Por uma vez, com Doutor Estranho, a Marvel faz algo mais do que entregar a gestão de um filme ao departamento de efeitos especiais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'A inteligência das formas'.
Não será por acaso que o Mestre de Doutor Estranho é um Ancião que, afinal, é uma Anciã (ambiguidade que a língua inglesa contorna com a habitual frieza: “The Ancient One”). Que essa personagem seja interpretada pela especialista de todas as ambiguidades que é Tilda Swinton, eis o que sinaliza de modo exemplar a trajectória do herói: para além de qualquer diferença sexual, até mesmo para além de qualquer diferença humana, a sua saga tem a ver com aquilo de que não é possível sair. A saber: o Tempo (com maiúscula, se me permitem, já que convém mantermos alguma pompa face a tão extremo desafio).
Há outra maneira de dizer isto e é surpreendentemente simpática para o filme que entroniza o sempre brilhante Benedict Cumberbatch no país dos ordenados com, pelo menos, sete algarismos (nada conta, caro Sherlock): por uma vez, os estúdios Marvel esforçaram-se na fabricação de algo mais que imagens de telemóvel que já ninguém vê (e sons ensurdecedores cada vez mais difíceis de suportar), sabendo tirar partido das atribulações de um herói que vive numa paisagem que celebra, ponto por ponto, os poderes do próprio espectáculo do cinema. A saber: a ligação festiva de qualquer espaço com qualquer outro espaço e essa vertigem temporal que nos arrasta e liberta como um jogo de vídeo, desta vez deliciosamente filosófico.
Até mesmo o cliché do “filme de efeitos especiais” adquire, aqui, uma inesperada justeza. Mais do que um fogo de artifício mais ou menos vistoso, assistimos a um trabalho de manipulação das linhas e dos volumes que volta a celebrar o ecrã como uma janela para todos os mundos alternativos que nos atrevermos a imaginar. A inteligência das formas é sempre um valor mais que estimável. E é bom que, no seio da poderosa Marvel, ainda haja quem não o tenha esquecido.