segunda-feira, setembro 30, 2019

Joker, 1989

Digamos, para simplificar que Joker (estreia quinta-feira, 3 Out.) é um dos grandes acontecimentos do ano, porventura encerrando simbolicamente a década com um desafio radical: devolver a inteligência aos filmes de super-heróis. Entenda-se: o filme de Todd Phillips será tudo o que se quiser menos um típico filme de super-heróis, movendo-se antes nos domínios sagrados da tragédia — e com um Joaquin Phoenix que é, a meu ver, o vencedor "obrigatório" do próximo Oscar de melhor actor.
Mas as profecias são irrelevantes. Para já, vale a pena actualizar a memória e lembrar que o primeiro Joker da era moderna é de Jack Nicholson e está no magnífico Batman que Tim Burton realizou em 1989 — lembremos um pouco do sofisticado sentido de composição do espaço segundo Burton, com a contribuição de Nicholson, Michael Keaton e Kim Basinger; em baixo, o trailer final do filme de Phillips.



domingo, setembro 29, 2019

Comédia argentina, jogo de espelhos

Graciela Borges
Conhecido por O Segredo dos seus Olhos, um filme “oscarizado”, Juan José Campanella regressa com O Conto das Doninhas, uma comédia de elaboradas surpresas; no papel central está uma grande dama do cinema da Argentina: Graciela Borges — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Setembro).

Que bom que é encontrar uma comédia que não depende de esclerosadas anedotas sexuais com adolescentes, não confundindo a “velocidade” da acção com o verdadeiro humor... O Conto das Doninhas é essa comédia, acima de tudo relembrando-nos que podemos (e devemos) estar atentos às propostas de cinematografias que não têm lugar garantido na linha da frente do mercado.
Estamos perante uma produção da Argentina, aliás assinada por um dos seus cineastas mais internacionais: Juan José Campanella, autor de O Segredo dos Seus Olhos, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro atribuído em 2010. Face a O Conto das Doninhas, o menos que se pode dizer é que Campanella continua a desenvolver o seu gosto por explorar modelos tradicionais de narrativa, “desviando-os” para lá das suas soluções mais conhecidas ou previsíveis.
Além do mais, O Conto das Doninhas vive do magnetismo de Graciela Borges, lendária veterana da produção cinematográfica da Argentina — conhecemo-la como protagonista de O Pântano (2001), de Lucrecia Martel (presidente do júri do recente Festival de Veneza) e reencontrámo-la, há poucas semanas, graças à estreia do também muito interessante Um Segredo de Família (2018), de Pablo Trapero.
A personagem de Graciela Borges é tanto mais sugestiva quanto instala um perverso jogo de espelhos com a sua própria imagem de marca. Ela interpreta Mara Ordaz, velha glória do cinema, precisamente, que se descobre envolvida numa bizarra teia afectiva e... financeira. Dito de outro modo: um casal de radiante simpatia quer comprar o seu palacete com objectivos que talvez sejam menos transparentes do que aparentam.
Com Mara vivem o seu marido e dois homens, um realizador e um argumentista, indissociavelmente ligados às glorias da sua carreira (o realizador dedica-se, em particular, a caçar a tiro as doninhas que circulam pelos terrenos da propriedade de Mara). A pouco e pouco, vamos compreendendo que esta insólita comunidade se organiza, afinal, como... um filme: das pinturas não muito sofisticadas do marido às misteriosas bebidas que os outros homens gostam de preparar, tudo depende de um jogo festivo de aparências, gerando momentos de desconcertante vocação espectacular.
Campanella aplica a arte ancestral da ambivalência da comédia, apoiando-se de forma decisiva nas nuances dos diálogos e, com hábil contenção, em calculados efeitos de surpresa. De tal modo que O Conto das Doninhas consegue deslizar da simples caricatura para as atribulações de um humor realmente muito negro. A lembrar, afinal, que a comédia se fundamenta no paciente estudo das contradições do género humano, com ternura pelas suas personagens, sem esquecer o tempero de uma pitada de crueldade.

Miles Davis, jazz, pop & etc.
— SOUND + VISION Magazine [ adiado ]


Razões de última hora obrigam ao adiamento da sessão, pelo que apresentamos as nossas desculpas — novo calendário será divulgado em breve.

A propósito da edição de um álbum inédito de Miles Davis, Rubberband, celebramos um gigante do jazz e o seu envolvimento com outros domínios musicais — com derivações pelo mundo do cinema.

* FNAC / Chiado — 29 Setembro, 18h30.

sábado, setembro 28, 2019

Miles, 1949

As primeiras gravações de Miles Davis como líder datam de 1949 e estão incluídas no álbum antológico Birth of the Cool, lançado em 1957 (ano de Miles Ahead). Apostando em revitalizar alguns temas clássicos do seu catálogo através de "recriações" visuais, o Universal Music Group pôs a circular um teledisco (?) para o tema Moon Dreams, com assinatura de Nicolas Donatelli, inspirado-se em desenhos e pinturas do próprio Miles. Enfim, o resultado é apenas competente — mas a música...

Piano solo [6/10]


[ Herbie Hancock ] [ Miksuko Uchida ] [ Patrick Leonard ] [ Grigory Sokolov ] [ Keith Jarrett ]

As Partitas de Johann Sebastian Bach para cravo são universalmente reconhecidas como um dos desafios mais extremos a qualquer exercício de teclas — e, por maioria de razão, quando interpretadas no piano. Dir-se-ia que o compositor concentrou na solidão do intérprete a possibilidade de consagrar o teclado como material narrativo, por excelência, projectando uma unidade abstracta tecida de infinitos contrastes e nuances.
Para Pedro Burmester, a Partita N.º 6 BWV 830 constitui uma referência "antiga", quanto mais não seja porque a encontramos no alinhamento do álbum J. S. Bach, editado pela EMI-Valentim de Carvalho em 1989 (ano do 26º aniversário do pianista).
Podemos vê-lo ou revê-lo aqui, 24 anos mais tarde (8 Dezembro 2013), na Casa da Música, no Porto, interpretando a mesma composição — um breve acontecimento, pleno de eternidade.

Documentário, suas imagens e palavras

Chega às salas escuras um documentário apostado em dar a ver as múltiplas formas de vida no interior da zona militar de Alcochete: Campo tenta mostrar como se confundem as coisas mundanas e as coisas transcendentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Setembro).

O mínimo que se pode dizer de um filme como Campo, de Tiago Hespanha, é que enfrenta um desafio tão singular quanto sedutor. De que se trata? Pois bem, de documentar uma determinada situação e, ao mesmo tempo, de sobre ela construir um discurso que, em boa verdade, já pouco ou nada tem a ver com as suas origens documentais.
Vale a pena resumir o que acontece. Assim, a situação é a do dia a dia de um campo militar, na zona de Alcochete, identificado como “a maior base militar da Europa”. Aí evoluem soldados entregando-se aos seus treinos, em particular com armas de fogo, mas também, por exemplo, apaixonados da astronomia empenhados na observação do cosmos ou animais noturnos que parecem querer aproximar-se dos espaços dos humanos...
Esperar-se-ia, talvez, que o filme organizasse os registos de tudo isso a partir de uma voz off aglutinadora e “informativa”, afinal repetindo as matrizes correntes da televisão. Ora, Campo é um filme obviamente consciente da retórica que, por vezes, condiciona tais matrizes. A sua opção principal é bem diferente, consistindo em utilizar a banda sonora como um exercício de reflexão em que pode caber um pouco de tudo, incluindo uma breve narrativa mitológica sobre o labor dos deuses na criação dos seres humanos. Ou como se escreve na sinopse oficial: este é um filme que “reflecte sobre a natureza das coisas, físicas e humanas, transcendentes e mundanas, que aqui se confundem e completam.”
Infelizmente, o jogo entre o que se mostra e o que se diz corre o risco de alguma arbitrariedade, como se sentíssemos que as palavras em off se bastam a si próprias, podendo funcionar com “aquelas” imagens ou quaisquer “outras”. Aliás, não creio que haja na história do cinema muitos filmes capazes de resolver de forma, pelo menos, ágil, essa tensão entre o que se mostra e que é objecto de escuta — penso, por exemplo, em alguns trabalhos do chileno Patricio Guzmán e, mais que tudo, no génio inigualável da voz off de Jean-Luc Godard na sua obra-prima Deux ou Trois Choses que Je Sais d’Elle (1967), retrato sociológico da região parisiense que se vai transfigurando em sublime digressão filosófica.
Dito isto, importa também acrescentar que, na sua fragilidade, Campo é um objecto pouco comum no contexto da produção portuguesa, de alguma maneira ajudando a questionar os valores (e limites) de um certo “boom” da produção documental. Seria, sobretudo, saudável que os espectadores compreendessem que, para além da maior ou menor consistência dos resultados, há um trabalho que tenta discutir as formas de representação do seu/nosso país. Isto porque documentar não é confirmar, mas dar a ver e perguntar.

sexta-feira, setembro 27, 2019

"Here Comes the Sun", 2019

1969 - 2019: as comemorações dos 50 anos do álbum Abbey Road (e as respectivas edições especiais) continuam a suscitar as mais diversas actualizações sonoras e visuais. Aqui está o novo visual de Here Comes the Sun, por certo uma das composições mais emblemáticas de George Harrison, com ou sem os Beatles — não exactamente um teledisco, antes uma pequena e tocante colecção de memórias.

quinta-feira, setembro 26, 2019

"O Irlandês" — em que salas?...

Em que salas vamos, afinal, poder ver O Irlandês, produção Netflix com realização de Martin Scorsese?
No plano mediático, a Netflix parece querer funcionar apenas como um call-center: há sempre alguém muito simpático para nos atender, mas sem capacidade, conhecimento ou formação para sustentar um discurso realmente informativo sobre as opções da empresa, alheio à arte menor da denegação.
Enfim, sabemos que o filme estará em "salas seleccionadas" (?) dos EUA a 1 de Novembro, surgindo na plataforma digital no dia 27 do mesmo mês. Entretanto, temos direito a um novo trailer (a Netflix tem mesmo dificuldade em manter uma consistente actualidade nos seus circuitos de informação, já que no dia de divulgação deste trailer, 26 de Setembro, continua a apresentar como "trailer mais recente" de O Irlandês as imagens conhecidas desde 28 de Fevereiro).
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* NOTA — Ainda hoje, dia 26, a página de O Irlandês no site da Netflix foi actualizada com o novo trailer.

"Fake news" — algumas ideias vagas

Jean-Pierre Léaud — LA CHINOISE (1967)
Nestes tempos de “fake news”, o que significa procurar a verdade? E o que é, afinal, uma ideologia? Um velho filme de Jean-Luc Godard ajuda-nos a reformular essas perguntas, lidando com a fragilidade de algumas ideias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Setembro).

A noção de “fake news” é tão velha como a imprensa, mas não há dúvida que se tem transfigurado neste nosso tempo de informação global, domínios virtuais e… Donald Trump. Já não nos basta considerar o método e a honestidade com que cada órgão de informação representa o mundo em que vivemos. Na expressão usada por todos (mesmo os que não dominam a língua inglesa), assistimos à secundarização da palavra “news” — vivemos e consumimos o espectáculo do “fake”, mesmo que, por princípio, o condenemos.
Donald Trump
Nesta dinâmica realmente global, Trump conseguiu uma vitória extraordinária, em grande parte alimentada pela nossa aceitação do quotidiano como uma parada de peripécias mais ou menos pitorescas, fúteis e, no limite, reversíveis. O 45º Presidente dos EUA entronizou-se como tenente-general de um sistema de leitura do mundo regido por uma festiva dicotomia: se há “fake news”, isso significa que a verdade pode ser vivida e tratada como um absoluto; tudo o resto é ideologia.
Depois dos conflitos de valores e pensamento das sociedades pré-digitais — que encarnaram em figuras de grande vibração simbólica como John F. Kennedy, François Mitterrand ou Mikhail Gorbatchov —, a ilusão de que comunicamos com tudo, logo tudo sabemos, reaproximou-nos de formas de infantilismo que noutros tempos rejeitámos. Depois da ilusão do “fim da história”, proclamada por Francis Fukuyama no começo dos anos 90, a nossa nova morfina moral é o “fim das ideologias”.
Num filme sobre a contaminação do território universitário francês pelo maoísmo, intitulado La Chinoise, Jean-Luc Godard tratou esta questão da inevitabilidade ideológica no contexto de Maio de 68. Aliás, corrijo: colocando em cena um grupo de estudantes que tenta aplicar os princípios enunciados no Livro Vermelho, o filme é muitas vezes evocado como um retrato das convulsões de Maio de 68, mas o certo é que a sua estreia ocorreu em… Agosto de 1967!
La Chinoise trata as ilusões das suas personagens com esse misto de ternura e crueldade que, na filmografia de Godard, constitui um genuíno sistema de prospecção humana e interrogação filosófica. As personagens de La Chinoise são a emanação de uma juventude exaurida nas suas próprias utopias, com os respectivos intérpretes a integrar uma espécie de “tribo” artística: é o caso de Jean-Pierre Léaud, actor mítico da Nova Vaga francesa, e Anne Wiazemsky (1947-2017), neta de François Mauriac, na época casada com o realizador.
Jean-Luc Godard
A certa altura, Léaud experimenta vários pares de óculos, cada um deles com lentes com a bandeira de um país (China, EUA, França…). São imagens que, de modo eminentemente lúdico, materializam a própria noção de ideologia: os óculos são o filtro ideológico da leitura de Léaud; ao mesmo tempo, porém, definem-no para os outros através de um símbolo, a bandeira, também ele ideológico.
Dito de outro modo: a ideologia não é um espaço em que decidimos entrar, como quem escolhe estados de alma a partir de um menu existencial ou acede a uma superfície comercial para adquirir os produtos de que necessita; na sua pluralidade, são os caminhos ideológicos que desenham o mapa do território histórico e social em que, com uma consciência mais ou menos aguda, nos descobrimos inseridos.
Nas frágeis personagens de La Chinoise, Godard admira uma força primitiva: a tenacidade de saber e querer saber, conhecer e querer conhecer. Não se trata de uma postura exactamente jornalística, nem exclusivamente cinematográfica, antes visceralmente literária. Porquê? Porque sempre envolvida com o amor das palavras e o obstinado labor da escrita. A sua ética está condensada num princípio de acção que, a certa altura, surge inscrito numa parede de um cenário: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras.”

quarta-feira, setembro 25, 2019

Dylan, Cash & etc.

Chega a 1 de Novembro o vol. 15 de 'The Bootleg Series', de Bob Dylan: Travellin' Thru, 1967 - 1969 são três CD (ou 3 LP) marcados pela relação, directa e simbólica, de Dylan com a música de Nashville, envolvendo gravações dos álbuns John Wesley Harding (1967), Nashville Skyline (1969) e Self Portrait (1970) — sem esquecer diversas colaborações com Johnny Cash, nomeadamente a sua participação na primeira edição do programa The Johnny Cash Show, difundido pela ABC-TV a 7 de Junho 1969. Como cartão de visita, eis o lyric video de Tell Me That It Isn't True.

Trump, por escrito

[FOTO: Le Monde]
Depois da abertura de um processo de impeachment, que poderá conduzir (ou não) à destituição de Donald Trump, a Casa Branca divulgou o registo da conversa do Presidente dos EUA com Vladimir Zelenski, presidente da Ucrânia [The Guardian]. Há, desde já, uma óbvia confirmação: Trump tentou "mobilizar" Zelenski para investigar Joe Biden e o seu filho...
Em qualquer caso, o que importa referir é a fundamental mudança de paradigma: seja qual for o desenlace deste processo, a linguagem dominante do audiovisual (televisão & Net) passou a coexistir na dinâmica social com a matéria primitiva da escrita, da palavra escrita — eis um assinalável acontecimento político.

Ringo Starr recria "Yellow Submarine"

Depois de ter entrevistado Paul McCartney, Jimmy Fallon recebeu Ringo Starr, tendo como mote o lançamento do seu novo álbum, What’s My Name (25 Outubro). Na companhia do próprio Fallon, e com a ajuda dos elementos de The Roots, Starr protagonizou uma deliciosa recriação de Yellow Submarine, utilizando brinquedos musicais — tema-título da longa-metragem de animação lançada em 1968, a canção, recorde-se, estreou-se no alinhamento do álbum Revolver (1966).

“No one is above the law.”

I. "Ninguém está acima da lei", lembrou Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, ao anunciar a abertura de um processo formal de investigação com vista à destituição [impeachment] do Presidente dos EUA, Donald Trump. Motivo: uma suposta tentativa de Trump em pressionar o presidente ucraniano a investigar o antigo vice-presidente Joe Biden [DN].

II. Primeiro: a presunção de inocência de Trump (como de qualquer cidadão que, por uma ou outra razão, é objecto de alguma investigação legal) não está em causa. Segundo: o resultado concreto deste processo está longe de poder ser antecipado, até porque cabe ao Senado decidir, por maioria de dois terços, a eventual demissão do presidente (recorde-se que o Partido Republicado é maioritário no Senado).

III. Uma coisa é certa: este novo facto político [video: New York Times] implica alguma reconversão de forças no interior da paisagem política americana, com incidências mais que prováveis na cena internacional. De uma maneira ou de outra, para o melhor ou para o pior, depois do impacto ambivalente do Relatório Mueller, a discussão sobre a legitimidade política de Trump deixou de ser um exercício estritamente moral — agora, mais do que nunca, a exigência ética exprime-se no plano institucional.

terça-feira, setembro 24, 2019

"Yesterday", por Marvin Gaye

Na história da música popular, Yesterday (Lennon/McCartney) é uma das canções com maior número de versões: incluída em Help! (1965), quinto álbum de estúdio dos Beatles, dela existirão perto de 3000 interpretações. De passagem por The Late Show, o programa de Stephen Colbert, Paul McCartney falou do seu top dessas versões, mencionando mesmo a sua preferida. A saber: a de Marvin Gaye, no álbum That's the Way Love Is (1970).
Eis o fragmento do programa em que o assunto é focado e, em baixo, a versão de Yesterday por Marvin Gaye.



Piano solo [5/10]


[ Herbie Hancock ] [ Miksuko Uchida ] [ Patrick Leonard ] [ Grigory Sokolov ]

Um vício jornalístico faz com que muitas aproximações do universo criativo do americano Keith Jarrett dependam de uma lamentável fulanização. Dito de outro modo: por vezes, gasta-se mais espaço e tempo a especular sobre o "temperamento" do pianista do que a tentar estabelecer alguma ligação com as singularidades do seu génio.
Digamos para simplificar que, sendo Jarrett um maníaco da perfeição de estúdio (inclusive na "transferência" do jazz para os domínios da música clássica), há no seu trajecto um gosto muito particular pela performance ao vivo. É um gosto tanto mais perverso e fascinante quanto ele encara as suas componentes como uma "duplicação" da pureza ambiental do estúdio.
Exemplo extremo e muito pouco conhecido será Last Solo (2002), registo de um concerto em Tóquio, a 25 de Janeiro de 1984, fantástica celebração da solidão do intérprete devotado à resistência do seu piano — este é o encore do concerto, devidamente intitulado Tokyo '84 Encore.

segunda-feira, setembro 23, 2019

The Boss, 70 anos

Happy birthday, Mr. Springsteen!
De ascendência irlandesa e holandesa, pelo lado do pai, e italiana, pelo lado da mãe, Bruce Frederick Joseph Springsteen nasceu em Long Branch, New Jersey, no dia 23 de Setembro de 1949 — faz hoje 70 anos.
O seu cognome The Boss envolve uma autoridade que não decorre de qualquer forma frívola de poder: nas suas canções espelha-se a energia primitiva do rock, através dela ecoando as convulsões afectivas e políticas de uma América em que o culto da memória permanece indissociável do desejo de utopia.
O seu mais recente álbum de originais, Western Stars, é apenas um capítulo, por certo dos mais cristalinos, de uma trajectória de permanente reinvenção de uma cultura genuinamente popular. Como associar os parabéns a Bruce Springsteen a uma só canção? Arrisquemos — eis The River, num concerto de 1980, em Tempe, Arizona.

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2018

ERWIN OLAF
Palm Springs
2018

domingo, setembro 22, 2019

"A Herdade" — realismo, drama, melodrama

Sandra Faleiro + Albano Jerónimo
Contrariando qualquer visão esquemática da nossa história, Tiago Guedes propõe, em A Herdade, uma abordagem subtil de várias décadas portuguesas, pré e pós-25 de Abril, com especial cuidado no trabalho dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro).

Mais do que nunca, creio que importa resistir ao maniqueísmo vingativo que insiste em pensar (?) o cinema português como um combate de galos entre filmes “populares” e filmes “intelectuais”. Salvo melhor opinião, tal visão apenas tem gerado conflitos ideológicos cada vez mais vazios, em boa verdade alimentando uma dramática inércia das políticas culturais para o cinema.
Há questões conceptuais e narrativas incomparavelmente mais estimulantes. Uma delas começa no reconhecimento de que muitos filmes portugueses, “melhores” ou “piores” (não é isso que está em causa), mostram sérias dificuldades para lidar com as convulsões da própria história do seu/nosso país. Não poucas vezes, as memórias colectivas (p. ex.: em torno do 25 de Abril) são tratadas através de símbolos simplistas que apenas alimentam um militante vazio de pensamento sobre o que somos — e, sobretudo, como somos.
Isto para dizer que A Herdade, de Tiago Guedes, é um filme que aceita e, mais do que isso, arrisca lidar com a nossa história recente — algumas décadas antes e depois de 1974 —, contrariando lugares-comuns narrativos, esquematismos estéticos e preconceitos morais. Dito de outro modo: esta é a saga de um latifundiário, João Fernandes, exemplarmente composto por Albano Jerónimo num misto de contenção e fúria, que atravessa várias convulsões de Portugal ao longo do século XX, descobrindo (e nós com ele) as feridas afectivas do seu território familiar e, mais do que isso, a vulnerabilidade do tecido económico em que está inserido.
De alguma maneira reforçando o gosto realista que já marcava o seu Entre os Dedos (2008), o trabalho de Tiago Guedes possui, assim, o fôlego de uma aventura de muitas emoções que, subtilmente, sabe ir deslizando para uma genuína respiração melodramática. Entenda-se: o melodrama nada tem a ver com a formatação telenovelesca que se tornou uma poderosa e devastadora matriz cultural; é antes uma delicada arte de lidar com as forças mais secretas do comportamento humano e também, importa não esquecer, um dos mais genuínos e antigos géneros da produção cinematográfica europeia e americana (de Luchino Visconti a Vincente Minnelli).
Um dos aspectos fulcrais dessa energia melodramática envolve o tratamento das relações homens/mulheres e, em particular, os caminhos de resistência do imaginário feminino à força normativa do poder masculino. Nada a ver, entenda-se também, com o moralista simplista tantas vezes inadvertidamente favorecido pelas mais legítimas e bem intencionadas formas de militância social. Antes a delicada exposição de um modo feminino de ser e estar que, em A Herdade, encontra a sua expressão mais depurada na densidade emocional da personagem de Leonor, mulher do latifundiário. A sua interpretação, a cargo da brilhante Sandra Faleiro, é um invulgar e fascinante evento cinematográfico — e tanto mais quanto, no seu confronto desigual com o imaginário televisivo, o cinema português há muito perdeu a faculdade de gerar uma galeria de nomes e rostos realmente ligados ao grande ecrã.

Madonna, James Baldwin & etc.

[FOTO: Rolling Stone]
>>> A arte existe para provar que qualquer segurança é uma ilusão... Os artistas existem para perturbar a paz.

São palavras de James Baldwin (1924-1987) que servem de abertura aos espectáculos da 'Madame X Tour'. Como tem sido noticiado (e não deixa de ser interessante que esta seja uma verdadeira notícia), a organização da digressão de Madonna proíbe a utilização de telemóveis. Dito de outro modo: há muito poucas imagens do palco e o essencial do que sabemos passa pelos textos críticos já publicados — sugestão de leitura: o artigo de Rob Sheffield, na Rolling Stone.
Recorde-se que na longa ficha artística da digressão encontramos o nome do guitarrista português Gaspar Varela. Este é o alinhamento do espectáculo e, em baixo, um video promocional, divulgado em Maio deste ano, com Madonna a receber a visita de Diplo.

“God Control”
“Dark Ballet”
“Human Nature”
“Vogue”
“I Don’t Search I Find”
“Papa Don’t Preach”
“American Life”
“Batuka”
“Fado Pechincha”
“Killers Who Are Partying”
“Crazy”
“La Isla Bonita”
“Sodade”
“Medellin”
“Extreme Occident”
“Frozen”
“Come Alive”
“Future”
“Crave”
“Like a Prayer”
“I Rise”

sábado, setembro 21, 2019

Os cartazes da política

Ballot Box Bunny (1951)
Nas nossas ruas, quase todos os cartazes eleitorais reflectem uma exasperante pobreza criativa. Será que a maioria dos nossos políticos já pensou sobre o que significa dizer que “vivemos num mundo de imagens”? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro).

Convenhamos que a pose de Bugs Bunny a apelar ao voto na sua pessoa é uma imagem que não nos deixa indiferentes. Pertence a Ballot Box Bunny, curta-metragem de 1951 realizada por Fritz Ferleng, incluída na lendária série “Merrie Melodies”, da Warner Bros. Os espectadores de cinema com pelo menos 50 anos de idade lembrar-se-ão dessas pequenas pérolas dos desenhos animados como “complementos” das sessões de cinema, isto é, antecedendo a projecção do “filme de fundo”.
Mas não estou a propor uma mera vocação nostálgica. Falo do presente, perguntando-me (e perguntando ao leitor) se nas ruas das nossas cidades, vilas e aldeias podemos encontrar alguma imagem do actual momento pré-eleitoral que possua uma pequena fracção da energia, e também da alegria, do coelho da Warner.
O mais estrito bom senso impõe que contrariemos qualquer tentativa de generalização fácil: ao longo das próximas semanas, vamos, por certo, deparar com cartazes de contagiante imaginação. Ainda assim, o actual panorama é confrangedor: a maioria dos cartazes eleitorais reflecte uma desesperante pobreza criativa e, mais do que isso, faz equivaler direitas e esquerdas numa só linguagem iconográfica.
Ironizo? Não necessariamente. Claro que não peço a qualquer dirigente político que tente reproduzir a performance de Bugs Bunny. Acontece que, tal como em anteriores períodos eleitorais, assistimos ao triunfo daquilo que, a meu ver, justifica a criação de uma nova terminologia científica. A saber: o síndrome das agências de imobiliário.
Observem-se os cartazes dos profissionais que trabalham nessas agências. Bem sei que eles se tornaram figuras importantes da dinâmica social, ajudando-nos a enfrentar os problemas de habitação. Não é isso que está em causa. Mas isso também não anula o facto de os seus cartazes serem de uma apoteótica pobreza iconográfica: banais fotografias “photomaton” enquadradas por um amontoado de letras de cores mais ou menos berrantes.
Tal banalidade estética não impede que, através deles, consigamos um bom arrendamento. As coisas tornam-se um pouco mais perturbantes quando observamos os nossos políticos a usarem a mesma estética: uma foto de uma cabeça desligada de qualquer contexto, por vezes agregada a outra foto de outra cabeça, seguramente obtidas em momentos diferentes, de tal modo que a montagem das imagens parece ter sido feita por um (mau) aluno de uma escola infantil.
Dir-me-ão que a pertinência das ideias políticas de cada um não se pode reduzir a estes incidentes figurativos. Não poderia estar mais de acordo. E faço questão em sublinhar que, embora o nosso mundo mediático nem sempre me ajude, resisto à facilidade de apreciar as ideias seja de quem for a partir do seu “visual”.
O que também não nos impede de enfrentar uma questão assaz interessante: estamos perante objectos quase sempre gerados por especialistas de marketing e gabinetes de comunicação que, pelo que vemos, se limitam a repetir, estoicamente, o imaginário promocional das agências de imobiliário. Surgindo, assim, uma pergunta pedagógica: como todos os políticos gostam de proclamar que “vivemos num mundo de imagens”, que aconteceu para que se exponham em tão medíocre iconografia?
Será que esses mesmos políticos se dão ao luxo de possuir um conceito meramente instrumental das imagens? Dir-se-ia que nunca pensaram sobre o facto de, nos nossos dias, não haver prática política que, para o melhor ou para o pior, não passe por alguma matéria figurativa. No limite, alguns deles viverão mesmo na candura de acreditar que a tristeza conceptual dos seus cartazes atrairá aos locais de voto os 4.273.748 abstencionistas das últimas legislativas. Por mim, não sei se recorreria aos seus serviços para alugar casa.

Daney/Godard, 1987

Serge Daney filmado por Jean-Luc Godard
HISTOIRE(S) DU CINÉMA (1989-1999)
Um reencontro/redescoberta: em 1987, no seu programa radiofónico Microfilms, Serge Daney recebia Jean-Luc Godard, pouco depois do lançamento de Soigne ta Droite/Atenção à Direita. Diálogo fascinante, de perturbante actualidade, em que a tensão, a dialéctica e a tragédia se condensa na máxima godardiana: "o cinema é o pensamento, a televisão é o discurso político ou mercantil.
São dois actos sonoros disponibilizados pela France Culture; em baixo, o trailer de Soigne ta Droite.





Piano solo [4/10]


[ Herbie Hancock ] [ Miksuko Uchida ] [ Patrick Leonard ]

Compostos em 1827, os míticos oito Impromptus de Franz Schubert regressam regularmente como um desafio assumido pelos maiores pianistas [veja-se e escute-se o exemplo de Mitsuko Uchida]. No caso do russo Grigory Sokolov, dir-se-ia que a escrita de Schubert satisfaz (ou suscita) o método de descoberta e revelação inerente à sua pose de palco.
Obviamente alheia a qualquer infantilismo de "improvisação", a arte de Sokolov envolve a sugestão perversa de uma descoberta inerente à própria performance — o que, magicamente, ele consegue tanto em público como nos registos discográficos. Os quatro Impromptus D899 (Op. 90) estão incluídos no álbum Schubert & Beethoven, editado em 2016 pela Deutsche Grammophon.
Este registo do nº 3 tem data de 5 de Junho de 2013 — cenário: o espaço majestoso, mas intimista, da Berliner Philharmonie.

sexta-feira, setembro 20, 2019

"Come Together", take 5

Sinal dos tempos... O culto obsessivo das memórias, mesmo quando não enriquece o nosso conhecimento do passado, envolve a recuperação dos incidentes de que (também) se faz a história. Exemplo insólito, mas irresistível, divulgado a propósito dos 50 anos de Abbey Road, dos Beatles: uma take de Come Together em que John Lennon se engana várias vezes — a imperfeição pode fascinar.

Green Day, opus 13

Billie Joe Armstrong & Cª estão de volta — o 13º álbum de estúdio dos americanos Green Day será lançado a 7 de Fevereiro de 2020. Título: Father of All Motherfuckers. Ou, se preferirem, em tom mais moderado: Father of All... Contundente, apocalíptico e festivo, aí está o tema-título num teledisco de celebração das angústias da nossa querida globalização (com uma saudação nostálgica à cenografia de Jailhouse Rock, Elvis, 1957).

I woke up to a message of love
choking up on the smoke from above
I’m obsessed with the poison and us
what a mess because there’s no one to trust

Huh uh Come on honey
huh uh count your money
huh uh what’s so funny?
there’s a riot living inside of us

I got paranoia baby
and it’s so hysterical
cracking up under the pressure
looking for a miracle

Huh uh come on honey
lying in a bed of blood and money
Huh uh what’s so funny?
We are rivals in the riot inside us

I’m impressed with the presence of none
I’m possessed by the heat of the sun
Hurry up cause I’m making a fuss
Fingers up 🖕🖕🖕
Cause there’s no one to trust

Conversa com Paulo Branco [2/2]

O filme A Herdade (estreia quinta-feira, dia 19) é uma realização de Tiago Guedes que nasceu de uma ideia do produtor Paulo Branco. Trata-se, afinal, de revisitar um tempo português, pré e pós-25 de Abril, começando num sistema quase feudal, passando pela Revolução e chegando ao período do neo-liberalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro).

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Num tempo em que para muitos espectadores, sobretudo mais jovens, a produção cinematográfica americana se define apenas através dos “blockbusters” de super-heróis que, de três em três meses, são injectados no mercado mundial, Paulo Branco não esquece a nobreza clássica de Hollywood — e, em particular, a sua gloriosa tradição melodramática. Tal memória foi mesmo marcante na relação de trabalho com o realizador: “Conversámos sobre dois ou três exemplos de filmes em que a figura central acaba por destruir o seu universo familiar, sem ter noção das consequências dos seus actos. A referência fundamental foi Vincente Minnelli, nomeadamente um filme como Home from the Hill [A Herança da Carne, 1960], com Robert Mitchum. Depois, o guião foi-se construindo com o Rui Cardoso Martins. A partir daí, o Tiago Guedes apropriou-se da história, fazendo o seu filme.”
Em trânsito, de facto. Agora e sempre. E depois de 1971, depois de 1974? Que aconteceu quando voltou a Portugal… mas Paulo Branco interrompe a própria formulação da pergunta: “Eu nunca voltei!” Acrescentando um esclarecimento paradoxal: “Digamos que agora estou a voltar mais.”
Que aconteceu, então? “Toda a minha actividade como exibidor e produtor começou em França. Vivi uma história de amor com Paris, mas vim sempre a Portugal com regularidade… Só a partir de 1979/80, com as primeiras produções em Portugal, é que passei a dividir o meu tempo entre Paris e Lisboa. Agora estou mais por cá, inclusive por razões pessoais e familiares.”
Produtor português mais ligado ao cinema francês? Ou produtor mais francês que português? Para Paulo Branco, os rótulos não se adequam à sua trajectória: “Para mim, cada filme é uma aventura, não tem uma nacionalidade precisa. Por exemplo, entre os filmes com Manoel de Oliveira, há uns feitos cá, outros em França, há filmes falados em português, outros em francês. O mesmo se pode dizer quando trabalho com cineastas como Wim Wenders ou David Cronenberg… Em cada projecto aquilo que me mobiliza é saber se o posso tornar uma realidade e, nessa medida, se lhe posso trazer algo de interessante. E ainda se o realizador com quem estou a trabalhar me interessa e também, claro, se eu lhe posso interessar — não é uma simples questão de nacionalidades, depende do espaço em que tudo acontece e do prazer de estar envolvido.”
Na prática, o produtor pode funcionar como promotor de relações de colaboração. Por exemplo, Paulo Branco recorda que há também uma dimensão eminentemente pessoal em Cosmopolis (2012), já que, pensando na transposição do livro de Don DeLillo para filme, foi ele que promoveu o encontro de Cronenberg com o escritor — e o filme rodou-se, não em França ou Portugal, mas no Canadá, país de Cronenberg.
“No fundo, tudo depende da relação com um realizador. O caso de A Herdade terá sido um pouco diferente, já que fui eu a ir buscar um realizador para tratar um determinado tema, tendo também na fase final sugerido o nome de Roberto Perpignani para a montagem.” De resto, Paulo Branco faz questão em explicitar que nunca colocou, nem colocará, o seu nome no genérico de um filme com outra função que não seja a de produtor. A Herdade não é excepção: “A escolha dos actores, a evolução do argumento e, claro, a realização, tudo tem a ver com o Tiago Guedes — este não é um filme de Paulo Branco, é um filme de Tiago Guedes.”
Títulos como O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982), A Cidade Branca (Alain Tanner, 1983) ou Vale Abraão (Manoel de Oliveira, 1993) são referências emblemáticas na trajectória de um produtor que resiste a ser definido como um mero “angariador de meios”, assumindo antes o estatuto clássico de “independente”. Com o seu próprio didactismo: “A intervenção do produtor deve ser discreta, o que não significa que não participe também na organização do processo criativo — deve funcionar como aquilo que eu gosto de chamar o princípio da realidade. Penso que dos filmes que produzi muitos poderiam existir sem mim, mas seriam, talvez, diferentes.”
Nestes tempos de aceleradas transformações da produção e difusão cinematográfica (com o protagonismo recente, mas fortíssimo, das plataformas de “streaming), será que ainda há espaço para essa maneira de ser independente? A urgência da partida para Toronto deixa o possível desenvolvimento da conversa para outra oportunidade, mas é claro que Paulo Branco não encara com optimismo a crescente burocratizarão das formas de financiamento do cinema na Europa. Que fazer? “Tirar os burocratas dos circuitos de decisão.” Já à procura da mala para Toronto, ele próprio formula a pergunta que se impõe: “Será que isso é possível na Europa?”.

Charles Gérard (1922 - 2019)

O seu nome fica associado a uma tradição em que o chamado filme de acção se cruza sempre com a comédia: francês de ascendência arménia, Charles Gérard faleceu no dia 19 de Setembro, em Paris — contava 96 anos.
A sua mitologia é indissociável da amizade com Jean-Paul Belmondo: conheceram-se em 1948, num combate de boxe, tendo sido os golpes de Belmondo responsáveis pela forma bizarra do seu nariz. Foi também um actor fetiche de vários filmes de Claude Lelouch, incluindo Le Voyou/O Patife (1970), Smic Smac Smoc (1971), Aventura é Aventura (1972), Uns e... os Outros (1981) e La Belle Histoire (1992). Começou a sua carreira como realizador, tendo dirigido vários policiais ao longo da década de 60, entre os quais La Loi des Hommes (1962); na curta-metragem La Bande à Bebel (1966), fez o retrato do seu amigo Belmondo. Em 1994, publicou a autobiografia La Vie... C'est Pas Toujours Du Cinéma.

>>> Trailer de Aventura é Aventura.


>>> Obituário em Le Point.

quinta-feira, setembro 19, 2019

Para ver & pensar o cinema português

Eis uma pequena grande vitória de A Herdade — obviamente não separável do impacto de alguns outros títulos recentes do cinema português, incluindo Snu, TonyVariações. Dito de outro modo: apesar dos muitos maniqueísmos que continuam a assombrar a vida pública desse cinema — a começar pela estupidez ancestral da oposição entre filmes "populares" e filmes "intelectuais" —, a realização de Tiago Guedes, produzida por Paulo Branco, tem sido enquadrada pelos mais diversos exemplos de abordagem da sua especificidade enquanto objecto de cinema.
Eis também uma verdade rudimentar que todos sabemos, incluindo os que, por vezes, a querem escamotear: é possível ver & pensar os filmes sem favorecer a mediocridade argumentativa que consiste em arremessar números de bilheteira contra números de bilheteira...
Escusado será dizer que relembrar tal estado de coisas é rigorosamente separável da performance comercial de A Herdade (hoje lançado nas salas), seja ela qual for. Recomenda-se, por isso, o muito interessante diálogo de Ricardo Gross com o realizador Tiago Guedes publicado há cerca de duas semanas nas páginas da Agenda Cultural de Lisboa — sem infantilismos jornalísticos, dois adultos falam sobre cinema.

The Monterey Jazz Festival On Tour

O Festival de Jazz de Monterey é uma das instituições mais conhecidas, e também mais respeitadas, do mundo do jazz. O que poderá ser, então, The Monterey Jazz Festival On Tour? Pois bem, uma banda que tem funcionado como uma embaixada do próprio certame em palcos muito diversos. A sua constituição está ligada às comemorações do 60º aniversário do festival (a edição nº 62 ocorre neste mês de Setembro), reunindo os seguintes artistas:

* Melissa Aldana (saxofone tenor)
* Bria Skonberg (trompete e voz)
* Christian Sands (piano, director musical)
* Jamison Ross (bateria e voz).

Em Junho deste ano, The Monterey Jazz Festival On Tour esteve no Lincoln Center, em Nova Iorque, para um concerto integrado na série Jazz Night in America — três quartos de hora de serena, sofisticada e envolvente celebração. 

Fleetwood Mac, há 50 anos

Then Play On, dos Fleetwood Mac, foi publicado a 19 de Setembro de 1969 — faz hoje 50 anos.
Terceiro álbum de estúdio da banda (ainda com Peter Green), nele encontramos uma apoteose que nasce das cumplicidades que envolvem blues, rock e psicadelismo. A canção Oh Well, hoje um dos clássicos absolutos dos Mac, foi uma espécie de incidente na vida comercial do próprio álbum: não integrou o lançamento britânico, apenas surgindo na segunda edição americana, comercializada em Novembro do mesmo ano — ei-la numa performance nos estúdios da BBC; em baixo, os sons, igualmente admiráveis, do instrumental Underway.



"Time" — a luta pela Terra

A capa da edição da revista Time com data de de 23 de Setembro é sobre a sobrevivência da Terra... e feita com terra — um breve e sugestivo video dá conta da sua concepção e execução.


Trata-se, de facto, de uma edição excepcional, fazendo o ponto de uma situação — as brutais convulsões do clima — que, finalmente, começou a fazer parte dos temas com alguma (cada vez maior) visibilidade mediática. Entre os autores dos artigos publicados surgem os nomes de Al Gore, Jane Goodall e Angelina Jolie (neste caso, analisando o modo como os dramas dos refugiados não podem ser dissociados dos problemas ecológicos).
No plano iconográfico, vale a pena destacar as ilustrações concebidas por David Doran [aqui em baixo], cruzando imagens reais com a realidade de imagens utópicas — para conhecer o dossier completo, sugiro que se comece pelo artigo de Bill McKibben, 'Hello From the Year 2050.'.

quarta-feira, setembro 18, 2019

Conversa com Paulo Branco [1/2]

O filme A Herdade (estreia quinta-feira, dia 19) é uma realização de Tiago Guedes que nasceu de uma ideia do produtor Paulo Branco. Trata-se, afinal, de revisitar um tempo português, pré e pós-25 de Abril, começando num sistema quase feudal, passando pela Revolução e chegando ao período do neo-liberalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro).

Em trânsito. Sempre. Poucos momentos antes de começar a nossa conversa, até mesmo as fotografias em pose metódica e controlada, podiam ser apresentadas com uma legenda insólita, mas realista: “Vamos a isto, que eu tenho um avião para apanhar…”
Assim é, de facto: o produtor Paulo Branco está a poucas horas de embarcar para o Canadá. Objectivo: acompanhar o filme de Tiago Guedes, A Herdade, no Festival de Toronto, alguns dias depois da sua passagem em Veneza, cuidando das respectivas vendas para o mercado internacional (já depois deste encontro, veio a saber-se que A Herdade será o representante oficial de Portugal na candidatura a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro).
Mesmo não esquecendo a espantosa diversidade de autores que integram a lista de mais de duas centenas de filmes produzidos por Paulo Branco — Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Raúl Ruiz, Wim Wenders, David Cronenberg, etc. —, A Herdade começou por surgir aos olhos do público como um “projecto de produtor”. Será que faz sentido identificá-lo como tal? “Na sua génese é, de facto, um projecto de produtor. Isto porque há alguns anos iniciei vários filmes a que tinha uma ligação pessoal mais directa.”
Em qualquer caso, não era a primeira ocasião em que tal acontecia: ”Várias vezes sugeri a um ou outro realizador que, por questões de oportunidade, fazia sentido avançar para um determinado filme — aconteceu com Manoel de Oliveira ou Raúl Ruiz, na certeza de que foram sempre projectos dos próprios. A Herdade nasceu quando Carlos Saboga estava a desenvolver o argumento de Mistérios de Lisboa [Raúl Ruiz, 2010]. Comecei aí a procurar alguém que pudesse trabalhar e transformar a minha ideia.”
Que ideia era essa? Pois bem, antes do mais, uma aposta em revisitar um tempo específico, pré-25 de Abril: “São situações a que eu próprio assisti, antes e depois da Revolução, sem esquecer que fui para França em 1971. O que me fascinou foi a possibilidade de fazer um retrato da vida nos latifúndios em Portugal, retrato que estava em grande parte por esboçar, mesmo tendo em conta que José Cardoso Pires já tinha abordado esse universo no romance O Delfim [1968]. Vivia-se um tempo fora da realidade, que era também um tempo fora dos padrões europeus. Foi, aliás, por isso, que parti: senti que aquele era um mundo que, inevitavelmente, iria acabar.”
São memórias, afinal, de alguém que experimentou as contradições desse mundo de modo ambivalente: ”Vivi, ainda adolescente, depois jovem adulto, sem pertencer directamente a tal mundo, mas conhecendo-o através de amizades familiares. Digamos que eu era um deles sem ser um deles… Tinha um olhar com um distanciamento que, em princípio, quem pertencia a esse mundo não teria.”
“Como se costumava dizer, havia a sensação de que vivíamos fora daquilo que se passava para lá dos Pirinéus”, recorda Paulo Branco, embora não aceitando que isso se esgote num retrato maniqueísta de si próprio e do país: “Não posso deixar de dizer que fui muito feliz naquele tempo, sendo certo que aquilo que acontecia me ia dando consciência de muitas outras coisas.” Feliz? Não é uma palavra que integre as visões políticas que tendem a demonizar tudo o que então vivemos: “Fui extremamente feliz. É um tempo de que guardo recordações únicas e também amizades únicas, que permanecem muito fortes — o que não impedia que desejasse descobrir outros horizontes.”
Havia também o perigo de ceder aos clichés de representação da própria vida num latifúndio: “Era importante evitar situações mais folclóricas como, por exemplo, a relação com os touros e, sobretudo, a faceta marialva de algumas personagens com que me cruzei nessa época.” Questão de produtor, sem dúvida: “Era importante que o filme tivesse uma dimensão universal.”
E aí surge a palavra chave: melodrama. Não no sentido pejorativo que o senso comum, muitas vezes, lhe atribui. Ou seja: falamos do género clássico em que reconhecemos uma intensidade “poderosa” a pontuar as convulsões, rupturas e reencontros das relações homens/mulheres: “O filme acompanha a transformação de um mundo quase feudal, passa pela Revolução e chega aos tempos do neo-liberalismo. Nessa evolução, gerou-se uma energia incrível que deu visibilidade a sentimentos e frustrações que existiam no interior das famílias, por vezes de forma destruidora, outras verdadeiramente libertadora. Aconteceu com filhos, pais, mães, amantes… É daí que vem o melodrama.”

[continua]