Amor de Perdição (1979), de Manoel de Oliveira, regressou à televisão... Quem se lembra? — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (21 Outubro), com o título 'Perdição televisiva'.
A televisão é um bicho sem memória. Aliás, corrijo: todos os dias, a televisão acumula memórias, evocações, efemérides... Mas tudo se passa como se aquilo que se evoca fosse apenas anedótico, pitoresco, no limite, descartável. Aliás, corrijo outra vez: somos nós, individual e colectivamente, que passámos a aceitar que a memória, televisiva ou não, é apenas um link mais ou menos fútil, dispensável na teia “social” em que vivemos ou julgamos viver. Sinal de hipocrisia? Talvez. Na melhor das hipóteses, somos tristemente distraídos.
Falo de quê? Da recente passagem, no TV Cine, do filme Amor de Perdição (1979), de Manoel de Oliveira. O que está em causa nesta difusão? Nada, entenda-se: poder ver ou rever o prodigioso trabalho de Oliveira sobre as palavras de Camilo Castelo Branco é um privilégio tanto mais relevante quanto a sua exibição se integra num ciclo que inclui, entre outros, os fundamentais Acto da Primavera (1963) e Benilde ou a Virgem Mãe (1975), a 27 e 28 de Outubro, respectivamente.
Falo então de quê? Do pueril apagamento da memória. De facto, ironicamente, importa lembrar que Amor de Perdição começou por ser exibido na televisão (RTP, 1979), tendo sido objecto de um gigantesco processo de insultos e difamação — podemos conhecê-lo através de um exemplar trabalho de investigação de Fausto Cruchinho, publicado em 2001 pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra.
Passaram-se 37 anos e podemos também perguntar: como está o país que, agora, recebe Amor de Perdição (de novo na televisão!) em bizarro silêncio? Digamos que se transformou no país em que, depois da morte de Oliveira, quase todos o evocam como um “mestre”. Dantes, havia, pelo menos, os que se atreviam a verbalizar a sua intolerância: não tinham visto e não gostavam! Agora, ninguém se lembra.