segunda-feira, agosto 26, 2019

António Variações e o seu fado

Chegou, finalmente, às salas escuras o filme Variações, um retrato feito a partir de uma genuína admiração pelo cantor, celebrando a música, desenhando o mapa do seu destino — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto).

Nos últimos meses, muito se tem dito, falado e comentado sobre o filme Variações, de João Maia (finalmente nos cinemas). Importa dizer: ainda bem. Além de termos assistido a uma campanha promocional sóbria e bem concebida, isso significa também que é possível gerar expectativas saudáveis em relação a um filme português. Não por razões banalmente patrióticas, antes porque, na sua mais desarmada verdade, se trata de descobrir um... filme.
Tal não impede que, no labirinto mediático, se pressinta uma sugestão mais ou menos anónima sobre a necessidade de testar a “veracidade” do retrato de António Variações (1944-1984) proposto por João Maia. Vale a pena enfrentarmos essa questão. Por uma razão muito básica: se os filmes portugueses (mas a questão será válida para qualquer filme, de qualquer origem) começarem a ser reduzidos a relatórios de uma qualquer contabilidade “factual”, como se fossem um exercício de “fact-checking” (para usarmos a expressão consagrada pelo jornalismo global), então é o simples amor do cinema que será desqualificado.
Mais do que isso: deixaremos de ser espectadores e reduzimo-nos a autómatos sem pensamento nem emoções. Na nossa estupidez fundamentalista, acabaremos mesmo por deitar Casablanca (1942) para o lixo porque o Rick’s Café não ficava em Marrocos, mas em Burbank, Califórnia, nos estúdios da Warner Bros.
Não sejamos ingénuos. Claro que se trata de abordar uma pessoa real, para mais ocupando um lugar fulcral nas dinâmicas criativas da moderna música portuguesa (decisivo, a meu ver, na discussão das relações entre tradição e experimentação). Mas não é menos claro, creio, que estamos também perante um filme construído a partir de uma genuína admiração por essa pessoa. Daí a encararmos Variações como um objecto que tem de prestar contas “enciclopédicas” sobre o seu próprio trabalho dramatúrgico vai um passo que nos retira da fruição do espectáculo, empurrando-nos para a ignorância das especificidades de qualquer narrativa.
Qual, então, a narrativa que nos é proposta? A mais simples, que é também a menos esquemática. A saber: a afirmação, aliás, a construção de uma identidade através da paixão pela música.
Há neste retrato de António Variações um visceral impulso fadista (é um pormenor, mas creio mesmo que ele representa a mais ousada, paradoxalmente também mais fiel, reinvenção do legado de Amália Rodrigues). E num duplo sentido: primeiro, porque a sua criatividade não é estranha ao património fadista; depois, porque as convulsões da sua história pessoal — da profissão de cabeleireiro à intimidade — foram vividas através desse desejo de enfrentar um fado simbólico, envolvendo as certezas e os imponderáveis de qualquer destino.


Creio que o filme teria ganho em dar outro desenvolvimento às personagens mais próximas de António Variações, em especial Fernando Ataíde e Rosa Maria, fundadores da discoteca Trumps. O que não impede, entenda-se, que Filipe Duarte e Victoria Guerra sejam exemplares nas respectivas interpretações. Aliás, mesmo com alguns desníveis no interior do elenco, Variações consegue aquilo que alguns filmes portugueses, cedendo à mediocridade telenovelesca, têm menosprezado: as personagens podem ter uma passagem efémera pela acção, ou até, em alguns casos, possuir algo de caricatural, mas nada disso as reduz a “cromos” pitorescos que dispensem o investimento singular de cada actor.
Escusado será dizer que a composição de Sérgio Praia é, de uma só vez, o centro irradiante e o ponto de fuga do filme. De tal modo que a sua reencarnação de Variações (com as conotações metafísicas que a palavra “reencarnação” possa envolver) implica um desafio profissional tão estimulante quanto difícil. A saber: o desafio de não se deixar “prender” ao sucesso de composição de uma personagem, seja ela qual for.
Dito isto, sublinhemos a admirável capacidade de Sérgio Praia ser um corpo e uma presença (uma coisa não esgota a outra...) em íntima ligação com o olhar frio e perscrutante da câmara. Não é todos os dias que um filme, português ou não, nos oferece tal dádiva.