Tendo como ponto de partida uma peça de Tiago Rodrigues, o realizador Tiago Guedes propõe-nos uma fábula real e surreal: Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é uma aventura vivida por uma menina que se chama “Girafa” e um urso de peluche que gosta de... falar em calão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro).
Ao descobrirmos agora um filme como Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, talvez seja inevitável recordar que o seu realizador, Tiago Guedes, assinou recentemente A Herdade, título marcante da mais recente produção portuguesa (candidato a uma nomeação para o Oscar de melhor filme internacional). O contraste, pleno de ironia, é sintoma de uma evidente versatilidade: se A Herdade aposta num registo de melodrama histórico ligado ao mais depurado classicismo, Tristeza e Alegria na Vida das Girafas segue os caminhos insólitos da fábula, cruzando o mais básico realismo (tudo se passa em reconhecíveis cenários lisboetas) com uma insólita pulsão fantasista.
A sinopse é, de uma só vez, estranha e sugestiva. A personagem central, uma menina que se identifica como “Girafa” (Maria Abreu), está envolvida na produção de um trabalho escolar sobre... a vida das girafas, ao mesmo tempo que mantém uma relação de proximidade e conflito com o seu urso de peluche (Tonan Quito), um boneco gigante que escapa à visão dos adultos, gosta de aplicar o calão de forma exuberante e responde pelo nome de... Judy Garland!
Que procura a protagonista? Por certo alguma forma de equilíbrio com o mundo dos adultos, de alguma maneira pontuada por uma reivindicação — ter acesso ao Discovery Channel — que o pai (Miguel Borges), militante da herança de Tchekhov, tem dificuldade em garantir-lhe. O filme desenvolve-se, assim, como uma viagem real e surreal em que as palavras desempenham um papel nuclear, até porque a “Girafa” parece empenhada em esgotar todas as nuances que o dicionário lhe oferece.
Tal importância das palavras não será estranha ao facto de estarmos perante a adaptação de uma peça homónima de Tiago Rodrigues (também intérprete do filme). Mais do que isso: sem complexos, o filme de Tiago Guedes explora os artifícios de uma teatralidade que consegue transfigurar e, de algum modo, reinventar os mais diversos cenários, desde o quarto da “Girafa” até às ruas de Lisboa.
Talvez seja inevitável reconhecer também que o jogo de contrastes que o filme explora tem os seus desequilíbrios, de tal modo é difícil cruzar o reconhecimento “naturalista” dos lugares com o apelo fantástico de uma aventura vivida por um ser humano e um urso falante. Seja como for, é o risco criativo que tudo isso envolve que, a meu ver, pode e deve ser valorizado. Tristeza e Alegria na Vida das Girafas é mesmo um dos mais desconcertantes “ovnis” da mais recente produção cinematográfica portuguesa, além do mais acreditando que o espectador pode distanciar-se de qualquer “novelesca”, mostrando-se disponível para ser surpreendido. E aceder ao fascínio que a surpresa pode envolver.