Com O Ornitólogo, João Pedro Rodrigues prossegue uma filmografia tecida de originalidade e ousadia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Outubro), com o título 'A natureza nunca existiu'.
Perante a singular beleza de um filme como O Ornitólogo, importa começar por sublinhar o mais básico. O realizador João Pedro Rodrigues é criador de um universo que existe como um continente autónomo e mágico, inclusive através dos títulos em que tem partilhado a realização com João Rui Guerra da Mata (aqui presente, de novo, como co-argumentista e responsável pela direcção artística). Estamos perante um universo enraizado numa pulsão realista, paradoxal e envolvente, exemplarmente assumida pelo trabalho de direcção fotográfica de Rui Poças.
Daí a insólita sinopse desta aventura por terras e águas de Trás-os-Montes. Fernando (Paul Hamy), o estudioso dos pássaros, começa por ser aquilo que qualquer filme que se preze oferece (e retira) ao seu espectador. A saber: um olhar sem equivalente, pessoal e intransmissível como os passaportes, que nos convoca para a descoberta de uma natureza tecida de inusitadas cores e secretos sons. A pouco e pouco, ele descobre (e nós com ele, hesitantes e fascinados) que não há nada de natural na natureza.
Tudo se passa como se a natureza nunca tivesse existido. Fernando vai vivendo e sobrevivendo como incauto figurante de uma odisseia em que tudo pode ser novo e revelador, desde as convulsões do sexo às intromissões do sagrado, porventura equivalendo-se nesse país sem fronteiras que é o próprio cinema. Será preciso acrescentar que, à sua maneira, O Ornitólogo, é também um filme de resistência? A quê? Ao naturalismo pueril dos nossos tempos televisivos. Em nome de quê? De um gosto de olhar e escutar que celebra o cinema como arte de libertação das evidências. Questão radical, enredada no labirinto do rio Douro? Sim, sem dúvida. Nele redescobrimos o esplendor da tragédia. E também os seus esquecidos humores.