A. Não receemos a contundência das palavras: há qualquer coisa de chocante no facto de um filme tão admirável como O Irlandês, de Martin Scorsese, não poder ser visto nas salas de cinema (mesmo se teve uma projecção de imprensa realizada, precisamente, numa sala). Como é sabido, a entidade produtora do filme, a plataforma de streaming Neflix, colocou O Irlandês por um curto período em algumas salas dos EUA (não satisfazendo a ideia de um lançamento alargado, difundida no começo da respectiva produção), optando em muitos países, incluindo Portugal, por disponibilizar o filme apenas na Net.
B. Entenda-se: chocante não significa demonizar a Netflix e santificar todos os outros elementos que fazem a indústria e o mercado. Afinal de contas, é fundamental não esquecer que sem a Netflix o filme nem sequer existiria: Scorsese tentou durante mais de uma década concretizá-lo através de um grande estúdio de Hollywood, recebendo sempre respostas negativas — a Netflix, por sua vez, disponibilizou-lhe um astronómico orçamento de 159 milhões de dólares, além do mais permitindo-lhe trabalhar na mais absoluta independência criativa.
C. Chocante é o facto de se ter chegado a este impasse em que as diversas instâncias de difusão dos filmes se vão entrincheirando no seu território como se, afinal, não participassem de uma paisagem comum. Lembremos apenas o mais óbvio: o génio de Scorsese levou-o a fazer O Irlandês como um objecto de cinema, isto é, através do desejo de uma sala escura. Vê-lo apenas num ecrã caseiro não o reduz a um filme medíocre... Acontece que diminui, literalmente, as possibilidades de diversificação da sua relação com o espectador, em última instância pondo em causa as raízes económicas e e culturais de mais de um século de história do cinema.