Como se prova, uma vez mais, através do filme Snu, a telenovela mantém o seu domínio imperial sobre muitas narrativas made in Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título '"Snu" e o imaginário telenovelesco'.
1. Com a estreia do filme Snu, uma realização de Patrícia Sequeira que evoca Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro, reencontramos na produção portuguesa os efeitos de um drama sem fim à vista: desde a comédia mais básica até ao melodrama com referências históricas (é o caso), o império da telenovela mantém-se todo poderoso. Triunfam, assim, três componentes de encenação que são outros tantos princípios ideológicos:
— maniqueísmo psicológico;
— naturalismo esquemático dos actores;
— confusão entre "duplicação" figurativa (cenários, guarda-roupa, etc.) e realismo.
2. Não está em causa a importância de o cinema de um país arriscar lidar com referências tão próximas da história nacional, para mais atraindo uma energia simbólica — a começar pela celebração de uma vida a dois que não se submeteu a retrógrados valores sociais e religiosos — a que todos podemos ser sensíveis. Em boa verdade, importa reconhecer que esse tipo de risco é muito pouco frequente na produção audiovisual portuguesa. Seja como for, nenhum acontecimento, tema ou memória existe como caução narrativa para o que quer que seja. Dito de outro modo: narrar é um sistema de escolhas para lidar com determinado acontecimento, tema ou memória — neste caso, uma vez mais, prevaleceu a redução de personagens e ambientes a índices mecanicistas de uma época específica. A ponto de o filme não compreender que o seu modo de integração das imagens de arquivo (por vezes, colocando no mesmo plano o actor que interpreta Sá Carneiro e imagens televisivas do próprio Sá Carneiro...) destrói, imagem a imagem, som a som, qualquer hipótese de verosimilhança dramática.
3. Enfim, tudo isto tem sido mediaticamente servido por uma ideologia (complementar) que trabalha para a mais estúpida normalização das memórias do Estado Novo. Não quero com isto dizer que o filme enquanto objecto artístico ou a sua realizadora sejam cúmplices de tal estupidez — nada disso. Acontece que, sempre que há alguma abordagem dos tempos do salazarismo e marcelismo, reaparece na comunicação social (?) essa inanidade jornalística (?) que descreve a ditadura como uma paisagem sem nuances: de um lado havia a repressão que fazia com que todos os cidadãos vivessem enjaulados em suas casas, com medo de sair à rua; do outro lado apenas existiam alguns solitários heróis (p. ex., Snu e Sá Carneiro, eventualmente Eusébio ou os cantores de protesto) que simbolizavam a possibilidade de se viver de outro modo.
4. Como chegámos a semelhante miséria histórica? Claro que mais de quatro décadas de formatação telenovelesca do espaço cultural português têm contribuído (e muito!) para que, também na memória colectiva, se instale um sistema de violentos maniqueísmos, a ponto de não ser possível pensar a ditadura a não ser como um contraste pueril entre os "maus" que proibiam e os "bons" que eram proibidos... Em boa verdade, tal modelo de contrastes passou a contaminar quase tudo, desde as discussões em torno das diferenças de géneros até aos omnipresentes conflitos do espaço futebolístico (estes, em boa verdade, promovidos à condição de compulsiva linguagem quotidiana).
5. Não é, então, verdade que Portugal viveu um tempo ditatorial que marcou os comportamentos e pensamentos de várias gerações? Não é também verdade que a ditadura desembocou no mais cruel menosprezo pela vida íntima da nação, sacrificando muitos jovens na Guerra Colonial? Claro que sim. Tudo isso é verdade, perturbantemente verdade. O que não impede que sublinhemos a diferença que existe entre a exigência de conhecer a complexidade de tais vivências e a redução de tudo o que aconteceu (e acontece) a um imaginário telenovelesco que se enraiza numa militante ignorância do factor humano.
6. A minha geração (cujos rapazes, importa não esquecer, foram os primeiros a serem libertos da obrigação "nacional" de pegarem numa G3 e irem combater para o "Ultramar") não está isenta de responsabilidades na instalação dessa visão do Estado Novo em que não houve nada a não ser censura e PIDE... Não que devamos ceder aos nostálgicos de coisa nenhuma que, de forma mais ou menos hipócrita, tentam sugerir que tais entidades de repressão não configuravam uma ditadura. Bem pelo contrário. O certo é que aquela visão de piedosa vitimização do povo português recalca tudo o resto. Será que há pessoas da minha geração que esqueceram (ou fazem por esquecer) as "guerras" entre Beatles e Rolling Stones? Ou a perturbante descoberta de Easy Rider? Ou ainda a indizível estranheza, crua e sensual, misteriosa e criativa, que pudemos pressentir nos romances de Fernando Namora?
7. A minha geração não soube, de facto, construir um legado coerente de memórias que nos faculte instrumentos para lidarmos com as alegrias e tristezas que vivemos sob ditadura — repito: alegrias e tristezas. Dir-se-ia que nem sequer soubemos (ou sabemos) passar a ideia de que, de facto, seriamente, estávamos vivos. E que não queremos que nos reduzam a figurantes passivos, sem ideias nem emoções, de um sistema ditatorial. Até porque viver em democracia renegando a pluralidade das nossas heranças históricas contribui para deixar morrer uma parte do que somos — e do que podemos ser.