quarta-feira, novembro 20, 2019

Le Mans — cinema & velocidade

Foi em 1966 que a Ford desafiou o domínio da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans. O novo filme de James Mangold, Le Mans ‘ 66: o Duelo evoca esse momento de grande espectáculo, contando com excelentes interpretações de Matt Damon e Christian Bale — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).

Ford GT40
A velocidade já não é o que era. Eis a lição, não exactamente automobolística, mas ética e estética, que encontramos num filme como Le Mans ‘ 66: O Duelo. De facto, neste tempo em que a aventura se mede pelo ruído ensurdecedor dos super-heróis digitais, cada vez mais repetidos e repetitivos, sabe bem encontrar um filme que, sendo sobre a vertigem da velocidade (e também com muito ruído, há que reconhecer...), se apresenta, acima de tudo, como uma saga humana e, no plano cinéfilo, uma reinvenção das parábolas clássicas sobre os labirintos da amizade.
Em boa verdade, está em cena um momento fulcral na evolução da história industrial dos automóveis, desde a sua tecnologia até ao seu apelo mitológico. O título original do filme resume a situação, quer dizer, o confronto de duas marcas lendárias: Ford v. Ferrari. Dito de outro modo: em 1966, perante o domínio dos italianos da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, com vitórias consecutivas nas seis edições anteriores, a Ford americana, liderada por Henry Ford II (neto do fundador Henry Ford), arriscou tudo no sentido de criar um novo modelo de automóvel capaz de desafiar o poder da Ferrari.
Encontramos aqui um misto de dramatismo e ironia cujas raízes simbólicas estarão, não exactamente no género dos “filmes-sobre-automóveis”, mas sim nas aventuras do velho Oeste. A relação entre Carroll Shelby, o construtor do espectacular Ford GT40, e o piloto Ken Miles actualiza toda uma tradição de histórias sobre as alianças entre homens que desafiam os seus próprios limites, cristalizada em “westerns” tão admiráveis como Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks, ou, numa época de componentes ideológicas bem diferentes, Dois Homens e um Destino (1969), de George Roy Hill.
James Mangold, o realizador, está longe de ser estranho a estas questões, ele que, com sofisticado saber artesanal, já assinou títulos tão interessantes como Copland – Zona Exclusiva (1997), um policial com Sylvester Stallone, ou Walk the Line (2005), sobre a vida e a música de Johnny Cash. Neste caso, a sua visão é tanto mais elaborada e consistente quanto mostra saber que o essencial decorre de um metódico equilíbrio entre a dimensão mais física da acção e os seus vectores humanos e humanistas.
O tratamento dos automóveis, desde os treinos até às corridas propriamente ditas, é genuinamente espectacular, demonstrando (se dúvidas ainda houvesse...) que os mais modernos efeitos especiais podem servir para algo mais do que colocar os corpos metálicos de alguns super-heróis aos pulos... O efeito de vertigem das imagens na pista de Le Mans é tanto mais forte quanto a equipa de Mangold soube resistir a qualquer “embelezamento” dos carros de meados da década de 60: dos materiais de construção à percepção da pista, estamos perante uma encenação que sabe respeitar as componentes vitais de realismo que o contexto exige.
Matt Damon e Christian Bale, respectivamente como Shelby e Miles, são exemplares na transfiguração dramática desse realismo. O que nos faz sentir envolvidos com o seu empreendimento — construir, em poucos meses, um carro para vencer a Ferrari em Le Mans — não decorre da mera “ostentação” dos efeitos especiais. O mais importante é o facto de esse empreendimento se impor, em última instância, como um resgate das suas próprias histórias de vida: Shelby ainda marcado pelo facto de, devido a razões de saúde, ter sido levado a desistir da condição de piloto; Miles vivendo numa permanente tensão, por vezes dramática, outras vezes burlesca, entre o seu comportamento conflituoso e a procura obsessiva da perfeição absoluta para o seu carro e, claro, para a sua própria condução.
Alguns espectadores recordar-se-ão que toda a acção e mitologia típicas dos cenários de Le Mans ficou consagrada num filme de 1971, intitulado apenas Le Mans, realizado por Lee H. Katzin: as suas características quase documentais cruzavam-se com a consagração cinéfila do seu actor principal, Steve McQueen, ele próprio com uma carreira paralela de piloto de alta velocidade. Digamos que Le Mans ‘66: O Duelo é um descendente tardio desse filme (curioso, mas menor), de alguma maneira revalorizando a vocação mitológica inerente ao classicismo do cinema “made in USA”. Estamos, enfim, perante uma proposta realmente original no actual panorama da produção de Hollywood, com um toque simples, mas contagiante, de nostalgia.