Uma boa surpresa no nosso Outono cinematográfico: O Inimigo da Turma, um filme da Eslovénia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Outubro), com o título 'Repensar a escola através do cinema'.
Passámos a usar a expressão “redes sociais” como uma espécie de abre-latas da consciência colectiva. Na prática, quase ninguém pergunta o essencial, certamente o mais incómodo: com a proliferação de insinuações, insultos, difamações, meias verdades e histéricas mentiras que por elas circulam, que tipo de relações sociais estamos a construir?
Aliás, o mesmo se pode aplicar ao espaço televisivo que, para o melhor e para o pior, funciona como a “praça pública” das nossas sociedades: de que modo as suas imagens (e sons!) definem as regras, e também os valores, da nossa percepção colectiva? Exemplo destes dias: algumas formas de cobertura jornalística do caso do fugitivo de Aguiar da Beira.
“Mas então são as televisões que têm a culpa dos crimes?” — eis a pergunta que, tristemente, emerge sempre que alguém, nem que seja apenas em nome do bom senso, tenta problematizar tais questões. Ora, o problema não está na “culpa”. Deixemos essa ginástica moral para os comentadores de futebol que gostam de acusar os “culpados” dos golos... O problema está na percepção do social como palco de um pânico que é convocado como um insidioso fantasma (“medo” tem sido mesmo a palavra mais explorada). Dito de outro modo: mesmo sem ignorarmos a perturbação das notícias que chegam de Aguiar da Beira, a sua narrativa dominante é mais alarmista do que qualquer consideração sobre os perigos inerentes à utilização da energia nuclear pelo Irão.
Não admira que, numa conjuntura marcada por esta ligeireza, o cinema seja um dos domínios mais penalizados no seu impacto (social, justamente). Em termos práticos, a sua capacidade de convocar personagens e situações que remetem para importantes temáticas do presente tende a ser ignorada, privilegiando-se uma exaltação pueril das suas formas de “espectáculo”.
Aí está o também significativo exemplo do filme esloveno O Inimigo da Turma, de Roc Bicek, cineasta de 31 anos aqui a assinar a sua primeira longa-metragem de ficção. Podemos inscrevê-lo numa longa e nobre tradição de abordagem de dramas escolares que inclui títulos tão marcantes como o americano Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, ou o francês A Turma (2008), de Laurent Cantet. Inspirado em factos verídicos, nele assistimos às convulsões internas de uma escola, nascidas do conflito de uma turma com um novo professor de alemão — quando uma aluna se suicida, instala-se uma violência psicológica que começa na tentativa de transformar o professor em bode expiatório da situação...
Desde as dúvidas inerentes a qualquer prática de ensino à necessidade de não reduzir a juventude a uma “classe” à parte, pitoresca e sem responsabilidades sociais, são muitos os temas que, de forma sóbria e muito séria, perpassam em O Inimigo da Turma. Seria um bom pretexto para repensar a escola através do cinema, mas não foi... Porquê? Porque faz medo.