FOTO: Paulo Spranger / DN |
Com O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu, João Botelho recorda a herança de um mestre — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (13 Outubro), com o título '“Criou-se uma dinâmica de entretenimento que exclui o pensamento"'.
No seu filme, diz: “Oliveira nunca fez filmes, fez cinema”. Qual a diferença?
Tem a ver com outra coisa que também lá está dito: um filme são histórias, o cinema é o modo de as contar. Manoel de Oliveira ensinou-me que para filmar só há um ponto de vista — é, no fundo, a própria definição de autoria. Por exemplo, eu fiz Os Maias; se cinquenta cineastas pegarem naquele mesmo material, farão cinquenta filmes diferentes. Portanto, o cinema não é Os Maias nem as suas histórias — é o modo de as filmar.
Chama-se A Rapariga das Luvas, é uma história que ele me contou (e contou também a outras pessoas) e eu adaptei. Tem havido um equívoco face àquele registo de filme mudo, a preto e branco: consiste em considerar que há, ali, um “modo Oliveira”. Ora, o “modo Oliveira” é dele, não é meu. Claro que há citações, mas aquele é o meu modo de filmar a partir de uma história dele. Em qualquer caso, corresponde a uma ideia de regresso à inocência original do cinema, já que ele achava que o cinema estava a ser destruído. Hoje, os filmes têm 3000 planos e ninguém vê nada, 5000 efeitos sonoros e ninguém ouve nada...
Os comentadores do futebol gostam de perguntar de quem foi a culpa do golo. Será que, neste caso, podemos perguntar de quem foi a culpa de acontecer isso ao cinema?
Foram os “jovens turcos” do cinema americano. São bons, espertos e cultos, mas inventaram um novo padrão: o divertimento infanto-juvenil. Claro que também vou ver alguns desses filmes e, por vezes, acho-os maravilhosos. O problema é ser o modelo dominante: criou-se uma dinâmica de entretenimento que exclui o pensamento. Brinco sempre com isso, dizendo que foi o Tubarão [Steven Spielberg, 1975]: é um grande filme, mas tem uma boca tão grande que comeu-nos todos [riso].
Dir-se-ia que passou a haver espectadores que só vão ao cinema para confirmar aquilo que já sabem...
E ficam estranhamente confortadas quando têm essa confirmação e dizem que “perceberam” — o cinema não é para “perceber”, é para ver e ouvir. Uma das coisas que mais me inquieta é a ausência de concentração. As pessoas vão ao Louvre, viram as costas à Mona Lisa e tiram selfies para dizer que estiveram lá.
Será que as pessoas olham mas já não vêem?
Não vêem nem ouvem. E nós sofremos com isso porque não somos do “cinema-movimento”, somos do “cinema-tempo”. É um cinema que precisa de tempo para ver e ouvir, para sentir a duração, a composição.
Sem dúvida, é uma herança moral. Não tem nada a ver com as convicções pessoais ou religiosas do Sr. Oliveira — nada! Tem a ver, isso sim, com as convicções morais do acto de filmar.
Depois de Eça, depois de Oliveira, está a fazer uma adaptação da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto — como vai ser?
Sinto que tenho de fazer o que tenho a fazer, o melhor que sei. E há coisas que me preocupam muito, a começar pela perda da memória. Parece-me que há obras portuguesas fundamentais que estão esquecidas, foram mesmo mandadas para o lixo. Se eu puder contribuir para arranjar mais umas pessoas que leiam a Peregrinação, fico contente... Também me disseram que era impossível fazer o Filme do Desassossego, mas eu fi-lo. O livro é genial, claro, e aquilo é apenas um bocadinho, mas pode ser uma introdução para as pessoas ficarem atraídas e irem ler. Os Maias foi feito com o mesmo espírito e isso corresponde, pelo menos, a uma função didáctica. É uma questão de educação.
Como definir essa educação?
Não é no sentido de dar soluções — o cinema não serve para dar soluções, mas pode inquietar, entusiasmar as pessoas com Pessoa e Eça, com as imagens e os sons, e levá-las a fazerem outras coisas.