A personagem de Jack Reacher está a transformar-se num novo conceito de produção de e com Tom Cruise — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Outubro), com o título 'Tom Cruise à procura de uma nova “franchise"'.
Tom Cruise não brinca em serviço. Envolvido como actor/produtor na série Missão Impossível, desde 1996 (iniciada com um filme magnífico, assinado por Brian De Palma), ele conhece bem o valor comercial dos filmes centrados nas aventuras de uma personagem capaz de combinar mistério e ousadia — neste caso, o agente super-secreto Ethan Hunt. Como se diz na gíria da indústria, estamos perante uma “franchise” de sucesso: os cinco títulos já produzidos (há um sexto previsto para 2018) acumularam uma receita global de quase 2,8 mil milhões de dólares (um pouco mais que 2,5 mil milhões de euros).
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Se outras razões não houvesse, tal contabilidade seria suficiente para explicar o interesse de Cruise pela personagem de Jack Reacher, saído das páginas dos romances do inglês Lee Child: um ex-major, aventureiro mais ou menos anónimo, mais ou menos errante, apostado em combater os que utilizam os seus poderes de forma abusiva. E aí o temos, pela segunda vez, a produzir e interpretar Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás, quatro anos passados sobre o lançamento do primeiro título, Jack Reacher, com a mesma personagem; em 2012, a realização era assinada por Christopher McQuarrie (também responsável por Missão Impossível V), agora é o veterano Edward Zwick a comandar as operações.
O mais curioso na personagem de Reacher é o seu anacronismo cinematográfico. Ao contrário de Ethan Hunt, ele não é alguém que aplique a mais sofisticada tecnologia para conseguir os seus intentos: distingue-se por uma invulgar força e agilidade, mas sem que isso lhe empreste qualquer dimensão sobre-humana próxima das características de alguns super-heróis. Podemos até considerá-lo como uma actualização perversa de um modelo de herói que provém do western clássico: um vingador que deambula pelas paisagens (agora urbanas), sempre empenhado em repor a ordem.
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Através desse dispositivo, Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás colecciona de forma discreta, mas sugestiva, alguns sinais perturbantes que podemos ler como outros tantos fantasmas da América contemporânea. Desde a falibilidade das hierarquias à presença das drogas no quotidiano, o filme possui essa capacidade de expor alguns sintomas dos medos e inquietações de um país, nessa medida fazendo lembrar o espírito dos velhos “filmes negros” da época áurea de Humphrey Bogart & Cª.
Infelizmente, os resultados estão muito limitados pela “obrigação” de cumprir uma agenda de cenas (ditas) de acção que, em boa verdade, por vezes, cortam a própria intensidade dramática dos eventos narrados. Edward Zwick é, obviamente, um profissional que sabe manter-se atento aos pormenores e ambiguidades de cada situação, mas não consegue que Jack Reacher: Nunca Voltes Atrás supere uma mediania mais ou menos previsível. Ponto importante é o contraponto feminino: Cobie Smulders faz o que pode na companhia de Cruise, mas está longe de conseguir assumir o tom de festivo desafio ao herói masculino encarnado de forma brilhante, no primeiro filme, por Rosamund Pike.