sexta-feira, setembro 20, 2019

Conversa com Paulo Branco [2/2]

O filme A Herdade (estreia quinta-feira, dia 19) é uma realização de Tiago Guedes que nasceu de uma ideia do produtor Paulo Branco. Trata-se, afinal, de revisitar um tempo português, pré e pós-25 de Abril, começando num sistema quase feudal, passando pela Revolução e chegando ao período do neo-liberalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Setembro).

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Num tempo em que para muitos espectadores, sobretudo mais jovens, a produção cinematográfica americana se define apenas através dos “blockbusters” de super-heróis que, de três em três meses, são injectados no mercado mundial, Paulo Branco não esquece a nobreza clássica de Hollywood — e, em particular, a sua gloriosa tradição melodramática. Tal memória foi mesmo marcante na relação de trabalho com o realizador: “Conversámos sobre dois ou três exemplos de filmes em que a figura central acaba por destruir o seu universo familiar, sem ter noção das consequências dos seus actos. A referência fundamental foi Vincente Minnelli, nomeadamente um filme como Home from the Hill [A Herança da Carne, 1960], com Robert Mitchum. Depois, o guião foi-se construindo com o Rui Cardoso Martins. A partir daí, o Tiago Guedes apropriou-se da história, fazendo o seu filme.”
Em trânsito, de facto. Agora e sempre. E depois de 1971, depois de 1974? Que aconteceu quando voltou a Portugal… mas Paulo Branco interrompe a própria formulação da pergunta: “Eu nunca voltei!” Acrescentando um esclarecimento paradoxal: “Digamos que agora estou a voltar mais.”
Que aconteceu, então? “Toda a minha actividade como exibidor e produtor começou em França. Vivi uma história de amor com Paris, mas vim sempre a Portugal com regularidade… Só a partir de 1979/80, com as primeiras produções em Portugal, é que passei a dividir o meu tempo entre Paris e Lisboa. Agora estou mais por cá, inclusive por razões pessoais e familiares.”
Produtor português mais ligado ao cinema francês? Ou produtor mais francês que português? Para Paulo Branco, os rótulos não se adequam à sua trajectória: “Para mim, cada filme é uma aventura, não tem uma nacionalidade precisa. Por exemplo, entre os filmes com Manoel de Oliveira, há uns feitos cá, outros em França, há filmes falados em português, outros em francês. O mesmo se pode dizer quando trabalho com cineastas como Wim Wenders ou David Cronenberg… Em cada projecto aquilo que me mobiliza é saber se o posso tornar uma realidade e, nessa medida, se lhe posso trazer algo de interessante. E ainda se o realizador com quem estou a trabalhar me interessa e também, claro, se eu lhe posso interessar — não é uma simples questão de nacionalidades, depende do espaço em que tudo acontece e do prazer de estar envolvido.”
Na prática, o produtor pode funcionar como promotor de relações de colaboração. Por exemplo, Paulo Branco recorda que há também uma dimensão eminentemente pessoal em Cosmopolis (2012), já que, pensando na transposição do livro de Don DeLillo para filme, foi ele que promoveu o encontro de Cronenberg com o escritor — e o filme rodou-se, não em França ou Portugal, mas no Canadá, país de Cronenberg.
“No fundo, tudo depende da relação com um realizador. O caso de A Herdade terá sido um pouco diferente, já que fui eu a ir buscar um realizador para tratar um determinado tema, tendo também na fase final sugerido o nome de Roberto Perpignani para a montagem.” De resto, Paulo Branco faz questão em explicitar que nunca colocou, nem colocará, o seu nome no genérico de um filme com outra função que não seja a de produtor. A Herdade não é excepção: “A escolha dos actores, a evolução do argumento e, claro, a realização, tudo tem a ver com o Tiago Guedes — este não é um filme de Paulo Branco, é um filme de Tiago Guedes.”
Títulos como O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982), A Cidade Branca (Alain Tanner, 1983) ou Vale Abraão (Manoel de Oliveira, 1993) são referências emblemáticas na trajectória de um produtor que resiste a ser definido como um mero “angariador de meios”, assumindo antes o estatuto clássico de “independente”. Com o seu próprio didactismo: “A intervenção do produtor deve ser discreta, o que não significa que não participe também na organização do processo criativo — deve funcionar como aquilo que eu gosto de chamar o princípio da realidade. Penso que dos filmes que produzi muitos poderiam existir sem mim, mas seriam, talvez, diferentes.”
Nestes tempos de aceleradas transformações da produção e difusão cinematográfica (com o protagonismo recente, mas fortíssimo, das plataformas de “streaming), será que ainda há espaço para essa maneira de ser independente? A urgência da partida para Toronto deixa o possível desenvolvimento da conversa para outra oportunidade, mas é claro que Paulo Branco não encara com optimismo a crescente burocratizarão das formas de financiamento do cinema na Europa. Que fazer? “Tirar os burocratas dos circuitos de decisão.” Já à procura da mala para Toronto, ele próprio formula a pergunta que se impõe: “Será que isso é possível na Europa?”.