quinta-feira, agosto 01, 2019

"Je suis Tony"

Como filmar Tony Carreira? Com o documentário Tony, o realizador Jorge Pelicano apresenta uma visão genuinamente cinematográfica, atenta ao que acontece dentro e fora do palco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Julho).

Com filmes “melhores” ou “piores”, o cinema português tem poucas ideias — e, a meu ver, ideias pouco interessantes — sobre os modos de promover os seus produtos. Aliás, utilizo esta palavra “produtos” como sintoma de tal problema: a sua vulgarização comercial impôs-se como elemento revelador do linguajar de algum marketing (muito para além do cinema, convenhamos) que quase sempre se distingue por um apoteótico vazio de pensamento sobre o mais cultural dos fenómenos, isto é, o mercado.
O cartaz de Tony, o muito sóbrio e muito didáctico documentário de Jorge Pelicano sobre o cantor Tony Carreira, é um depurado exemplo de um marketing que, realmente, pensou. E que, por isso mesmo, sabe identificar o objecto fulcral do filme que divulga e promove. O que, entenda-se, é tanto mais interessante quanto a imagem de Tony Carreira tende a ser um factor de clivagem na própria sociedade portuguesa — como se a sua simples exposição implicasse uma divisão simbólica dos cidadãos.


“Gostar” ou “não gostar” de Tony Carreira? Sim, claro, podemos formular a questão. Mas será que ela nos abre as portas do próprio fenómeno que quer abarcar?
Evitemos generalizações grosseiras. Por mim, não necessito de me submeter a qualquer purificação ideológica para conjugar, como complementares, dois enunciados muito básicos: primeiro, não me sinto mobilizado ou seduzido pelo universo musical de Tony Carreira; segundo, não creio que isso seja uma justificação para tratar a pessoa, ou o seu trabalho, como uma “outra” forma de ser português.
Colocá-lo num território a cuja portugalidade eu não pertenceria seria demitir-me de conhecer a pluralidade da própria comunidade a que pertenço. Do mesmo modo, situar-me numa dimensão portuguesa a que ele não teria o direito de aceder seria ainda mais simplista — seria pura estupidez.
Sinto necessidade de definir este preceito existencial pela mais triste das razões. A saber: não é fácil ser português, interessarmo-nos pelas infinitas facetas dos nossos modos de ser, sem que se insinue no nosso viver uma compulsão (frequentemente favorecida pelo jornalismo mais medíocre, é verdade) segundo a qual a nossa identidade colectiva seria um apocalipse de “prós” e “contras” ou, o que vem a dar no mesmo, um processo compulsivo de permanente unicidade.
Claro que os valores dominantes do imaginário futebolístico passaram a ter um peso determinante na transformação dessa dinâmica colectiva numa guerra, literal e simbolicamente, clubista. Sabemos também que os clubismos mais grosseiros têm pontuado de forma cruel a história dos filmes em Portugal, afinal abrindo espaço para a emergência, desenvolvimento e amplo domínio de um sistema de produção regido pelos valores narrativos da telenovela (e não creio que fenómenos pontuais como os números de bilheteira de alguns filmes produzidos ou realizados por Leonel Vieira consigam transformar tais valores em linguagem específica de cinema).


Mérito de Jorge Pelicano, neste caso concreto. Em vez de reduzir Tony Carreira a um joguete de clivagens de “gosto”, o seu filme organiza-se a partir de uma atitude genuinamente cinematográfica. A saber: documentar os modos de existência, dentro e fora do palco, de alguém que, afinal, é um peão (invulgar, sem dúvida) de vários capítulos das últimas décadas da nossa história colectiva, a começar pelo período mais intenso de emigração para França (decididamente mais complexo do que os clichés que a ele sempre se colaram).
Componente essencial do universo de Tony Carreira, mais do que a mobilização de multidões, é a sua postura “evangélica” face aos admiradores (sobretudo mulheres, mas também homens). Dir-se-ia que por ele passa uma ideia de redenção que, em boa verdade, não é estranha a personalidades da música popular das mais diversas geografias. Reconhecer o poder de tal ideia, porventura da sua utopia, não é cómodo. Porquê? Porque desse modo compreendemos que esta sociedade da “comunicação” em que dizemos viver continua a ser atravessada pelas mais insólitas formas de misticismo.