Chega às salas escuras um documentário apostado em dar a ver as múltiplas formas de vida no interior da zona militar de Alcochete: Campo tenta mostrar como se confundem as coisas mundanas e as coisas transcendentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Setembro).
O mínimo que se pode dizer de um filme como Campo, de Tiago Hespanha, é que enfrenta um desafio tão singular quanto sedutor. De que se trata? Pois bem, de documentar uma determinada situação e, ao mesmo tempo, de sobre ela construir um discurso que, em boa verdade, já pouco ou nada tem a ver com as suas origens documentais.
Vale a pena resumir o que acontece. Assim, a situação é a do dia a dia de um campo militar, na zona de Alcochete, identificado como “a maior base militar da Europa”. Aí evoluem soldados entregando-se aos seus treinos, em particular com armas de fogo, mas também, por exemplo, apaixonados da astronomia empenhados na observação do cosmos ou animais noturnos que parecem querer aproximar-se dos espaços dos humanos...
Esperar-se-ia, talvez, que o filme organizasse os registos de tudo isso a partir de uma voz off aglutinadora e “informativa”, afinal repetindo as matrizes correntes da televisão. Ora, Campo é um filme obviamente consciente da retórica que, por vezes, condiciona tais matrizes. A sua opção principal é bem diferente, consistindo em utilizar a banda sonora como um exercício de reflexão em que pode caber um pouco de tudo, incluindo uma breve narrativa mitológica sobre o labor dos deuses na criação dos seres humanos. Ou como se escreve na sinopse oficial: este é um filme que “reflecte sobre a natureza das coisas, físicas e humanas, transcendentes e mundanas, que aqui se confundem e completam.”
Infelizmente, o jogo entre o que se mostra e o que se diz corre o risco de alguma arbitrariedade, como se sentíssemos que as palavras em off se bastam a si próprias, podendo funcionar com “aquelas” imagens ou quaisquer “outras”. Aliás, não creio que haja na história do cinema muitos filmes capazes de resolver de forma, pelo menos, ágil, essa tensão entre o que se mostra e que é objecto de escuta — penso, por exemplo, em alguns trabalhos do chileno Patricio Guzmán e, mais que tudo, no génio inigualável da voz off de Jean-Luc Godard na sua obra-prima Deux ou Trois Choses que Je Sais d’Elle (1967), retrato sociológico da região parisiense que se vai transfigurando em sublime digressão filosófica.
Dito isto, importa também acrescentar que, na sua fragilidade, Campo é um objecto pouco comum no contexto da produção portuguesa, de alguma maneira ajudando a questionar os valores (e limites) de um certo “boom” da produção documental. Seria, sobretudo, saudável que os espectadores compreendessem que, para além da maior ou menor consistência dos resultados, há um trabalho que tenta discutir as formas de representação do seu/nosso país. Isto porque documentar não é confirmar, mas dar a ver e perguntar.