulos, incluindo La Maman et la Putain (1973), de Jean Eustache, Céline et Julie Vont en Bateau (1974), de Jacques Rivette, e A Comédia de Deus (1995), de João César Monteiro. Na sua vasta bibliografia, encontramos um estudo sobre Alfred Hitchcock (1967), La Modernité cinématographique en question (1992) e Le Théâtre dans le cinéma (1993). Em 2011, Thierry Jousse dedicou-lhe o documentário Jean Douchet ou l'art d'aimer.


>>> 1968: diálogo Eric Rohmer/Jean Douchet sobre a obra de Jean Renoir.


>>> Trailer do documentário Jean Douchet, l'enfant agité (2017), de Vincent Haasser, Fabien Hagege e Guillaume Namur.


>>> Obituário em Les Inrockuptibles.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Eduardo Nascimento (1943 - 2019)

Celebrizou-se como vencedor do Festival RTP da Canção de 1967: o cantor Eduardo Nascimento faleceu no dia 22 de Novembro, vítima de doença prolongada — contava 76 anos.
Nascido em Angola, aí formou, em 1962, Os Rocks, conjunto que conseguiu algum impacto, sobretudo através de "covers" de temas clássicos, tendo recebido um Prémio Bordalo da Casa da Imprensa, em 1967, na categoria de música ligeira. Com o seu triunfo no Festival da Canção, com a canção O Vento Mudou (Nuno Nazareth Fernandes/João Magalhães Pereira), tornou-se um dos primeiros afrodescendentes a marcar presença no certame e também no Festival da Eurovisão (nesse ano a vencedora foi Sandie Shaw, com a canção Puppet on a String).
Eduardo Nascimento abandonou a actividade musical em finais da década de 60, tendo prosseguido uma carreira na TAP e outras companhias aéreas. Este ano, a 16 de Fevereiro, regressou ao Festival da Canção para interpretar O Vento Mudou, com o colectivo Cais Sodré Funk Connection.

>>> I Put a Spell on You (Os Rocks, 1966) + O Vento Mudou (1967) + O Vento Mudou (2019).






>>> Obituário na SIC Notícias.

Haim — uma canção de Leonard Cohen

Hanukkah é uma celebração hebraica que a banda Yo La Tengo, de Hoboken, New Jersey, assinala através de uma série de concertos, este ano com o lançamento paralelo de um álbum: Hanukkah+ inclui também interpretações de, entre outros, Jack Black, The Flaming Lips e Haim. Eis a contribuição das Haim, refazendo com admirável contenção o clássico If It Be Your Will, de Leonard Cohen.

Nova canção dos U2

Ahimsa — assim se chama a nova canção dos U2, fabricada com a colaboração do músico indiano A.R. Rahman, vencedor de dois Oscars, música e canção, com o filme Quem Quer Ser Bilionário? (2008). Contando com as vozes das duas filhas de Rahman, Khatija e Raheema, é a primeira composição da banda de Bono desde o lançamento do álbum Songs of Experience (2017) — em sânscrito, ahimsa significa "não-violência".

Haim, Hallelujah

Da ligeireza da pop faz parte o fantasma do drama, porventura a suspensão da tragédia. Assim é a música das Haim, as três irmãs de Los Angeles a atravessar um período de singles, por certo a preparar o álbum que sucederá a Days Are Gone (2013) e Something to Tell You (2017). Depois de Now I'm in It, aí está um belíssimo Hallelujah — a realização, cruzando depuração e elegância, volta a pertencer a Paul Thomas Anderson.

quinta-feira, novembro 21, 2019

Willem Dafoe
— a última tentação cinéfila

Willem Dafoe
A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO (1988)
O actor Willem Dafoe é um dos homenageados do Lisbon & Sintra Film Festival: entre os seus títulos mais emblemáticos inclui-se A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, filme gerado num contexto de produção de Hollywood que já não existe — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Novembro).

Willem Dafoe, americano, 64 anos, é um actor gloriosamente inclassificável. Não encaixando no típico estatuto de “estrela”, também nunca se deixou devorar por qualquer imagem estereotipada (à maneira de um Robert Downey Jr., talento invulgar há mais de uma década desperdiçado na personagem de Homem de Ferro dos filmes da Marvel).
A versatilidade de Dafoe faz com que, numa filmografia de mais de uma centena de títulos, haja momentos dispensáveis. Ainda assim, todos eles reflectem uma disponibilidade criativa e um genuíno sentido de risco raros no universo dos actores, americanos ou não. O ciclo de homenagem que lhe está a ser dedicado pelo LEFFEST (a decorrer até dia 24) é sintomático das suas qualidades. Na sua didáctica brevidade, inclui mesmo dois filmes preciosos, muito pouco vistos: Viver e Morrer em Los Angeles (1985), policial apocalíptico de William Friedkin, e Auto Focus (2002), de Paul Schrader, admirável retrato interior da televisão dos EUA nos anos 60/70 que, além do mais, nunca teve estreia comercial no nosso país.
Exemplo radical dos riscos que Dafoe tem sabido correr encontramo-lo em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, também incluido na programação do festival. Três décadas depois, a memória das suas atribulações “polémicas” não basta para compreendermos a origem filosófica e as motivações afectivas do trabalho de Scorsese. Não se trata, de facto, de um medíocre objecto de “contestação” religiosa, desrespeitador das crenças seja de quem for. A sua perturbação começa no facto de o autor se situar, convictamente, no interior da própria religião que encena (ou reencena, já que estamos perante uma personagem presente em todas as épocas da história do cinema).
O regresso a A Última Tentação de Cristo adquire novos e pertinentes contornos simbólicos através de declarações recentes de Scorsese, considerando que os actuais filmes de super-heróis, nomeadamente com chancela Marvel/Disney, já “não são cinema”. O seu ponto de vista tem suscitado muitas reacções mais ou menos severas (inclusive de Robert Downey Jr…), quase todas enredadas num maniqueísmo pueril entre “bom” e “mau” cinema. De tal modo que o próprio Scorsese decidiu sistematizar as suas ideias num magnífico artigo publicado em The New York Times (4 nov.). No centro da sua argumentação está um duplo reconhecimento: primeiro, que os filmes de super-heróis resultam da aplicação de fórmulas de produção e narrativa sem risco, ignorando o “confronto com o inesperado” que o cinema sempre procurou; segundo, que tais filmes detêm um poder de ocupação das salas de todo o mundo que leva à marginalização de tudo o que é diferente, destruindo a própria diversidade cinematográfica (e, acrescento eu, deseducando os espectadores para essa mesma diversidade).
Qual a relação desta discussão com A Última Tentação de Cristo? Pois bem, este é um filme gerado no coração de Hollywood, com chancela de um grande estúdio (Universal Pictures), parecendo difícil imaginar que, agora, algum grande estúdio desse luz verde a semelhante projecto. É essa a tragédia: a indústria audiovisual mais poderosa do mundo está a ceder a uma lógica normativa que pode anular a versatilidade artística e comercial que define mais de um século da sua (e da nossa) história.
Sintoma esclarecedor: o projecto do mais recente filme de Scorsese, O Irlandês, foi rejeitado pelos estúdios de Hollywood, acabando por ser financiado por uma plataforma de “streaming”, a Netflix. O que, entenda-se, nos conduz a outra tragédia dos nossos dias: a Netflix dá-se ao luxo de não exibir o filme nas salas de muitos países, incluindo Portugal, aliás nem sequer parecendo empenhada em promover minimamente o seu “produto”. No respectivo site, gastam-se meia dúzia de linhas (literalmente!) para se concluir que se trata de um “aclamado filme de Martin Scorsese”. Sinal dos tempos: com a “aclamação” virtual morre o gosto cinéfilo.

Fiona Apple na banda sonora de "The Affair"

Já sabíamos que Fiona Apple tinha gravado o clássico The Whole of the Moon, de The Waterboys, para o episódio final da série televisiva do canal Showtime, The Affair. Embora correndo o risco de envolver alguns spoilers, a nova versão já circula pela Net através das imagens da própria série — grande canção, admirável Fiona Apple.

Terry O'Neill (1938 - 2019)

[FOTO: Misan Harriman / The Guardian]
Fotógrafo de moda muito ligado ao imaginário da década de 60, o inglês Terry O'Neill faleceu a 16 de Novembro, em Londres, vítima de cancro — contava 81 anos.
Judy Garland, os Beatles e os Rolling Stones estão no seu imenso portfolio, embora seja insuficiente defini-lo como um retratista de personalidades do mundo do espectáculo. O desporto e a política foram também áreas que despertaram o seu interesse, sendo sempre capaz de fixar as figuras mais conhecidas e célebres, contrariando a procura de qualquer pose abstracta, privilegiando antes uma espontaneidade (quase) naturalista — recordemos apenas o exemplo modelar da fotografia de "reportagem" de Winston Churchill, em 1962, saindo do hospital em que tinha estado internado.


A família real britânica e a actriz Faye Dunaway (com quem foi casado) são também referências fundamentais no seu universo fotográfico. No cinema, desempenhou as funções de produtor executivo num filme protagonizado por Dunaway: Mommie Dearest/Querida Mãezinha (1981), de Frank Perry, evocação biográfica de Joan Crawford.


Entre os livros que publicou incluem-se Celebrity (2003), Every Picture Tells a Story (2016) e Bowie by O'Neill: The definitive collection with unseen images (2019). O seu trabalho está representado na National Portrait Gallery, em Londres, através de um conjunto de 77 imagens.
Audrey Hepburn (1966)
David Bowie (1977)
Jerry Hall (1988)

>>> Obituário na BBC.
>>> Terry O'Neill em Iconic Images.

quarta-feira, novembro 20, 2019

Le Mans — cinema & velocidade

Foi em 1966 que a Ford desafiou o domínio da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans. O novo filme de James Mangold, Le Mans ‘ 66: o Duelo evoca esse momento de grande espectáculo, contando com excelentes interpretações de Matt Damon e Christian Bale — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).

Ford GT40
A velocidade já não é o que era. Eis a lição, não exactamente automobolística, mas ética e estética, que encontramos num filme como Le Mans ‘ 66: O Duelo. De facto, neste tempo em que a aventura se mede pelo ruído ensurdecedor dos super-heróis digitais, cada vez mais repetidos e repetitivos, sabe bem encontrar um filme que, sendo sobre a vertigem da velocidade (e também com muito ruído, há que reconhecer...), se apresenta, acima de tudo, como uma saga humana e, no plano cinéfilo, uma reinvenção das parábolas clássicas sobre os labirintos da amizade.
Em boa verdade, está em cena um momento fulcral na evolução da história industrial dos automóveis, desde a sua tecnologia até ao seu apelo mitológico. O título original do filme resume a situação, quer dizer, o confronto de duas marcas lendárias: Ford v. Ferrari. Dito de outro modo: em 1966, perante o domínio dos italianos da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, com vitórias consecutivas nas seis edições anteriores, a Ford americana, liderada por Henry Ford II (neto do fundador Henry Ford), arriscou tudo no sentido de criar um novo modelo de automóvel capaz de desafiar o poder da Ferrari.
Encontramos aqui um misto de dramatismo e ironia cujas raízes simbólicas estarão, não exactamente no género dos “filmes-sobre-automóveis”, mas sim nas aventuras do velho Oeste. A relação entre Carroll Shelby, o construtor do espectacular Ford GT40, e o piloto Ken Miles actualiza toda uma tradição de histórias sobre as alianças entre homens que desafiam os seus próprios limites, cristalizada em “westerns” tão admiráveis como Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks, ou, numa época de componentes ideológicas bem diferentes, Dois Homens e um Destino (1969), de George Roy Hill.
James Mangold, o realizador, está longe de ser estranho a estas questões, ele que, com sofisticado saber artesanal, já assinou títulos tão interessantes como Copland – Zona Exclusiva (1997), um policial com Sylvester Stallone, ou Walk the Line (2005), sobre a vida e a música de Johnny Cash. Neste caso, a sua visão é tanto mais elaborada e consistente quanto mostra saber que o essencial decorre de um metódico equilíbrio entre a dimensão mais física da acção e os seus vectores humanos e humanistas.
O tratamento dos automóveis, desde os treinos até às corridas propriamente ditas, é genuinamente espectacular, demonstrando (se dúvidas ainda houvesse...) que os mais modernos efeitos especiais podem servir para algo mais do que colocar os corpos metálicos de alguns super-heróis aos pulos... O efeito de vertigem das imagens na pista de Le Mans é tanto mais forte quanto a equipa de Mangold soube resistir a qualquer “embelezamento” dos carros de meados da década de 60: dos materiais de construção à percepção da pista, estamos perante uma encenação que sabe respeitar as componentes vitais de realismo que o contexto exige.
Matt Damon e Christian Bale, respectivamente como Shelby e Miles, são exemplares na transfiguração dramática desse realismo. O que nos faz sentir envolvidos com o seu empreendimento — construir, em poucos meses, um carro para vencer a Ferrari em Le Mans — não decorre da mera “ostentação” dos efeitos especiais. O mais importante é o facto de esse empreendimento se impor, em última instância, como um resgate das suas próprias histórias de vida: Shelby ainda marcado pelo facto de, devido a razões de saúde, ter sido levado a desistir da condição de piloto; Miles vivendo numa permanente tensão, por vezes dramática, outras vezes burlesca, entre o seu comportamento conflituoso e a procura obsessiva da perfeição absoluta para o seu carro e, claro, para a sua própria condução.
Alguns espectadores recordar-se-ão que toda a acção e mitologia típicas dos cenários de Le Mans ficou consagrada num filme de 1971, intitulado apenas Le Mans, realizado por Lee H. Katzin: as suas características quase documentais cruzavam-se com a consagração cinéfila do seu actor principal, Steve McQueen, ele próprio com uma carreira paralela de piloto de alta velocidade. Digamos que Le Mans ‘66: O Duelo é um descendente tardio desse filme (curioso, mas menor), de alguma maneira revalorizando a vocação mitológica inerente ao classicismo do cinema “made in USA”. Estamos, enfim, perante uma proposta realmente original no actual panorama da produção de Hollywood, com um toque simples, mas contagiante, de nostalgia.

Pet Shop Boys, ecologia & etc.

Hotspot, 14º álbum de estúdio dos Pet Shop Boys, chega a 24 de Janeiro de 2020. Para já, dois magníficos lyric videos dão-nos pistas para uma viagem musical & simbólica que parece marcada por ecos sociais e ecológicos — eis Dreamland (com a colaboração de Years & Years) e Burning the Heather.



terça-feira, novembro 19, 2019

José Mário Branco (1942 - 2019)

Personalidade central na história da música portuguesa do último meio século, José Mário Branco faleceu na noite de 18 para 19 de Novembro, vítima de um acidente vascular cerebral — contava 77 anos.
A presença de José Mário Branco nos caminhos portugueses da música reflecte uma invulgar versatilidade criativa, desde os tempos de resistência ao Estado Novo através de um álbum tão emblemático como Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), até ao recente Sempre (2018), álbum de Katia Guerreiro por ele produzido.
Desde muito jovem envolvido na luta política, como militante do Partido Comunista Português, exilou-se em França em 1963, só regressando a Portugal no imediato pós-25 de Abril. Conjugando autores como Luís de Camões, Alexandre O’Neill, Natália Correia e Sérgio Godinho, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades seria uma das bandeiras da canção de protesto anti-fascista, registo que se transfiguraria em novos modos de intervenção social e política em álbuns como A Mãe (1978), Ser Solidário (1982), A Noite (1985), Correspondências (1990) ou Resistir É Vencer (2004) — este seria o seu derradeiro álbum de originais.
Na condição de produtor, a sua trajectória artística cruzou-se, entre outros, com José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto Bordalo Dias, Carlos do Carmo e Camané. A colaboração com Camané, iniciada com Uma Noite de Fados (1995), é normalmente apontada como um momento decisivo de reconversão da estética clássica de encenação musical do fado. Em 2014, a sua vida e obra foi tema de Mudar de Vida (2014), documentário da autoria de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo.

>>> Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades + Ser Solidário + Dueto com Katia Guerreiro (Quem Diria).






>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> Emissão especial na Antena 1 [19-11-2019].

A IMAGEM: Philippe Halsman, 1948

PHILIPPE HALSMAN
Georgia O'keeffe
Novo México, 1948

domingo, novembro 17, 2019

Redes sociais, ódios sociais

Na CNN, palavras de um sobrevivente do Holocausto:
"As redes sociais são um instrumento poderoso na disseminação do ódio."
Muitas formas publicitárias de representação dos telemóveis tratam-nos como objectos inocentes e transparentes, a ponto de nos fazerem desistir de perguntar o que significa estar “em rede”: será preciso ir para lá das explicações de Mark Zuckerberg — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Novembro), com o título 'Os ódios sociais'.

Entre as imagens que vi esta semana, registei esta com especial atenção. Pertence a um video da CNN que acompanha uma notícia (colocada online na quinta-feira) sobre a italiana Liliana Segre, senadora vitalícia de 89 anos responsável pela criação de uma comissão parlamentar contra o ódio, o racismo e o anti-semitismo. Segundo dados do centro de documentação da Fundação Judaica sediada em Milão, Segri tem sido alvo de mensagens “particularmente agressivas”, publicadas nas chamadas redes sociais à média de duas centenas por dia.
A imagem surge num registo audiovisual muito breve (pouco mais de dois minutos) que complementa a notícia. As legendas não são opcionais: por certo reconhecendo a importância do que é dito pelas duas pessoas entrevistadas — o alemão Manfred Goldberg e a francesa Freda Wineman, ambos sobreviventes do Holocausto —, a CNN inscreveu-as nas próprias imagens.
Campo de concentração de Auschwitz
As palavras de Goldberg são especialmente incisivas e pedagógicas: “O que me traz uma tremenda preocupação é que, em nome da liberdade de expressão, parecemos ignorar a lição da história.” Que lição? O video vai mostrando imagens do campo de concentração de Auschwitz, evitando a convencional voz off para “comentar” o que está a ser visto, optando antes por introduzir esta legenda: “Manfred diz que as redes sociais são um instrumento poderoso na disseminação do ódio.”
Por uma coincidência que está longe de ser irrelevante, esta foi também a semana em que Hillary Clinton teceu algumas considerações sobre a decisão anunciada pelo Facebook de não verificar a veracidade (“fact-check”) das informações incluídas na publicidade política que integra nas suas páginas. O seu testemunho teve como cenário a apresentação, em Nova Iorque, do documentário The Great Hack, produção da Netflix sobre o escândalo de manipulação de dados de milhões de pessoas, envolvendo a empresa Cambridge Analytica e o Facebook. Recordando o facto de, em 2016, o Facebook ter espalhado uma notícia (falsa) segundo a qual o Papa Francisco manifestara apoio a Donald Trump, seu adversário na eleição presidencial, Clinton considerou que Mark Zuckerberg “deveria pagar um preço” pelo que está a fazer à democracia.
Não se trata de demonizar os muitos e fascinantes recursos que a tecnologia nos proporciona. A questão é outra. No video da CNN, há também algumas imagens de uso de computadores associadas a mais algumas palavras de Goldberg: “Agora, a comunicação instantânea significa que qualquer pessoa individual que queira propagar pontos de vista contaminados por ódios raciais, pode fazê-lo de modo muito mais efectivo do que os nazis alguma vez conseguiram.”
A Rede Social
Claro que o video está longe de esgotar os dados de toda uma conjuntura que é política, económica e simbólica, numa palavra, cultural (o mesmo se poderá dizer, aliás, deste texto). Em qualquer caso, creio que importa reconhecer o valor de imagens como esta, capazes de resistir às mais agressivas representações publicitárias que endeusam os telemóveis como objectos dotados de uma vocação virginal de transparência e ecumenismo.
Nestas pequenas clivagens figurativas trava-se muito da guerra contemporânea das imagens. E em especial nos domínios globais — a começar pela Internet, suas informações e práticas publicitárias — em que o triunfo de um “naturalismo” supostamente imanente tende a esmagar as possibilidades de ver e pensar de maneiras diversas.
“Os utilizadores estão interligados, é esse o único objectivo” — quem o diz é Zuckerberg, ou melhor, a sua personagem tal como surge encenada num filme genial e premonitório sobre os malefícios do Facebook chamado A Rede Social (David Fincher, 2010). Resta saber se nós, adultos, estamos a usar os poderes de educação dos mais novos para lhes fornecer alguma consciência sobre o que significa estar “em rede”. Será que quando um adolescente pergunta o que foi Auschwitz, nos limitamos a dizer para procurar no telemóvel?...