segunda-feira, outubro 31, 2016

Marilyn — memórias fotográficas (3/4)


Uma exposição em França, numa instituição de Aix-en-Provence, refaz a história de Marilyn Monroe através de algumas das suas mais emblemáticas fotografias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro), com o título 'A arte de fazer pose segundo Marilyn'.

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Nascido na Transilvânia, no então império austro-húngaro, [Andre de] Dienes fixara-se em Los Angeles na década de 1930. Quando conheceu Norma Jeane em 1945 — ele com 32 anos, ela com 19 —, fotografou-a ao longo de uma viagem de milhares de quilómetros através dos estados de Califórnia, Arizona, Nevada e Oregon, com um resultado paradoxal: o portfolio corresponde ao bloco-notas de uma história de amor e também ao nascimento de uma “pin-up”. Afinal de contas, a própria Marilyn nunca escondeu que as suas poses iniciais, para revistas e calendários, corresponderam a uma muito básica forma de sobrevivência.
Entre as imagens desse período, o lendário nu assinado por Tom Kelley em 1949 entraria na mitologia erótica da década seguinte, ao ser publicado, em Dezembro de 1953, na primeira edição da revista Playboy. Grandes mestres do século XX estão, obviamente, representados, incluindo Cecil Beaton (1904-1980), Philippe Halsman (1906-1979) e Milton Greene (1922-1985), este último o que mais a fotografou no período de maior glória em que protagonizou filmes como Niagara (Henry Hathaway, 1953), Os Homens Preferem as Louras (Howard Hawks, 1953), Rio Sem Regresso (Otto Preminger, 1954), o já citado O Pecado Mora ao Lado e Paragem de Autocarro (Joshua Logan, 1956).
Em qualquer caso, talvez só o muito pouco lembrado Ed Feingersh (1925-1961) se tenha aproximado da sensação de intimismo e cumplicidade que encontramos nas fotografias assinadas por Sam Shaw ou Andre de Dienes. Foi o próprio Milton Greene que lhe propôs a tarefa de retratar os bastidores de trabalho de Marilyn. Feingersh apenas a acompanhou durante uma semana (de 24 a 30 de Março de 1955), mas o seu portfolio sabe dar a ver tanto o elaborado aparato dos ensaios quanto a vulnerabilidade de uma “mulher como as outras”, na altura a viver de forma discreta no Ambassador Hotel, por vezes deambulando, incógnita, pelas ruas de Manhattan.
Como se escreve no texto de apresentação da exposição de Aix-en-Provence, a relação de Marilyn com a fotografia enraíza-se num tempo anterior à entrada no universo de Hollywood: “Desde muito jovem, devorava as revistas de cinema e as suas imagens idealizadas, despertando-a para o interesse pela fotografia. Ao começar como modelo e ‘pin-up’, rapidamente se apercebeu de como a imagem seria importante no lançamento da sua carreira no cinema.”
Resta não esquecer que o título da exposição, “I Wanna Be Loved By You” (à letra: “quero ser amada por ti”) é o verso de abertura, e também o título, de uma canção que Marilyn canta nessa obra-prima da comédia clássica que é Some Like it Hot/Quanto Mais Quente Melhor (1959), de Billy Wilder. No refrão, ela acrescenta alguns sons plenos de promessas: “Boob-boop-a-doop!”... [video] Há coisas que, de facto, importa não tentar explicar.


[continua]

"Dark End of the Street" [canções]

RY COODER
Dark End of the Street
Boomer's Story (1972)


As narrativas de José Sócrates

Variety, 25 Out. 2016
[Batman, personagem do património da Warner
e o símbolo da At&T]
A televisão é um mapa de narrativas: três anos depois, a palavra que era "ridícula" quando usada por José Sócrates tornou-se uma moda mediática — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (28 Outubro), com o título 'Um país de narrativas'.

1. Os recentes movimentos da AT&T (empresa multinacional de comunicações com sede em Dallas, Texas) no sentido de adquirir a Time Warner são reveladores de uma conjuntura realmente global: os canais de difusão mostram o seu apetite pelos produtores de “conteúdos”. Na sua complexidade financeira (poderão estar envolvidos 85 mil milhões de dólares), o potencial negócio não constitui, em si mesmo, garantia de uma “melhor” ou “pior” televisão. Mas não tenhamos dúvidas: está em jogo uma “outra” televisão, muito para além da ensimesmada discussão dos trágicos efeitos normativos com que a ideologia da CMTV tem contaminado o nosso pequenino espaço audiovisual.

2. Que personagens de todo o espectro político, do puritanismo da direita ao voluntarismo da esquerda, se unam na mesma indiferença por tal catástrofe jornalística e cultural, eis o que diz bem da sua percepção da paisagem televisiva. Não que deles esperemos uma distribuição de “culpas”... Infelizmente, nada é tão simples. Acontece que, há muitos anos, a esmagadora maioria dos actores da cena política parece não ver no espaço audiovisual outra coisa que não seja uma montra da sua própria “actividade”, numa vertigem orgulhosamente sem objecto. Como escreveu Hannah Arendt, a política passou a “banir-se a si própria do mundo”.

3. Na melhor das hipóteses, tão pobre espectáculo concede-nos o sabor amargo de um humor involuntário. Observe-se a burlesca proliferação do conceito de “narrativa”. Subitamente, passou a ser chique dizer que a luta política é também um jogo de “narrativas” que se cruzam ou colidem. Três anos depois de José Sócrates ter sido “socialmente” escarnecido pelo uso da palavra “narrativa”, olhamos à nossa volta e parece que o mundo foi invadido por um exército de discípulos do ex-ministro — dir-se-ia a versão lusitana de The Walking Dead.

domingo, outubro 30, 2016

Memória de Jaime Fernandes

FOTO: Rádio Renascença
A notícia da morte de Jaime Fernandes [DN] surgiu como uma daquelas informações que recebemos com um misto de espanto e incredulidade. Aos 69 anos, mantendo uma intervenção emblemática na RTP, como Provedor do Telespectador [Voz do Cidadão], sentíamos a sua presença regular como expressão de uma serenidade que, afinal, sempre pontuara os seus trabalhos, nomeadamente em programas de rádio como Rock em Stock e Som da Frente ou, mais recentemente, emprestando a sua voz à série da RTP sobre a música popular portuguesa, Estranha Forma de Vida [video: 1º episódio].
A voz, justamente. Se é verdade que a nossa relação com os outros passa pelas sonoridades que deles recebemos (e devolvemos), Jaime Fernandes possuía uma voz que, em público ou em privado, correspondia a uma postura de escuta e disponibilidade que envolve, a meu ver, um inestimável valor humanista.
Em termos pessoais, nunca fui próximo de Jaime Fernandes. Ainda assim, por motivos profissionais ou através de diálogos mais ou menos acidentais, penso nele como alguém com que tive o privilégio de me cruzar ao longo de quatro décadas, desde logo nos atribulados anos 70. Com ele, e para ele, um acontecimento tão particular como o aparecimento da banda sonora de A Última Valsa (1978) era, não tenho dúvidas, mais importante que as ondas de choque de qualquer diatribe da cena política — fica a tristeza de saber que, agora, essa cumplicidade só se renovará no plano imaginário.

Cumberbatch / Strange

Por uma vez, com Doutor Estranho, a Marvel faz algo mais do que entregar a gestão de um filme ao departamento de efeitos especiais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'A inteligência das formas'.

Não será por acaso que o Mestre de Doutor Estranho é um Ancião que, afinal, é uma Anciã (ambiguidade que a língua inglesa contorna com a habitual frieza: “The Ancient One”). Que essa personagem seja interpretada pela especialista de todas as ambiguidades que é Tilda Swinton, eis o que sinaliza de modo exemplar a trajectória do herói: para além de qualquer diferença sexual, até mesmo para além de qualquer diferença humana, a sua saga tem a ver com aquilo de que não é possível sair. A saber: o Tempo (com maiúscula, se me permitem, já que convém mantermos alguma pompa face a tão extremo desafio).
Há outra maneira de dizer isto e é surpreendentemente simpática para o filme que entroniza o sempre brilhante Benedict Cumberbatch no país dos ordenados com, pelo menos, sete algarismos (nada conta, caro Sherlock): por uma vez, os estúdios Marvel esforçaram-se na fabricação de algo mais que imagens de telemóvel que já ninguém vê (e sons ensurdecedores cada vez mais difíceis de suportar), sabendo tirar partido das atribulações de um herói que vive numa paisagem que celebra, ponto por ponto, os poderes do próprio espectáculo do cinema. A saber: a ligação festiva de qualquer espaço com qualquer outro espaço e essa vertigem temporal que nos arrasta e liberta como um jogo de vídeo, desta vez deliciosamente filosófico.
Até mesmo o cliché do “filme de efeitos especiais” adquire, aqui, uma inesperada justeza. Mais do que um fogo de artifício mais ou menos vistoso, assistimos a um trabalho de manipulação das linhas e dos volumes que volta a celebrar o ecrã como uma janela para todos os mundos alternativos que nos atrevermos a imaginar. A inteligência das formas é sempre um valor mais que estimável. E é bom que, no seio da poderosa Marvel, ainda haja quem não o tenha esquecido.

sábado, outubro 29, 2016

"I'm Going Home - Live at Woodstock" [canções]

TEN YEARS AFTER
I'm Going Home - Live at Woodstock
Goin' Home (1970)


Uma escola da Eslovénia

Uma boa surpresa no nosso Outono cinematográfico: O Inimigo da Turma, um filme da Eslovénia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Outubro), com o título 'Repensar a escola através do cinema'.

Passámos a usar a expressão “redes sociais” como uma espécie de abre-latas da consciência colectiva. Na prática, quase ninguém pergunta o essencial, certamente o mais incómodo: com a proliferação de insinuações, insultos, difamações, meias verdades e histéricas mentiras que por elas circulam, que tipo de relações sociais estamos a construir?
Aliás, o mesmo se pode aplicar ao espaço televisivo que, para o melhor e para o pior, funciona como a “praça pública” das nossas sociedades: de que modo as suas imagens (e sons!) definem as regras, e também os valores, da nossa percepção colectiva? Exemplo destes dias: algumas formas de cobertura jornalística do caso do fugitivo de Aguiar da Beira.
“Mas então são as televisões que têm a culpa dos crimes?” — eis a pergunta que, tristemente, emerge sempre que alguém, nem que seja apenas em nome do bom senso, tenta problematizar tais questões. Ora, o problema não está na “culpa”. Deixemos essa ginástica moral para os comentadores de futebol que gostam de acusar os “culpados” dos golos... O problema está na percepção do social como palco de um pânico que é convocado como um insidioso fantasma (“medo” tem sido mesmo a palavra mais explorada). Dito de outro modo: mesmo sem ignorarmos a perturbação das notícias que chegam de Aguiar da Beira, a sua narrativa dominante é mais alarmista do que qualquer consideração sobre os perigos inerentes à utilização da energia nuclear pelo Irão.
Não admira que, numa conjuntura marcada por esta ligeireza, o cinema seja um dos domínios mais penalizados no seu impacto (social, justamente). Em termos práticos, a sua capacidade de convocar personagens e situações que remetem para importantes temáticas do presente tende a ser ignorada, privilegiando-se uma exaltação pueril das suas formas de “espectáculo”.
Aí está o também significativo exemplo do filme esloveno O Inimigo da Turma, de Roc Bicek, cineasta de 31 anos aqui a assinar a sua primeira longa-metragem de ficção. Podemos inscrevê-lo numa longa e nobre tradição de abordagem de dramas escolares que inclui títulos tão marcantes como o americano Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, ou o francês A Turma (2008), de Laurent Cantet. Inspirado em factos verídicos, nele assistimos às convulsões internas de uma escola, nascidas do conflito de uma turma com um novo professor de alemão — quando uma aluna se suicida, instala-se uma violência psicológica que começa na tentativa de transformar o professor em bode expiatório da situação...
Desde as dúvidas inerentes a qualquer prática de ensino à necessidade de não reduzir a juventude a uma “classe” à parte, pitoresca e sem responsabilidades sociais, são muitos os temas que, de forma sóbria e muito séria, perpassam em O Inimigo da Turma. Seria um bom pretexto para repensar a escola através do cinema, mas não foi... Porquê? Porque faz medo.

Marilyn — memórias fotográficas (2/4)

FOTO: Sam Shaw, 1954
Uma exposição em França, numa instituição de Aix-en-Provence, refaz a história de Marilyn Monroe através de algumas das suas mais emblemáticas fotografias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro), com o título 'A arte de fazer pose segundo Marilyn'.

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Por onde começar? Talvez por uma daquelas imagens que todos identificam como um ícone, mesmo quando não conhecem o filme a que pertence: Marilyn está numa rua de Nova Iorque, fazendo pose sobre uma grelha do metropolitano; o ar que vem das entranhas da terra (a metáfora é irresistível) levanta-lhe o vestido, reagindo ela com a alegria ambígua de uma menina que não sabe se está a confirmar as nobres exigências do pudor ou a testar o seu potencial de sedução.
Deixemos a resolução do enigma para os espectadores de pensamento mais arrumado. Lembremos apenas que se trata de uma cena do filme The Seven Year Itch (1955), do mestre Billy Wilder, comédia pouco ortodoxa sobre a atribulada convivência de um homem casado, interpretado por Tom Ewell, com a vizinha do lado (Marilyn) — entre nós, para evitar confusões, chamaram-lhe O Pecado Mora ao Lado. A fotografia é, ela própria, um sugestivo mapa mitológico: Marilyn está a ser didacticamente observada por Ewell, mas a metade direita da imagem surge ocupada por um batalhão de figuras (técnicos e mirones) que definem o próprio poder do evento cinematográfico. A saber: ocupar a banalidade do quotidiano e, através da presença de uma star, transformar a evidência realista em matéria de lenda.
Quem assina a imagem do vestido ondulante é Sam Shaw (1912-1999), fotógrafo de uma sensualidade à flor da pele que alguns espectadores portugueses recordarão com especial emoção: em 1992, a convite de Mário Ventura e Salvato Telles de Menezes, foi uma presença fascinante e inesquecível no Festival de Tróia (entretanto, há cerca de um ano, a sua obra foi evocada numa exposição organizada pela Fundação D. Luís, no Centro Cultural de Cascais).
Shaw, que também foi produtor de filmes do seu amigo John Cassavetes, deixou um legado muito rico e original, em particular através do modo como fotografou Marilyn e Marlon Brando, o próprio Cassavetes e a sua mulher Gena Rowlands. Numa altura em que as imagens de actores e actrizes eram ainda rigorosamente controladas e difundidas pelos grandes estúdios (assim impunha a lógica do bem chamado star system), Shaw privilegiava as situações de luz natural, os gestos espontâneos, a ausência de maquilhagem. São especialmente tocantes as fotografias que obteve ao longo de um período de férias no Verão de 1957, em Amagansett (Nova Iorque), passadas na companhia de Marilyn e do então seu marido Arthur Miller — registado por Shaw, o riso de Marilyn envolve uma candura radical, como se os artifícios da pose tivessem dado lugar a uma entrega sem mágoa, vislumbrando-se a verdade mais íntima da esquecida Norma Jeane.
O arco temporal da exposição corresponde a uma saga de impecável dramaturgia: revelação, ascensão, apoteose e ocaso. Tudo começa com as primeiras fotografias assinadas por Andre de Dienes (1913-1985), para se concluir com a célebre “sessão final” que Bert Stern (1929-2013) registou um mês antes da morte de Marilyn (The Last Sitting, de acordo com o título do livro de 1982 que organizou a respectiva memória).
FOTO: Sam Shaw, 1957
[continua]

sexta-feira, outubro 28, 2016

quinta-feira, outubro 27, 2016

Obama Blues

Oito anos na presidência dos EUA: o jornal francês Libération propõe uma balanço do consulado de Barack Obama através de uma edição especial, intitulada Obama Blues.
Na apresentação, o director Laurent Joffrin escreve estas curiosas palavras: "(...) este homem elegante, brilhante, orador entusiasmante, ter-se-á contentado, através do seu estilho exuberante e dos seus discursos brilhantes, em encarnar um sonho e não em conduzir uma revolução".
A descrição é sintomática do mais ancestral maniqueísmo de esquerda: entre o artifício do "sonho" e a crueza da "revolução", não existe nada no meio... Seja como for, apesar disso, e também através disso, este é um trabalho jornalístico de fôlego que merece ser conhecido e pensado.

"Close-Up" em Famalicão

"Close-Up" é um novo projecto cultural do Município de Vila Nova de Famalicão, a iniciar-se hoje, dia 27 (numa primeira fase que se prolonga até domingo, dia 30). A saber:

>>> O nome do Observatório de Cinema de Vila Nova de Famalicão toma de empréstimo o título do filme Close-Up do cineasta iraniano Abbas Kiarostami. Ao mesmo tempo que constitui uma homenagem sentida, assume com esta designação uma dupla perspetiva. Por um lado, explicita uma ideia de diálogo e aproximação à atmosfera cinematográfica que nos projeta, representa e questiona globalmente. Por outro, valoriza dentro desse contexto o espaço de fricção e interação criativa entre a ficção e o real, um traço distintivo e incontornável do cinema de Abbas Kiarostami. Procuramos fazer, de modo análogo, um cruzamento entre a persistência vivencial que molda a nossa identidade e consciência individual e coletiva e a sua persistência imagética enquanto experiência fílmica.

Em foco estarão títulos como Marinheiro de Água Doce (1928), de Buster Keaton (num filme-concerto com Bruno Pernadas), A Infância de Ivan (1962), de Andrei Tarkovski, ou O Filho de Saul (2015), de László Nemes, este sinalizando o tema nuclear do Holocausto e das linguagens fílmicas que o têm convocado. Isto sem esquecer várias iniciativas vocacionadas para a integração do cinema nas escolas — um panorama a ter em conta, tão sugestivo quanto pedagógico, com programa disponível no site do Cineclube de Joane.

Marilyn — memórias fotográficas (1/4)

FOTO: Milton Greene, 1954
Uma exposição em França, numa instituição de Aix-en-Provence, refaz a história de Marilyn Monroe através de algumas das suas mais emblemáticas fotografias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro), com o título 'A arte de fazer pose segundo Marilyn'.

Será que ainda há fotografias inéditas de Marilyn Monroe? A pergunta envolve esse assombramento amargo e doce que associamos à memória trágica de algumas estrelas de cinema. Dir-se-ia que o nosso egoísmo visual favorece a ilusão de que o aparecimento de imagens desconhecidas é um evento mágico que corresponde a uma perversa forma de resgate: cada imagem acrescentada à mitologia relança a sua energia simbólica, afastando a certeza irreversível da morte.
Em todo o caso, sejamos práticos, ou melhor, realistas. Vale a pena repensar o assunto de modo menos crispado e celebrar as imagens, todas as imagens, que já conhecemos. Porque, afinal, o seu poder é tão ancestral quanto o dos bichos desenhados pelos homens das cavernas — cada uma dessas imagens regressa sempre igual, sempre diferente, como se o nosso extasiado olhar fosse o guardião de um saber cristalizado para todas as eternidades.
Assim se apresenta a exposição dedicada a Marilyn que, a partir de hoje [22 Out.] (até 1 de Maio de 2017), está disponível em Aix-en-Provence, no sul de França, a cerca de 150 km de Cannes. Quem a propõe é o Hotel de Caumont/Centre d’Art, instituição gerida pela Fondation Culturespaces que tem também a seu cargo, entre outros espaços culturais, o Museu Maillol de Paris e o Théatre Antique em Orange. O título contém uma demanda de amor — “Marilyn: I Wanna Be Loved By You” —, definindo também uma lógica informativa e didáctica: trata-se de dar a ver a trajectória dessa mulher que nasceu com o nome de Norma Jeane Mortenson (1926-1962) através dos olhares de alguns fotógrafos de eleição.

>>> Trailer da exposição de Aix-en-Provence.


[continua]

quarta-feira, outubro 26, 2016

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2011

ERWIN OLAF
Keyhole 5
2011

SOUND + VISION Magazine / FNAC
— especial BOB DYLAN [hoje]

O Nobel da Literatura antes do Nobel da Literatura: uma história de muitas canções e ideias, palavras e imagens, discos, livros e filmes que vamos recordar no nosso magazine na FNAC do Chiado — Bob Dylan é o tema de eleição para a sessão de hoje, dia 26 de Outubro, às 18h30.

terça-feira, outubro 25, 2016

Nick Cave chega a Marte

Ron Howard e Brian Grazer, produtores de The Beatles: Eight Days a Week, têm um novo projecto documental, desta vez para o canal National Geographic. Tema: o planeta Marte. Em seis episódios, a partir de 4 de Novembro, Mars apresenta-se com música de Nick Cave e Warren Ellis — eis a canção-tema e, em baixo, o trailer da série.



"Metropolis", nº 43

Benedict Cumberbatch está na capa do nº 43 da revista digital METROPOLIS — ele é a muito aguardada encarnação do «Doutor Estranho», mais um herói da Marvel que chega às salas de todo o mundo. Tom Hanks, Xavier Dolan, Ben Affleck, Anne Fontaine e João Botelho são entrevistados numa edição que não esquece as novidades que envolvem Tom Cruise, Woody Allen e Mel Gibson. Toronto e Tóquio são dois festivais em destaque, a par de um panorama dos episódios-piloto da nova temporada televisiva — 190 páginas sobre a exuberante actualidade do espectáculo audiovisual.

"Let it Bleed" [canções]

THE ROLLING STONES
Let it Bleed
Let it Bleed (1969)


segunda-feira, outubro 24, 2016

"Amor de Perdição" — que memórias?

Amor de Perdição (1979), de Manoel de Oliveira, regressou à televisão... Quem se lembra? — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (21 Outubro), com o título 'Perdição televisiva'.

A televisão é um bicho sem memória. Aliás, corrijo: todos os dias, a televisão acumula memórias, evocações, efemérides... Mas tudo se passa como se aquilo que se evoca fosse apenas anedótico, pitoresco, no limite, descartável. Aliás, corrijo outra vez: somos nós, individual e colectivamente, que passámos a aceitar que a memória, televisiva ou não, é apenas um link mais ou menos fútil, dispensável na teia “social” em que vivemos ou julgamos viver. Sinal de hipocrisia? Talvez. Na melhor das hipóteses, somos tristemente distraídos.
Falo de quê? Da recente passagem, no TV Cine, do filme Amor de Perdição (1979), de Manoel de Oliveira. O que está em causa nesta difusão? Nada, entenda-se: poder ver ou rever o prodigioso trabalho de Oliveira sobre as palavras de Camilo Castelo Branco é um privilégio tanto mais relevante quanto a sua exibição se integra num ciclo que inclui, entre outros, os fundamentais Acto da Primavera (1963) e Benilde ou a Virgem Mãe (1975), a 27 e 28 de Outubro, respectivamente.
Falo então de quê? Do pueril apagamento da memória. De facto, ironicamente, importa lembrar que Amor de Perdição começou por ser exibido na televisão (RTP, 1979), tendo sido objecto de um gigantesco processo de insultos e difamação — podemos conhecê-lo através de um exemplar trabalho de investigação de Fausto Cruchinho, publicado em 2001 pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra.
Passaram-se 37 anos e podemos também perguntar: como está o país que, agora, recebe Amor de Perdição (de novo na televisão!) em bizarro silêncio? Digamos que se transformou no país em que, depois da morte de Oliveira, quase todos o evocam como um “mestre”. Dantes, havia, pelo menos, os que se atreviam a verbalizar a sua intolerância: não tinham visto e não gostavam! Agora, ninguém se lembra.

Tom Cruise / Jack Reacher

A personagem de Jack Reacher está a transformar-se num novo conceito de produção de e com Tom Cruise — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Outubro), com o título 'Tom Cruise à procura de uma nova “franchise"'.

Tom Cruise não brinca em serviço. Envolvido como actor/produtor na série Missão Impossível, desde 1996 (iniciada com um filme magnífico, assinado por Brian De Palma), ele conhece bem o valor comercial dos filmes centrados nas aventuras de uma personagem capaz de combinar mistério e ousadia — neste caso, o agente super-secreto Ethan Hunt. Como se diz na gíria da indústria, estamos perante uma “franchise” de sucesso: os cinco títulos já produzidos (há um sexto previsto para 2018) acumularam uma receita global de quase 2,8 mil milhões de dólares (um pouco mais que 2,5 mil milhões de euros).
2012
Se outras razões não houvesse, tal contabilidade seria suficiente para explicar o interesse de Cruise pela personagem de Jack Reacher, saído das páginas dos romances do inglês Lee Child: um ex-major, aventureiro mais ou menos anónimo, mais ou menos errante, apostado em combater os que utilizam os seus poderes de forma abusiva. E aí o temos, pela segunda vez, a produzir e interpretar Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás, quatro anos passados sobre o lançamento do primeiro título, Jack Reacher, com a mesma personagem; em 2012, a realização era assinada por Christopher McQuarrie (também responsável por Missão Impossível V), agora é o veterano Edward Zwick a comandar as operações.
O mais curioso na personagem de Reacher é o seu anacronismo cinematográfico. Ao contrário de Ethan Hunt, ele não é alguém que aplique a mais sofisticada tecnologia para conseguir os seus intentos: distingue-se por uma invulgar força e agilidade, mas sem que isso lhe empreste qualquer dimensão sobre-humana próxima das características de alguns super-heróis. Podemos até considerá-lo como uma actualização perversa de um modelo de herói que provém do western clássico: um vingador que deambula pelas paisagens (agora urbanas), sempre empenhado em repor a ordem.
2016
Através desse dispositivo, Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás colecciona de forma discreta, mas sugestiva, alguns sinais perturbantes que podemos ler como outros tantos fantasmas da América contemporânea. Desde a falibilidade das hierarquias à presença das drogas no quotidiano, o filme possui essa capacidade de expor alguns sintomas dos medos e inquietações de um país, nessa medida fazendo lembrar o espírito dos velhos “filmes negros” da época áurea de Humphrey Bogart & Cª.
Infelizmente, os resultados estão muito limitados pela “obrigação” de cumprir uma agenda de cenas (ditas) de acção que, em boa verdade, por vezes, cortam a própria intensidade dramática dos eventos narrados. Edward Zwick é, obviamente, um profissional que sabe manter-se atento aos pormenores e ambiguidades de cada situação, mas não consegue que Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás supere uma mediania mais ou menos previsível. Ponto importante é o contraponto feminino: Cobie Smulders faz o que pode na companhia de Cruise, mas está longe de conseguir assumir o tom de festivo desafio ao herói masculino encarnado de forma brilhante, no primeiro filme, por Rosamund Pike.

domingo, outubro 23, 2016

O mal irreparável [citação]

>>> S. de B. — Será que não poderíamos dizer que uma moral sem Deus é mais exigente, uma vez que acreditando em Deus é sempre possível encontrar perdão para os erros cometidos, pelo menos na Igreja católica, enquanto que, não acreditando em Deus, um mal feito contra o homem é absolutamente irreparável?
J.-P. S. — Absolutamente. Considero que todo o mal é, em si mesmo, irreparável, não só porque aconteceu, e é mau, mas também porque tem consequências de ódio, revolta, de mais mal, mesmo quando aponta para uma saída que é melhor. De qualquer maneira, o mal está lá, profundo.

SIMONE DE BEAUVOIR
Folio/Gallimard, 1981

sábado, outubro 22, 2016

A IMAGEM: David Sipress, 2016

DAVID SIPRESS
'Trump Times'
The New Yorker, 20 Out. 2016

Eurythmics, 1986



Sinais de fixação de uma nova imagem e de um novo som que tinham emergido em 1985 com o álbum Be Yourself Tonight marcaram as escolhas dos singles e as opções visuais para os telediscos extraídos de Revenge, o LP que os Eurythmics lançaram no verão de 1986. Há 30 anos, com a chegada do Outono, Thorn In My Side era a canção que vincava a visibilidade a uma nova etapa na carreira do duo constituído por Annie Lennox e Dave Stewart.

Mapas para compreender o presente

O império Acádio floresceu entre as margens do Tigre e o Eufrates entre os anos 2340 e 2200 a.C., primeira etapa maior de um processo de evolução subsequente da região, que assistiu ao nascimento de outros reinos e de rivalidades até uma unificação de grande parte daqueles lugares sob o poder Assírio depois do ano 934 a.C.... Os reinos nascidos no alto e baixo Egito, alargando-se até às regiões da Núbia (mais a Sul), viveram vários episódios de confrontos militares com os Hititas. Em poucos anos um rei da Macedónia, Alexandre (o Grande) alargou as fronteiras das suas possessões desde o Mar Egeu ao sub-continente indiano, abarcando toda a Ásia Menor e Egito. De um pequeno núcleo original Roma cresceu para se afirmar como uma grande capital imperial, acompanhando a cidade os destinos geográficos de um tempo em que o mundo romano se alargou a todo o Mediterrâneo, chegando, a norte, à Britânia e à Germânia. Estas são algumas das histórias mais antigas que podemos recordar em L’Atlas des Empires, uma edição especial de 186 páginas do Le Monde que, sobretudo ilustrada com mapas, nos dá a conhecer as histórias dos grandes impérios e das consequentes movimentações de povos. Não apenas para entender o que ocorreu mas, sobretudo, para compreender as raízes de muito do mapa de distribuição de comunidades, culturas e até mesmo de conflitos que fazem o nosso presente. Daí a nota que surge em rodapé na capa, onde se lê "où est le pouvoir aujourd'hui?".



A revista está dividia em grandes grupos geográficos, culturais ou crononológicos, antecedidas por um prólogo que debate o que é um império e o que está nas suas géneses, juntando alguns mapas e quadros cronológicos que começam por nos dar uma visão “macro” da História. O primeiro grande grupo recupera os primeiros grandes impérios da antiguidade, entre os quais os que ficaram acima referidos, juntando a China, os khmers, os acontecimentos nas estepes dominadas pelos mongóis entre os séculos IX e XIV da nossa era, sem esquecer o mapa africano pré-colonial e o americano pré-colombiano.

Os impérios muçulmanos ocupam todo um capítulo, observando vários focos de acontecimentos (sem esquecer a presença na Península Ibérica do império Almorávida entre 1061 e 1147, dos seus antecedentes e do que sucedeu depois), explicando também as origens do Irão de maioria xiita e a presença nas regiões da Índia e Paquistão.

 O capítulo seguinte recorda os grandes impérios europeus, desde a divisão do império romano e a afirmação de Constantinopola como importante sede do poder e cultura no seu tempo. Seguem-se mapas (e respetivas contextualizações) que recordam os Carolíngios, o Sacro Império Romano e sua evolução, a Europa de Napoleão, o império austro-húngaro, o progressivo crescimento da Rússia desde o século XII até à fragmentação da URSS e a ascensão e queda da Alemanha de Hitler.


Segue-se um olhar panorâmico sobre os impérios coloniais, que abre com a expressão global do mapa português, seguindo-se o espanhol, o holandês e o britânico. Há ainda olhares sobre as expressões do colonialismo francês, alemão e japonês. O capítulo final questiona o fim ou um reequacionar da ideia de império no presente. Começa por identificar esferas de poder com foco nos EUA, URSS e China, olhando depois para a divisão atual do mundo entre potências estáveis e emergentes. Os mapas observam depois comportamentos económicos, a divisão da população em função das idades médias e há ainda um retrato do mundo em função dos direitos humanos.

À lupa olha-se depois para os EUA, a Rússia na era de Putin, a quem a revista chama “o novo czar”, a China, a Índia, o Daesh e a União Europeia. E termina com mapas que dão conta da expressão da Internet e das multinacionais no presente e com uma entrevista com a filósofa Catherine Clément que nos diz que a revolução digital dissolveu a ideia de império.

sexta-feira, outubro 21, 2016

"O Ornitólogo" e a sua natureza

Com O Ornitólogo, João Pedro Rodrigues prossegue uma filmografia tecida de originalidade e ousadia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Outubro), com o título 'A natureza nunca existiu'.

Perante a singular beleza de um filme como O Ornitólogo, importa começar por sublinhar o mais básico. O realizador João Pedro Rodrigues é criador de um universo que existe como um continente autónomo e mágico, inclusive através dos títulos em que tem partilhado a realização com João Rui Guerra da Mata (aqui presente, de novo, como co-argumentista e responsável pela direcção artística). Estamos perante um universo enraizado numa pulsão realista, paradoxal e envolvente, exemplarmente assumida pelo trabalho de direcção fotográfica de Rui Poças.
Daí a insólita sinopse desta aventura por terras e águas de Trás-os-Montes. Fernando (Paul Hamy), o estudioso dos pássaros, começa por ser aquilo que qualquer filme que se preze oferece (e retira) ao seu espectador. A saber: um olhar sem equivalente, pessoal e intransmissível como os passaportes, que nos convoca para a descoberta de uma natureza tecida de inusitadas cores e secretos sons. A pouco e pouco, ele descobre (e nós com ele, hesitantes e fascinados) que não há nada de natural na natureza.
Tudo se passa como se a natureza nunca tivesse existido. Fernando vai vivendo e sobrevivendo como incauto figurante de uma odisseia em que tudo pode ser novo e revelador, desde as convulsões do sexo às intromissões do sagrado, porventura equivalendo-se nesse país sem fronteiras que é o próprio cinema. Será preciso acrescentar que, à sua maneira, O Ornitólogo, é também um filme de resistência? A quê? Ao naturalismo pueril dos nossos tempos televisivos. Em nome de quê? De um gosto de olhar e escutar que celebra o cinema como arte de libertação das evidências. Questão radical, enredada no labirinto do rio Douro? Sim, sem dúvida. Nele redescobrimos o esplendor da tragédia. E também os seus esquecidos humores.

Ver + ouvir:
Le Tigre, I'm With Her



Trio marcante na história do som a que habitualmente se chama riot grrrl, as Le Tigre voltaram a juntar-se para gravar o tema I'm With Her, de apoio à candidatura de Hillary Clinton para a presidência dos EUA.

Novas edições:
Nicolas Jaar, Sirens

Passaram cinco anos desde que a estreia em álbum de Nicolas Jaar, com o promissor Space is Only Noise, o revelava como força criativa a ter em conta no mapa da linha da frente da invenção da música eletrónica. O regresso com um segundo álbum em nome próprio, transforma a promessa numa absoluta certeza. E junta à sua obra – e ao panorama atual – um disco que joga além das fronteiras dos géneros e dos temas, mostrando como a invenção eletrónica transcendeu já em muito os debates de identidade que em tempos possam ter sido levantados, revelando Sirens uma música que tanto é descendente das vivências que estas ferramentas e formas foram vivendo nos terrenos da pop e da música de dança, como reflete heranças de um espaço de experimentação com sons, texturas e elementos que tem necessariamente por origem genética algumas das visões que Stockahusen e outros seus contemporâneos trilharam ao investigar as qualidades e possibildades musicais que o mundo ao seu redor lhes dava como matéria prima numa idade em que novas máquinas entraram em cena ao serviço da composição, moldagem e gravação de sons.

De origem chilena, residente em Nova Iorque, Nicolas Jaar não esteve em silêncio nos últimos anos, tendo ora trabalhado diálogos entre música e imagem (seja na banda sonora de Dheepan de Jaques Audiard ou na criação de uma música alternativa para A Cor da Romã, de Serguei Paradjanov), ora colaborado com outros músicos, entre eles Dave Harrington, com quem formou os Darkside. Sirens assinala o regresso a uma criação a solo, num disco que parte de uma construção de espaço para, sobre ela, ora fazer emergir cativantes canções ou peças instrumentais de formas menos evidentes, por entre os temas afirmando-se, além do esteta, uma voz poética que aqui abre mesmo espaço a ecos de uma consciência política com leitura na história chilena recente.

Para ler (e ver):
Yves Klein na Tate Liverpool

Uma das grandes figuras das artes plásticas do século XX está no centro das atenções da Tate Liverpool, numa exposição que inaugura hoje e estará ali patente até 5 de março.

Vale a pena ler (e ver) aqui.

"Like a Rolling Stone" [canções]

THE ROLLING STONES
Like a Rolling Stone
Stripped (1995)


quinta-feira, outubro 20, 2016

Oliveira revisto por Botelho (2/2)

O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu
Com O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu, João Botelho recorda a herança de um mestre — este texto foi publicada no Diário de Notícias (13 Outubro), com o título 'A propósito de educação'.

[ 1 ]

Segundo a lista oficial do Instituto do Cinema e do Audiovisual, João Botelho tem um dos seus filmes (Os Maias, 2014) no 13º lugar das produções portuguesas mais vistas no período 2004/2016. E, no entanto, o seu discurso sobre o cinema não envolve nenhuma celebração simplista dos números das bilheteiras. Estamos longe, portanto, de qualquer preconceito, pró ou contra, face à eventual grandeza de tais números: afinal de contas, como ele recorda, é verdade que Tubarão (1975), de Steven Spielberg, foi um momento decisivo na mais brutal reconversão dos mercados cinematográficos de todo o mundo, mas isso não impede que Tubarão seja um “grande filme” (eu, em todo o caso, concordo com ele).
Botelho convoca-nos para um retorno ao cinema que supere qualquer visão banalmente economicista dos filmes, sua produção e difusão. A lição colhida em Manoel de Oliveira, condensada no belo filme que agora se estreia — exemplarmente intitulado O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu —, consiste, como ele sublinha, em valorizar sempre o acto de filmar como um acontecimento enraizado no domínio da moral. Daí que ele arrisque a palavra “educação” para descrever o domínio último em que o cinema também se afirme e existe.
Permito-me sublinhar essa palavra. E propor uma extrapolação pessoal. Porquê? Porque, a meu ver, o populismo audiovisual dominante impôs uma ideologia da ligeireza e da irresponsabilidade que quer fazer crer que a nossa relação com imagens e sons é um assunto sem importância, fútil e descartável. Discutir o poder educacional dessas imagens e desses sons não é dividir os cineastas portugueses entre os que fazem e os que não fazem “dinheiro”. É tão só não menosprezar o facto de a identidade de um país, qualquer país, passar sempre pelas suas narrativas.

A IMAGEM: Jerry Holbert, 2016

JERRY HOLBERT
Boston Herald, 17 Out. 2016

Donald Trump contra a democracia

Eis a questão central, exemplarmente condensada na manchete do New York Times, poucos minutos depois de ter terminado o terceiro e último debate televisivo entre Hillary Clinton e Donald Trump. A saber: "Trump não diz se aceitará os resultados das eleições".
Estamos perante um verdadeiro e inquietante oxímoro: por um lado, Trump apresenta-se em nome de um direito que a democracia lhe confere, implicitamente convocando as regras democráticas como a via certa para o triunfo do seu projecto presidencial; por outro lado, perante a hipótese de não ver as suas expectativas confirmadas (entenda-se: não ganhar), suspende o exercício da própria responsabilidade que o jogo democrático implica, recusando verbalizar o mais básico dever — o reconhecimento público dos resultados eleitorais. Dirigindo-se ao moderador, Chris Wallace (Fox News), Trump atreveu-se mesmo a ironizar sobre a sua rejeição, desde logo destacada pela CNN: "Vou mantê-lo em suspense".


Dito de outro modo: o truque televisivo da distracção pelo "divertimento" deixou de ser uma variação provocatória para passar a funcionar como um padrão de discurso. Donald Trump é o protótipo desse comportamento, por certo com um enorme efeito mimético para o futuro (ainda que não ganhe estas eleições). A BBC propõe mesmo uma avaliação das razões por que "os debates estão a ficar piores, não melhores".

PS - Aqui fica um registo das alegações finais de Clinton e Trump, seguido de um resumo do debate, proposto pelo New York Times.



quarta-feira, outubro 19, 2016

Bowie — uma das canções inéditas

Londres, 2016
O musical Lazarus é já uma das referências fundamentais do legado de David Bowie. Estreado em Nova Iorque, em finais de 2015, estará em cena, a partir de 8 de Novembro, em Londres.
Inspirado no romance de Walter Tevis, The Man Who Fell to Earth — cuja versão cinematográfica Bowie protagonizou, em 1976, sob a direcção de Nicolas Roeg — foi escrito pelo próprio Bowie, em colaboração com o dramaturgo irlandês Enda Walsh (que, em 2008, trabalhou com Steve McQueen, no argumento de Fome).
Na partitura de Lazarus, figuram três canções inéditas: Killing a Little Time, No Plan e When I Met You — todas integrarão o álbum a chegar ao mercado no dia 21. Entretanto, aqui fica Killing a Little Time com a sua tocante e impressionante amargura confessional: I stagger through this criminal brain...

A IMAGEM: Rene Habermacher, 2016

RENE HABERMACHER
Blanca Li e o seu grupo de dança
2016

terça-feira, outubro 18, 2016

Chuck Berry, 90 anos

Chuck Berry nasceu a 18 de Outubro de 1926, em St. Louis, Missouri — faz hoje 90 anos. Simplificando, lembremos apenas que não é possível fazer a história do rock'n'roll sem ter em conta a sua singular energia, o seu papel pioneiro e a sua admirável versatilidade. Celebrando a data, Berry anunciou o lançamento de um novo álbum para 2017 — será o primeiro desde 1979 (Rock It) e é dedicado a sua mulher, Themetta "Toddy" Berry, com quem é casado há 68 anos. O título: Chuck.

>>> Registo televisivo de Sweet Little Sixteen (22 Fev. 1958).


>>> Notícia sobre Chuck na NPR.
>>> Site oficial de Chuck Berry.

"Blowin' in the Wind" [canções]

MARLENE DIETRICH
Blowin' in the Wind
The Essential Marlene Dietrich (1991)


O IMDb ignora os cineastas europeus?

Pierre Étaix
O GRANDE AMOR (1969)
Perante o desaparecimento de Andrzej Wajda e Pierre Étaix valeria a pena não perdermos as suas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Outubro), com o título 'Quem se lembra de Wajda e Étaix?'.

Ciclicamente, a defesa do cinema europeu emerge, timidamente, na agenda dos governantes. Mas no dia a dia da informação, quem o defende? Sejamos prudentes, em qualquer caso: a sensatez aconselha a não nos acomodarmos em generalizações fáceis nem favorecer visões catastrofistas. Fiquemo-nos, neste caso, por alguns pequenos sintomas.
Assim, ao longo da semana, primeiro no dia 9, depois a 14, soubemos da morte de Andrzej Wajda e Pierre Étaix, respectivamente, dois nomes fundamentais na história do cinema europeu da segunda metade do séc. XX. Vale a pena perguntar como é que as notícias surgiram no IMDb, o popular site de cinema da Internet, listado pela Alexa Internet Inc. (empresa californiana de análise do tráfego virtual) como o 58º mais visitado em todo o planeta.
Andrzej Wajda
Pois bem, nem Wajda nem Étaix mereceram qualquer destaque na página de abertura do IMDb. Sendo o IMDb dominado, de modo avassalador, pelas referências ligadas ao cinema americano, nem sequer o facto de Étaix ter ganho um Oscar com a curta-metragem Heureux Anniversaire (em 1963, prémio partilhado com Jean-Claude Carrière), lhe trouxe qualquer evidência — 24 horas depois da divulgação do seu falecimento, a informação ainda não constava da respectiva ficha.
Convém não simplificar, insisto. Sobretudo, importa não transformar estas peripécias numa qualquer demonização do fascinante cinema que também se faz em Hollywood, tradicionalmente acompanhada pela pueril santificação da produção europeia. Aliás, há outro sintoma que não podemos recalcar: um dia depois de ser conhecida a morte de Étaix, a respectiva notícia também não constava do site da Academia Europeia de Cinema (entidade que desempenha funções de divulgação, promoção e atribuição de prémios em parte idênticas às da Academia de Hollywood).
Que está então, em jogo? Um esvaziamento quotidiano das imagens públicas do cinema europeu, favorecido por entidades tão universais e abrangentes como o IMDb (o que, como é óbvio, não exclui o reconhecimento das suas outras virtudes informativas). Desta vez, tratava-se mesmo de dois nomes com óbvias ressonâncias universais. Wajda, também detentor de um Oscar (honorário, atribuído em 2000), foi um admirável retratista crítico da desumanização do comunismo polaco; quanto a Étaix, além de explorar as linguagens universais da comédia, integrou importantes influências de criadores de Hollywood como Charles Chaplin ou Buster Keaton.
No plano da cultura mediática (entenda-se: sustentada pelos mais poderosos meios de comunicação), o que importa reconhecer, enfrentar e analisar é o triunfo de um discurso informativo que tende a viver do ruidoso destaque dos “blockbusters”, ignorando a imensa pluralidade do cinema do presente e do passado. É verdade que a história também nos ensina que há admiráveis “blockbusters”... Sem dúvida, mas quem disse o contrário?

segunda-feira, outubro 17, 2016

"Westworld" — de 1973 a 2016


Numa sedutora transfiguração, Westworld, filme de 1973, está de volta como série de televisão com chancela da HBO — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título 'Aventuras narrativas'.

As relações entre algumas propostas de ficção televisiva e o cinema são cada vez mais evidentes, diversificadas e, em alguns casos, fascinantes. Por isso mesmo, vale a pena referir, desde já, o arranque da série Westworld (TV Séries), inspirada no filme homónimo, escrito e realizado por Michael Crichton em 1973.
No essencial, a série da HBO, criada por Lisa Joy e Jonathan Nolan (irmão do realizador Christopher Nolan), conserva o dispositivo central do filme de Crichton. A saber: existe um parque temático que reproduz a vida quotidiana de uma cidade do velho Oeste, sendo habitado por “anfitriões” que, na verdade, são robots; os humanos, designados como “recém-chegados”, visitam o parque, desfrutando de um universo que faz lembrar os velhos “filmes de cowboys”, podendo até travar duelos com os robots sem que a sua existência seja ameaçada...
A sugestão é imediata: algo está a funcionar para além do conceito fundador do parque (da responsabilidade de um velho cientista interpretado por Anthony Hopkins), como se os robots, excedendo as expectativas do seu criador, estivessem a organizar-se numa revolta mais ou menos inquietante. Dito de outro modo: reencontramos o tema clássico da inteligência artificial, com as máquinas a desafiar os poderes dos humanos.
Um dos aspectos mais curiosos da nova versão de Westworld é a apresentação do seu drama nuclear como uma espécie de perverso jogo de vídeo. Como é dito e redito pelos responsáveis do parque temático, os robots estão programados para protagonizar narrativas absolutamente controladas, inclusive nas pequenas derivações introduzidas pela presença dos humanos. Acontece que uma narrativa se desvia da sua própria lógica quando alguém (ou alguma “coisa”) formula a hipótese de novos arranjos e relações. Em termos simbólicos, Westworld é também uma reflexão sobre o poder de narrar — o futuro é já hoje.

"Just Like a Woman" [canções]

JEFF BUCKLEY
Just Like a Woman
You and I (2016)


Oliveira revisto por Botelho (1/2)

FOTO: Paulo Spranger / DN
Com O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu, João Botelho recorda a herança de um mestre — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (13 Outubro), com o título '“Criou-se uma dinâmica de entretenimento que exclui o pensamento"'.

No seu filme, diz: “Oliveira nunca fez filmes, fez cinema”. Qual a diferença?
Tem a ver com outra coisa que também lá está dito: um filme são histórias, o cinema é o modo de as contar. Manoel de Oliveira ensinou-me que para filmar só há um ponto de vista — é, no fundo, a própria definição de autoria. Por exemplo, eu fiz Os Maias; se cinquenta cineastas pegarem naquele mesmo material, farão cinquenta filmes diferentes. Portanto, o cinema não é Os Maias nem as suas histórias — é o modo de as filmar.

Porquê, então, incluir em O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu uma história do próprio Oliveira?
Chama-se A Rapariga das Luvas, é uma história que ele me contou (e contou também a outras pessoas) e eu adaptei. Tem havido um equívoco face àquele registo de filme mudo, a preto e branco: consiste em considerar que há, ali, um “modo Oliveira”. Ora, o “modo Oliveira” é dele, não é meu. Claro que há citações, mas aquele é o meu modo de filmar a partir de uma história dele. Em qualquer caso, corresponde a uma ideia de regresso à inocência original do cinema, já que ele achava que o cinema estava a ser destruído. Hoje, os filmes têm 3000 planos e ninguém vê nada, 5000 efeitos sonoros e ninguém ouve nada...

Os comentadores do futebol gostam de perguntar de quem foi a culpa do golo. Será que, neste caso, podemos perguntar de quem foi a culpa de acontecer isso ao cinema?
Foram os “jovens turcos” do cinema americano. São bons, espertos e cultos, mas inventaram um novo padrão: o divertimento infanto-juvenil. Claro que também vou ver alguns desses filmes e, por vezes, acho-os maravilhosos. O problema é ser o modelo dominante: criou-se uma dinâmica de entretenimento que exclui o pensamento. Brinco sempre com isso, dizendo que foi o Tubarão [Steven Spielberg, 1975]: é um grande filme, mas tem uma boca tão grande que comeu-nos todos [riso].

Dir-se-ia que passou a haver espectadores que só vão ao cinema para confirmar aquilo que já sabem...
E ficam estranhamente confortadas quando têm essa confirmação e dizem que “perceberam” — o cinema não é para “perceber”, é para ver e ouvir. Uma das coisas que mais me inquieta é a ausência de concentração. As pessoas vão ao Louvre, viram as costas à Mona Lisa e tiram selfies para dizer que estiveram lá.

Será que as pessoas olham mas já não vêem?
Não vêem nem ouvem. E nós sofremos com isso porque não somos do “cinema-movimento”, somos do “cinema-tempo”. É um cinema que precisa de tempo para ver e ouvir, para sentir a duração, a composição.

Nessa perspectiva, a herança de Oliveira, sendo estética, é também ética.
Sem dúvida, é uma herança moral. Não tem nada a ver com as convicções pessoais ou religiosas do Sr. Oliveira — nada! Tem a ver, isso sim, com as convicções morais do acto de filmar.

Depois de Eça, depois de Oliveira, está a fazer uma adaptação da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto — como vai ser?
Sinto que tenho de fazer o que tenho a fazer, o melhor que sei. E há coisas que me preocupam muito, a começar pela perda da memória. Parece-me que há obras portuguesas fundamentais que estão esquecidas, foram mesmo mandadas para o lixo. Se eu puder contribuir para arranjar mais umas pessoas que leiam a Peregrinação, fico contente... Também me disseram que era impossível fazer o Filme do Desassossego, mas eu fi-lo. O livro é genial, claro, e aquilo é apenas um bocadinho, mas pode ser uma introdução para as pessoas ficarem atraídas e irem ler. Os Maias foi feito com o mesmo espírito e isso corresponde, pelo menos, a uma função didáctica. É uma questão de educação.

Como definir essa educação?
Não é no sentido de dar soluções — o cinema não serve para dar soluções, mas pode inquietar, entusiasmar as pessoas com Pessoa e Eça, com as imagens e os sons, e levá-las a fazerem outras coisas.