sexta-feira, novembro 29, 2019

A purificação do YouTube

READY PLAYER ONE [2018]
Como é que as formas de violência surgem tratadas nas imagens do mundo virtual, nomeadamente no YouTube? Eis uma velha questão que importa enfrentar para além de qualquer oposição maniqueísta entre “jogo” e “realidade” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Novembro).

Na quinta-feira, dia 21, Susan Wojcicki, CEO do YouTube, publicou a sua “última carta de 2019”, fazendo um balanço do ano da plataforma de partilha de videos a que preside. Reforçando o que já escrevera em agosto (estas são comunicações trimestrais), lembrou que persiste uma prioridade na gestão de conteúdos do YouTube: "conseguir o equilíbrio correcto entre abertura e responsabilidade”.
A apresentação de Wojcicki possui o mérito de não escamotear os muitos e complexos problemas que têm sido suscitados pelo funcionamento das redes classificadas como “sociais”. Afinal, pelo menos desde o escândalo Cambridge Analytica (com o Facebook a “ceder” informações de milhões de utilizadores, sem o seu consentimento expresso, para utilizações de propaganda política), desagregou-se o mito virginal da circulação de informação: tudo o que circula participa da nossa percepção do mundo.
Depois de abordar questões tão complexas como a gestão dos direitos envolvidos na difusão de conteúdos musicais, Wojcicki dedica um breve parágrafo a uma velha questão: as imagens que dão a ver actos violentos, ou melhor, o acesso a essas imagens. "Velha questão” porque a sua abordagem está há muitos anos contaminada pelas cruzadas dos que, ciclicamente, despertam para a figuração de “sexo e violência”, visando as formas de ficção (cinematográfica e televisiva), ao mesmo tempo que cultivam um silêncio comprometedor face ao horror normativo do comportamento humano, em particular no domínio da sexualidade, todos os dias difundido pela “reality TV”.
Vale a pena citar na íntegra o parágrafo de Wojcicki: “Quanto aos criadores de jogos, ouvimos alto e bom som que as nossas regras necessitam de estabelecer uma diferença entre a violência do mundo real e a violência dos jogos. Brevemente, isso mesmo acontecerá através de uma actualização da nossa política. A nova política terá menos restrições para a violência nos jogos, mas manterá a nossa fasquia bem alta no sentido de proteger as audiências da violência do mundo real.”
Eis um enunciado que, perversamente, participa da “naturalização” do universo hiper-tecnológico em que vivemos. Não se trata, entenda-se, de pôr em causa a boa fé seja de quem for, nem de escamotear que a boa saúde do YouTube implica lidar com as suas inevitáveis convulsões figurativas. Resta saber se semelhante programa de purificação — enraizado numa dicotomia moralista entre o mundo “real” e o universo do “jogo” — nos conduz a algo mais do que uma visão beata da tecnologia e dos seus “malefícios”.
Triunfa, aqui, uma visão do cidadão concreto, não como aquele que é a peça fulcral dos referidos processos de abertura e responsabilização, antes como um peão abstracto que a própria tecnologia se deverá encarregar de “proteger”. Assim se reforça o quotidiano processo de infantilização dos consumidores: venham a nós, que não os deixaremos cair em tentação...
Ao mesmo tempo, assim se exclui de qualquer responsabilidade a poderosíssima indústria dos jogos. Será, então, importante “regular” a figuração da violência nos produtos dessa indústria? Essa é, quase sempre, a hipótese normativa sustentada pela classe política. Sempre com o mesmo efeito: excluir de qualquer reflexão (social, precisamente) que os jogos não são o contrário do mundo real, mas sim dispositivos que encenam e reencenam esse mundo real, contaminando a visão que milhões de cidadãos, jovens e menos jovens, vão elaborando de assuntos tão díspares como os combates com metralhadoras ou os gestos técnicos de Ronaldo e Messi.
Curiosamente, a discussão das formas de profilaxia sustentadas pela CEO do YouTube começa no interior da própria cultura “made in USA”. Veja-se ou reveja-se o filme Ready Player One (2018), de Steven Spielberg. O que nele se encena não é exactamente o conflito do “jogo” com a “realidade”, mas sim a morte trágica de qualquer realidade que não passe pela vertigem do jogo. Spielberg é um optimista, eu sei, mas tem a coragem de lidar com o medo.