sábado, abril 30, 2016

À procura da "Amerika" perdida

Espantoso teledisco: Amerika, dos canadianos Wintersleep, pertencentes à cena alternativa de Halifax (Nova Escócia), traça o retrato desencantado de um presente em que, desde a degradação das cidades à voz de Donald Trump evocando as antigas "vitórias" americanas, tudo parece remeter para as memórias de um tempo perdido, porventura irrecuperável.
Assinado por Scott Cudmore, mais do que um clip de divulgação, este é um verdadeiro pequeno grande filme que, além do mais, altera a estrutura da canção encenada, convocando o espectador para uma genuína experiência narrativa, a meio caminho entre documentário e ficção — Amerika é o tema de abertura de The Great Detachment, sexto álbum de estúdio dos Wintersleep.

Manoel de Oliveira, João Botelho e nós

Manoel de Oliveira em Acto da Primavera (1963)
Foi apresentado no IndieLisboa um filme em que João Botelho evoca o seu mestre Manoel de Oliveira — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Abril), com o título 'No espelho de Manoel de Oliveira'.

De que falamos quando falamos do cinema de Manoel de Oliveira? A pergunta envolve um perverso jogo de espelhos. Como todos os grandes criadores, Oliveira é alguém que convoca a singularidade do espectador: quando dizemos “ele”, somos levados a repensar o nosso “eu”. É isso mesmo que faz João Botelho num filme belíssimo, intitulado O Cinema, Manuel de Oliveira e Eu, estreado no IndieLisboa.
Não por acaso, entre as memórias da filmografia de Oliveira convocadas por Botelho, Acto da Primavera (1963) emerge como a mais emblemática das referências. Através do seu registo da Paixão de Cristo, interpretada pelos habitantes da aldeia transmontana da Curalha, Oliveira celebrava, antes de tudo o mais, a verdade teatral das palavra. E a expressão não tem nada de arbitrário: a verdade não se apresenta, aqui, como uma entidade passiva que o cinema transcreve (nada a ver com o naturalismo pueril dos apanhados televisivos); a sua dinâmica está enraizada numa teatralidade em que, em última instância, se discutem as diferentes visões do mundo.
João Botelho
[Foto: Miguel A. Lopes]
Muito antes da actual “moda” dos documentários (com alguns filmes admiráveis, não é isso que está em causa), Acto da Primavera fazia ver o documental como uma variante do desejo de ficção que anima o ser humano, a sua incansável necessidade de contar e partilhar histórias.
Botelho conduz tal desejo a um extremo de radicalismo formal e amor cinéfilo, encenando uma história herdada do próprio Oliveira. Assim, a certa altura, através da sua voz off, recorda uma ficção melodramática sobre uma prostituta, pertencente à galeria imensa das histórias que Oliveira nunca chegou a filmar. Botelho chama-lhe “sua”, dá-lhe o título de A Rapariga das Luvas, e encena-a como se fosse um filme mudo, assumindo as leis narrativas do cinema antes do som (integrando mesmo o obrigatório acompanhamento ao piano, numa delicada interpretação de Nicholas McNair).
O resultado envolve qualquer coisa de raro e desconcertante. Aqui está um filme que começa como um documentário na primeira pessoa, transfigurando-se num ritual de imagens e sons em que o cinema desafia, nem que seja pela ironia dos contrastes formais, os seus próprios limites. Nesta perspectiva, O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu sublinha uma das frases nucleares de Botelho: “Oliveira nunca fez filmes. Fez cinema. Fez cinema contemporâneo dele e, sobretudo, cinema que anunciava o que viria depois.”
Há qualquer coisa de profilático no trabalho de Botelho. Afinal de contas, quando Oliveira faleceu, há pouco mais de um ano, parecia que os difamadores de muitas décadas se tinham transformado todos, por milagre, em adoradores do “mestre”... Para combater tão vil cinismo, importa continuar a filmar, questionando o próprio cinema, questionando a difícil arte de ser espectador. É isso que Botelho arrisca.

CANNES 2016 * — filmes em competição (5)

LOVING
Jeff Nichols
(EUA)
Inspirando-se numa história verídica, em finais da década de 50, sobre a relação entre um homem branco e uma mulher negra, Jeff Nichols está pela segunda vez na competição de Cannes (a primeira ocorreu em 2012, com Mud/Fuga) — neste video do site francês AlloCiné, extraído de uma entrevista sobre o seu filme anterior, Midnight Special (2016), Nichols explica a génese do projecto.


sexta-feira, abril 29, 2016

7 versões de canções de Prince [3]

[ 1 ]  [ 2 ]

A dimensão jazzística da obra de Prince não foi um mero adorno. Além do mais, sintomaticamente, encontrou ecos muito concretos no trabalho de alguns mestres. No caso de Thieves In the Temple, é Herbie Hancock, em luxuriante companhia — Michael Brecker (saxofones), John Scofield (guitarras), Dave Holland (baixo acústico), Jack DeJohnette (bateria) e Don Alias (percussão) —, que propõe uma primorosa versão que parece ter sido composta directamente para o seu piano. A canção pertence ao álbum Graffiti Bridge (1990), banda sonora do filme com o mesmo título; Hancock inclui a sua versão em The New Standard (1996), ao lado, por exemplo, de Mercy Street (Peter Gabriel), Norwegian Wood (Lennon, McCartney) e All Apologies (Kurt Cobain).

A IMAGEM: Mert Alas & Marcus Piggott, 2013

MERT ALAS & MARCUS PIGGOTT
Come as you are
W Magazine, 2013

Cinema russo — um passado muito presente

Organizado pela Leopardo Filmes, um ciclo dedicado ao Grande Cinema Russo está a decorrer em Lisboa [Espaço Nimas] e Porto [Teatro do Campo Alegre], testemunhando uma cronologia insólita, paradoxal e fascinante, resumida no seu subtítulo: 'Do mudo à Perestroika'. São reencontros e descobertas para nos ajudar a compreender que, mesmo com toda sua riqueza, a produção anglo-saxónica não basta para acedermos à pluralidade dos filmes e das suas histórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Saudades de Tchekhov'.

Um dos efeitos mais perversos do poder do cinema americano nos mercados globais é o apagamento das suas próprias diferenças interiores. De facto, é dos EUA que continuam a surgir algumas das mais fascinantes propostas cinematográficas, plurais e contraditórias, mas o espectador médio tende a reduzir a produção americana à rotina mais ou menos ruidosa dos “blockbusters”.
Sergei Eisenstein
(1898-1948)
Algo de semelhante se poderá dizer sobre a grande tradição russa que, agora, é tema deste notável ciclo “Do mudo à Perestroika”. Uma visão maniqueísta, saturada de “política”, em grande parte induzida pelo imaginário de esquerda, descreve tal tradição como uma espécie de emanação “natural” da Revolução de Outubro. Acontece que também neste caso, mais do que nunca, importa lembrar que as relações entre contexto político e gestos artísticos nunca são lineares, muito menos maniqueístas. Em boa verdade, os filmes — lembremos o exemplo do genial Ivan, O Terrível, de Sergei Eisenstein — existem num permanente confronto dialéctico (palavra que passou a ser temida pela própria esquerda) que faz da história uma paisagem de incontornáveis, porventura insanáveis, convulsões e contradições.
E se Eisenstein ou Dziga Vertov nos ajudam a pensar a política para além dos códigos da própria cena política, há cineastas como Elem Klimov (lembremos o prodigioso Adeus a Matiora) cuja visão do tecido social vem enriquecer as reflexões contemporâneas em torno de um realismo que não se entregue ao pitoresco televisivo. Isto sem esquecer que através de outros, como Nikita Mikhalkov (Olhos Negros), reencontramos a mais nobre tradição “tchekhoviana”. Em boa verdade, a nostalgia ensina-nos que esta é uma história que começa na arte da escrita, antes ainda de haver máquinas de filmar.

quinta-feira, abril 28, 2016

"Purple Rain" por um dia
nos cinemas UCI

O filme de 1984, que teve um peso marcante na projeção de Prince para um estatuto de estrela global, vai voltar a ser exibido comercialmente entre nós na próxima semana. Purple Rain estará em exibição no dia 6 de maio nos cinemas UCI de Lisboa e Porto, em sessões às 19.00 e 21.30.
Realizado por Albert Magnoli e protagonizado por Prince, o filme apresenta alguns traços autobiográficos do músico que, aqui, fazia a sua estreia no grande ecrã. Prince interpreta a figura de "The Kid”, um jovem talentoso e problemático vocalista de uma banda de Minneapolis.

"Truman" — psicologia em tom espanhol

Javier Cámara e Ricardo Darín
Truman foi o grande vencedor dos Goya do cinema espanhol: um filme que sabe revalorizar o modelo dos retratos psicológicos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Vencedor dos prémios Goya valoriza a subtileza psicológica'.

Se há elogio que podemos fazer à produção cinematográfica de Espanha, é em nome de uma velha tradição narrativa. De facto, independentemente das suas diferenças internas, por certo muitas delas radicais, o cinema espanhol tem sabido preservar os mecanismos clássicos do “filme psicológico”. Sem vícios saudosistas nem preconceitos modernistas — apenas porque essa é (ou pode ser) uma via sempre válida para compreender o emaranhado das relações humanas. Consagrado nos prémios Goya como melhor filme espanhol de 2015, Truman é um exemplo feliz dessa vitalidade tradicional. E tanto mais quanto o núcleo da sua história — os últimos tempos de um homem que tem plena consciência da sua doença terminal — se podia prestar às mais grosseiras manipulações “telenovelescas”.
O filme envolve-nos, antes do mais, pela ambivalência do seu registo. A figura central, Julián, convoca o seu amigo Tomás (que vive no Canadá), dando-lhe conta da crescente fragilidade da sua saúde. Dir-se-ia um luto antecipado, vivido num registo visceralmente dramático. O certo é que Julián não pede qualquer tipo de protecção, muito menos piedade: o seu objectivo principal é garantir que o seu cão — o Truman que dá título ao filme — vai poder ficar com alguém que o estime.
Tudo isto podia ser pretexto para as maiores facilidades, mas acaba por ser gerido pelo realizador Cesc Gay (também co-autor do argumento) através de um delicada teia de pequenos acontecimentos que funcionam como outros tantos momentos de revelação das emoções mais contrastadas. Daí a decisiva importância do trabalho dos actores, sobretudo o argentino Ricardo Darín e o espanhol Javier Cámara, respectivamente como Julián e Tomás: o primeiro confirmando a subtileza de um talento que já observáramos, por exemplo, em O Segredo dos Seus Olhos (2009) ou Carancho (2010); o segundo, desde Fala com Ela (2002) uma presença regular no cinema de Pedro Almodóvar, compondo uma personagem que se distingue, antes do mais, pela capacidade de escuta.
A intensidade psicológica de um filme como Truman nada tem a ver com qualquer preocupação “simbólica”. Ao contrário de muitas ficções televisivas, a existência de uma personagem que sofre de uma doença terminal não confere ao filme o estatuto de um “caso de vida” à procura de generalizações mais ou menos simplistas. Tudo depende do carácter irredutível das personagens, dos seus gestos e da especificidade das situações que vivem.
A atenção às singularidades dos comportamentos individuais envolve um princípio eminentemente realista. Nesta perspectiva, poderá dizer-se que Truman reforça a ideia segundo a qual as mais diversas cinematografias, europeias e americanas (sul-americanas, em particular), têm procurado reagir ao naturalismo simplista do espaço televisivo, revalorizando o gosto e as exigências dos registos realistas. Toda a caracterização do espaço social em que vive Julián é significativa de tal gosto. Afinal de contas, também de acordo com uma via muito tradicional, este é um cinema capaz de contar histórias de grande apelo universal a partir da cuidada observação dos mais finos particularismos.

Bruce Springsteen evoca Prince

Grande e comovente homenagem: em concerto no Barclays Center, em Brooklyn, Nova Iorque (23 Abril), Bruce Springsteen e The E Street Band evocaram Prince, numa performance em que, desde a música às luzes do palco, predominou a cor púrpura — eis o registo de Purple Rain, a abrir o espectáculo [a não perder: a magnífica crónica de Caryn Rose, no site da NPR]. Além do mais, no seu site, Bruce oferece o respectivo download.

quarta-feira, abril 27, 2016

7 versões de canções de Prince [2]

[ 1 ]

Porventura uma escolha menos óbvia no catálogo dos experimentais e electrónicos Art of Noise, Kiss surgiu transfigurado numa batida obviamente indissociável do seu novo intérprete: Tom Jones. A proeza, consagrada em single de 1988, afigura-se tanto mais admirável quanto esta era (e é) uma daquelas canções — do álbum Parade (1986) — que podem resumir o génio de composição e voz de Prince. Além do mais, a nova versão foi sustentada por um teledisco de muito simples, e também muito eficaz, energia visual.

The Kills — a caminho do álbum nº 5

Já sabíamos que o quinto álbum de estúdio de The Kills, Ash & Ice, estará disponível nos primeiros dias de Junho. Depois de Doing It to Death, aí está mais uma canção vintage de Alison Mosshart + Jamie Hince: chama-se Heart of a Dog e tem um teledisco capaz de reavivar o gosto, muito seventies, de fragmentação do ecrã.

From sea to mountain valley
From flesh to palms a’ swaying
Dreamers dreaming on
No matter what they’re saying

I need you
Don’t ask me why it is
I want strings - attached
Unnatural as it feels

I’m loyal, oh oh, I’m loyal

From starry eyes colliding
From Mars to someone crying
I’m never far away
No matter what I’m hiding

I get lost
But I always come around
It’s a strange fear
Allows me to be found
I’m loyal, oh oh, I’m loyal
I’m loyal, oh oh
I got the heart of a dog

It’s life or death why I chew through the chain
It don’t matter my love’s the same
Go so far but never long
Can’t break the spell in my heart
I’m loyal, oh oh, I’m loyal
I’m loyal, oh oh
I got the heart of a dog

From bars to beds of laying
From boots of lead to changing
I’m hooked from deep inside
Call when you’re ready cos I’m ready to ride

I’m loyal, oh oh
I’m loyal, oh oh
I got the heart of a dog

A IMAGEM: Daryl Cagle, 2016

DARYL CAGLE
Donald Trump e o circo mediático
2016

Marlon Brando por Marlon Brando (2/2)

STELLA ADLER
(1901-1992)
Listen to Me Marlon é um notável documentário em que Marlon Brando surge através de registos sonoros das suas próprias palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'A alma de Stella Adler'.

[ 1 ]

A certa altura, o filme Listen to Me Marlon apresenta um registo de Stella Adler (naquilo que parece ser uma aula com algum público a assistir) em que ela resume o trabalho que se pede ao actor: “A peça não tem nada a ver com palavras. Não se representa com palavras, representa-se com a alma.”
Bem sabemos que as grandes noções metafísicas, “alma”, “felicidade”, “dignidade”, têm sido grosseiramente banalizadas pelo imaginário televisivo — no futebol, por exemplo, sempre que uma equipa portuguesa perde de forma concludente com alguma formação estrangeira, a derrota tende a ser descrita como um desastre muito “digno” (será que os vencedores foram “indignos” apenas por terem sido melhores?...).
Acontece que Adler fala a partir de um contexto criativo em que a palavra alma não é um detalhe mais ou menos frívolo para disfarçar a inanidade das ideias. A singularidade do actor que ela defendia — e de que Marlon Brando terá sido a mais radical concretização — implica uma tão radical entrega do corpo que, no limite, o seu efeito já pertence a uma outra dimensão (a que, justamente, podemos dar o nome de “alma”). Por alguma razão, quando evoca a sua participação em Revolta na Bounty (1962), Brando reconhece que aquele é o tipo de filme em que não quis voltar a aparecer: quando o actor não é convocado para desafiar os enigmas da própria personagem, apenas para a “ilustrar”, faz, literalmente, figura de corpo presente.
Quando vemos, agora, grandes actores perdidos nos clichés dos super-heróis (por exemplo: Robert Downey Jr. vestido com o fato metálico do Homem de Ferro), não podemos deixar de perguntar se os espectadores estão a ser (des)educados para já não saber como olhar Brando e os seus pares. Se assim for, então o cinema está a perder a sua alma.

terça-feira, abril 26, 2016

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2005

ERWIN OLAF
Rouge, Player 3
2005

"Conteúdos" televisivos...

Notícias sobre o Netflix relançam a questão fulcral do que se programa e do modo que se programa — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'A tragédia dos “conteúdos"'.

Notícia de segunda-feira [18 Abril], no site da BBC, dava conta de uma quebra de 9%, na bolsa de Nova Iorque, do valor das acções do Netflix. Na origem da desvalorização estarão os índices de crescimento das assinaturas, inferiores às expectativas, tanto nos EUA como nos mercados internacionais (o Netflix opera em quase duas centenas de países). Entretanto, no mesmo dia ficou a saber-se que, nos EUA, a Amazon lançou novas tabelas para o serviço de streaming, apostando em concorrer de forma agressiva com o Netflix, precisamente, e também o Hulu.
Dada a volatilidade dos mercados de todas as actividades (e também a gestão mediática das suas convulsões), é bem provável que, daqui a alguns dias, estes dados surjam completamente invertidos, num jogo de evidências e especulações em que o consumidor surge reduzido a uma marioneta sem poder. Um pouco como as notícias das transferências de futebolistas: todos os dias nos garantem que aquele grande craque que já estava certo na equipa X, afinal poderá ir parar à equipa Y, se o seu empresário conseguir conjugar o negócio com a colocação de um outro jogador na equipa Z...
Assistimos ao triunfo de uma lógica de desenvolvimento em que os decisores celebram os “conteúdos”, embora, em boa verdade, apenas queiram vender (e promover) plataformas de difusão. Assim vai o mundo audiovisual e, em particular, o território televisivo: a especificidade dos programas tende a ser secundarizada, incutindo-se no cidadão a ideia (?) de que o fundamental é ser assinante “daquela” plataforma que se distingue pelo volume da oferta ou pela pequenez da assinatura.
Eis uma grande questão cultural do audiovisual contemporâneo: muito boa gente celebra aqueles que encara como consumidores, quase ninguém pensa que eles são sempre... espectadores! Um dia destes, a canção de Bruce Springsteen corre o risco de já não ser metafórica: “57 canais e nada para ver...”

segunda-feira, abril 25, 2016

A cidadania do Bloco de Esquerda

RENÉ MAGRITTE: A Clarividência (1936)

"Tenho uma doença: vejo a linguagem"
ROLAND BARTHES
Edições 70, 1976

1. Há qualquer coisa de involuntariamente irónico no empenho — ideológico e moral — com que o Bloco de Esquerda defendeu a reconversão do "Cartão de Cidadão" em "Cartão de Cidadania", lembrando: "A linguagem que utilizamos reproduz, como é sabido, as representações sociais de género predominantes num determinado contexto histórico e cultural, refletindo-se depois, muitas vezes, em verdadeiras práticas discriminatórias."

2. Não me refiro, entenda-se, à avalanche de agressões "sociais", com que as ditas redes presentearam a proposta do BE — não precisamos de estar de acordo com um discurso para, face a esse inferno de mediocridade e impunidade, defender quem por ele é visado.

3. Refiro-me, isso sim, à candura com que o BE entra e sai da problemática da linguagem. Entenda-se: da problemática política da linguagem — não como "veículo" neutro de "informação", mas sim como matéria viva do nosso viver. E, para mais, pressupondo um universalismo sem arestas: como é sabido... (um pouco como os comentadores de política e futebol argumentam proclamando que uma determinada afirmação ou atitude... "vale o que vale").

4. De facto, a definição política do BE está assombrada por um problema de linguagem que, bem sabemos, a cena política ultrapassou (por que preço? — não sabemos), mas que persiste como subtexto sempre disponível para saltar para o espaço mais visível das práticas quotidianas — numa inusitada variação do retorno do recalcado.

5. Assim, o BE é o partido que considera que "existe uma grande coligação entre conservadores e socialistas, coligação dirigida pela Alemanha, que é hoje quem manda na União Europeia, e que impõe uma ditadura dos mercados e uma política de austeridade, desemprego, pobreza e desigualdade" [Manifesto Eleitoral]. Vê-se mal — em boa verdade, não é possível ver — como tão contundente diagnóstico se harmoniza com a actual convivência governamental do BE com o Partido Socialista.

6. É bem certo que tal convivência penaliza, antes de tudo o mais, o PS. E que o PS a ela se tenha acomodado de forma tão bem disposta e disponível, eis o que instala uma interrogação duradoura sobra a sua identidade — no limite, sobre a ideia europeia de "esquerda".

7. Para já, fica uma perplexidade: até onde o BE quer conduzir a sua muito talentosa arte de ocupar o espaço mediático? Como nenhuma outra força política, o BE compreendeu a lógica dominante dos soundbytes e dos discursos de protesto ("protestar", nem que seja contra um treinador de futebol, é coisa que garante infinitas repetições nos noticiários televisivos), arriscando agora apresentar-se como guardião da linguagem. Resta saber se o BE julga que a cidadania implica não ver a linguagem. Por cruel ironia, a palavra linguagem é feminina para nós, masculina no francês de Roland Barthes — como é sabido.

25 Abril 1974 — fotos inéditas

Esta imagem do Capitão Salgueiro Maia (1944-1992) é um documento até agora inédito — faz parte de um portfolio de 23 fotografias assinadas por Alfredo Cunha, hoje publicado pelo Jornal de Notícias. São momentos emblemáticos, em particular da zona do Terreiro do Paço, que nos permitem reencontrar a memória de um dia que importa olhar e recordar para além dos clichés que a história lhe sobrepôs — estas imagens ajudam-nos um pouco nessa tarefa.

domingo, abril 24, 2016

Sob o signo de "Taxi Driver"

Cybill Shepherd, Martin Scorsese,
Robert De Niro, Jodie Foster e Harvey Keitel
FESTIVAL DE TRIBECA
21 de Abril de 2016
A foto é da autoria de Larry Busacca e testemunha a reunião de alguns dos nomes fulcrais de Taxi Driver, 40 anos depois da aventura criativa através da qual nasceu um dos clássicos absolutos do moderno cinema americano — foi no Festival de Tribeca; podemos ler o respectivo relato nas páginas do USA Today.

Patti Smith nos 40 anos de "Horses"

Os 40 anos de Horses, obra seminal na consagração do punk dentro do rock, e do rock para além de qualquer movimento ou período histórico (sem esquecer a fotografia icónica da sua capa, assinada por Robert Mapplethorpe), foram assinalados por diversos concertos, reproduzindo o respectivo alinhamento original:

1. Gloria: In Excelsis Deo/Gloria
2. Redondo Beach
3. Birdland
4. Free Money
5. Kimberly
6. Break It Up
7. Land: Horses/Land of a Thousand Dances/La Mer (De)
8. Elegie
9. My Generation

Num desses concertos, Patti Smith regressou às origens — que é como quem diz: aos Electric Lady Studios, fundados por Jimi Hendrix, em 1970, onde decorreram as gravações de Horses. O resultado chama-se Horses: Live at Electric Lady Studios e foi um dos lançamentos do Record Store Day. Para já, para relançar as memórias, recordemos a gravação original de Birdland.

sábado, abril 23, 2016

7 versões de canções de Prince [1]

Grande dama da soul, Etta James integrou Purple Rain (1984), do álbum homónimo de Prince, naquele que seria o seu penúltimo registo, All the Way (2006) — uma versão capaz de conciliar a fidelidade ao original com as singularidades de uma voz poderosa e inconfundível [registo com montagem de imagens da intérprete].

sexta-feira, abril 22, 2016

Marlon Brando por Marlon Brando (1/2)

Listen to Me Marlon é um notável documentário em que Marlon Brando surge através de registos sonoros das suas próprias palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'Marlon Brando - A história contada pelas palavras esquecidas'.

A história de Marlon Brando envolve muitos contrastes e contradições que talvez se possam condensar nestas palavras: “Um homem perturbado e só, enredado em memórias, num estado de confusão, tristeza, isolamento e desordem. Passou a ser convocado para além das regras normais da sociabilidade, acabando por tornar-se um boneco mecânico. Talvez sentisse que era mal tratado, tendo ficado revoltado com esse tratamento”.
O autor de tão desencantada descrição não é um qualquer analista que se tenha debruçado sobre as zonas mais obscuras da vida de Brando — é ele próprio que traça tal retrato. Podemos escutá-lo a dizer essas e muitas outras palavras de auto-análise no documentário Listen to Me Marlon, de Stevan Riley, agora disponível em DVD. E importa sublinhar tal singularidade: trata-se de escutar o actor, sem que haja imagens registadas no próprio momento em que as palavras foram ditas.
O ponto de partida de Listen to Me Marlon é um arquivo sonoro do próprio Brando, incluindo reuniões de trabalho, entrevistas, sessões de terapia e até simples conversas em ambiente caseiro. Depois do falecimento do actor (em 2004, aos 80 anos), o arquivo permaneceu esquecido no espólio da família e só agora foi colocado à disposição da equipa de Riley e do produtor John Battsek (responsável por À Procura de Sugar Man, Oscar de melhor documentário de 2012).
Desde os primeiros momentos, o filme tira partido de uma experiência que Brando protagonizou, na década de 90, quando se deixou que o seu rosto fosse registado em imagens digitais, para permitir algumas experiências de “interpretação” virtual. Ironicamente, reconheceu que a criação de personagens a partir de imagens computorizadas talvez seja o “canto do cisne” dessa nobre profissão — ser actor — de que ele foi (e é) um dos símbolos mais universais.
HÁ LODO NO CAIS
[cartaz francês]
A partir de tais imagens, a equipa de Riley vai construindo uma narrativa que integra entrevistas, depoimentos e extractos de filmes que, de facto, não se deixa resumir pelo subtítulo — “A Vida de Marlon Brando” — que o DVD apresenta. A tradução literal do título original — “Escuta-me, Marlon” — seria muito mais sugestiva. Trata-se de colocar em cena um homem que aceita dividir-se em dois, um que fala, outro que escuta, num processo que visa, em última instância, devolver verdade à sua existência.
O paradoxo que assim se instala é, no mínimo, fascinante. Através de clássicos como Um Eléctrico Chamado Desejo (1951) e Há Lodo no Cais (1954), Brando foi, a par de James Dean ou Paul Newman, uma das figuras determinantes na integração do Método (sistema de representação enraizado nos ensinamentos do russo Constantin Stanislavski) no cinema de Hollywood — o filme inclui, aliás, algumas breves e preciosas imagens da sua professora, a lendária Stella Adler, e da sua procura de uma verdade do actor que começa numa relação aberta, honesta e corajosa com as suas emoções mais secretas. Ao mesmo tempo, dir-se-ia que Brando viveu grande parte da sua existência a lutar contra os efeitos perversos da fama. Na sequência de uma tragédia familiar — em que o filho Christian matou o namorado da sua meia-irmã, Cheyenne —, proferiu publicamente estas palavras: “Tem sido uma luta tentar preservar a sanidade e o sentido de realidade que o sucesso nos retira.”
Descobrir Brando para lá dos rituais mais ou menos fúteis do sucesso leva-nos, assim, a compreender algo que ele próprio sublinha: representar não é o oposto da vida normal, mas sim algo que a contamina em todos os espaços (a começar pelos consideramos mais familiares). Somos todos actores, garante-nos Brando.

* LISTEN TO ME MARLON
de Stevan Riley
DVD
Edição: UNIVERSAL
14,99 €

CANNES 2016 * — filmes em competição (4)

THE NEON DEMON
Nicolas Winding Refn
(Dinamarca)
História de uma jovem que quer triunfar como modelo em Los Angeles, o novo título de Nicolas Winding Refn anuncia-se como um exercício de terror, protagonizado por Elle Fanning, Keanu Reeves e Christina Hendricks. É a terceira vez que este cineasta dinamarquês está na secção competitiva do festival, tendo ganho o prémio de realização em 2011, com Drive - Risco Duplo.


"Time" x 100

Mark Zuckerberg e a sua mulher, Priscilla Chan, comentados por Bill e Melinda Gates.
O Papa Francisco visto por Joe Biden.
Mark Rylance por Steven Spielberg.
John Kerry por Bono.
Leonardo DiCaprio por John Kerry.
Eis algumas das propostas da já tradicional lista das '100 pessoas mais influentes' segundo a revista Time."Pioneiros", "Titãs", "Artistas", "Líderes" e "Ícones" são as categorias propostas — para ler num dossier especial (com seis capas alternativas).

quinta-feira, abril 21, 2016

Prince (1958 - 2016)

Génio da história musical das últimas décadas, Prince faleceu no dia 21 de Abril, na sua casa de Chanhassen, Minnesota, cerca de uma semana depois de ter estado internado devido a uma gripe — contava 57 anos.
Filho de Mattie Della, uma cantora de Jazz, e John L. Nelson, pianista e autor de letras para canções, Prince Rogers Nelson foi um criador de muitas influências, capaz de as integrar e reinventar num universo muito próprio e inconfundível. Desde o cruzamento de funk, R&B e pop que encontramos, desde logo, nos primeiros álbuns — Dirty Mind (1980), Controversy (1981), etc. — até  ao inclassificável e sedutor ecletismo dos trabalhos mais recentes (terminais?) — HITnRUN Phase One (2015) e HITnRUN Phase Two (2015) —, passando, claro, por momentos tão emblemáticos como Purple Rain (1984), Sign 'O' the Times (1987) ou Diamonds and Pearls (1991).
A sua capacidade de ziguezaguear entre estilos, géneros e instrumentos (era também um guitarrista exímio, um genuíno natural) levou-o também ao cinema, nomeadamente com Purple Rain (1984), de Albert Magnoli, veículo menor para um álbum maior; neste domínio, as suas mais importantes contribuições serão as canções originais de Batman (1989), de Tim Burton, e Girl 6 (1996), brilhante realização de Spike Lee (com Madonna num pequeno papel) que nunca estreou nas salas portuguesas. Em todo o caso, foi Purple Rain que lhe valeu um Oscar (melhor canção), tendo também ganho sete Grammy, o último dos quais em 2008, na categoria de melhor interpretação vocal masculina em R&B, por Future Baby Mama.
Paradoxalmente, este notável músico, cantor e entertainer foi também um resistente a alguns dos vectores mais emblemáticos da sociedade digital, no limite assumindo-se como um céptico da Internet — é, aliás, muito difícil encontrar ficheiros de vários dos seus telediscos, uma vez que ele restrigiu drasticamente a sua difusão. A sua herança teria (ou terá), por certo, um balanço essencial nas memórias que, há poucas semanas, tinha anunciado para publicação em 2017.
Por assumido paradoxo, Prince foi uma pessoa pública que, a certa altura, substituiu o seu nome por um símbolo (designação também de um extraordinário álbum de 1992 cujo primeiro tema se chama, ironicamente, My Name Is Prince), tendo passado mais tarde por um período em que se auto-designava 'The Artist' (assim surgiu identificado numa célebre entrevista com Larry King, a 10 de Dezembro de 1999) ou 'The Artist Formerly Known as Prince' — em qualquer caso, nada disso o destituiu da condição de ícone da realeza musical.


I WANNA BE YOUR LOVER (1979) [gravação de 1982]


PURPLE RAIN (1984) [gravação de 2007]

LOVE SONG (1989) [com Madonna]

madonna He Changed The World!! A True Visionary.
What a loss. I'm Devastated.🦄 This is Not A Love Song.


CREAM (1991)


GOLD (1995)


WHILE MY GUITAR GENTLE WEEPS
Homenagem a George Harrison / Rock & Roll Hall of Fame (2004)
[com Tom Petty, Steve Winwood, Jeff Lynne, etc.]

>>> Obituário: Rolling Stone + New York Times + Le Monde.
>>> Prince no AllMusic.
>>> Prince no Rock & Roll Hall of Fame.

Rihanna filmada por Harmony Korine

Eis um daqueles acontecimentos instantâneos. Ou melhor: que se consolida (e amplia) através da própria multiplicação (de links e reproduções) típica deste nosso território virtual. A notícia é esta: Rihanna tem um novo teledisco e até mesmo a MTV, por estes dias mais dada aos horrores da reality TV, se empenha em divulgá-lo através de 11 GIFs [exemplo].


Concretamente: Needed Me, do álbum Anti, surge num teledisco assinado por Harmony Korine, símbolo de uma ambígua marginalidade artística — foi ele que realizou o clássico de culto Gummo (1997), depois de se ter distinguido como argumentista de Larry Clark (Miúdos, 1995). Em cena uma espécie de condensação de um thriller de "sexo & violência" em que Rihanna assume a personagem da vingadora. Desafiando os códigos tradicionais deste tipo de produtos, em particular na figuração dos actos de violência e nos detalhes de nudez, o clip tem tanto de eficaz como de redundante. Será, talvez, um sintoma de uma cultura de "protesto" que, em última instância, já gerou o seu próprio academismo — vale a pena ver e analisar.

CANNES 2016 * — filmes em competição (3)

ELLE
Paul Verhoeven
(Holanda)
O realizador holandês Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert num thriller centrado numa mulher, dirigente de uma companhia de jogos de video, assaltada e violada em sua casa. É a segunda vez que Verhoeven está na secção competitiva do festival — a primeira ocorreu em 1992, com Instinto Fatal.


Ronit Elkabetz (1964 - 2016)

Era a mais popular actriz do cinema israelita: Ronit Elkabetz faleceu no dia 19 de Abril, vítima de cancro — contava 51 anos.
Começou a sua carreira como modelo, tendo estudado em Paris, com Ariane Mnouchkine, no Théâtre du Soleil. Em 2004, escreveu e dirigiu com o irmão, Shlomi Elkabetz, o drama, em parte autobiográfico VeLakahta Lekha Isha (título inglês: To Take a Wife). Voltou a colaborar com o irmão em Shiva (2008) e Gett: O Processo de Viviane Amsalem (2014), este o seu filme mais conhecido (estreado e lançado em DVD no mercado português). Participou também em La Fille du RER (2009), de André Téchiné, e Cinzas e Sangue (2009), de Fanny Ardant. Depois de Gett, apenas surgiu em Trepalium (2016), série televisiva francesa de ficção científica. Por duas vezes, com Hatuna Meuheret (2001) e Bikur Ha-Tizmoret (2007), ganhou o prémio de melhor actriz atribuído pela Academia Israelita de Cinema.

>>> Entrevista de Ronit Elkabetz ao canal EuroNews, em 2008, a propósito do filme Shiva.


>>> Obituário no New York Times.

terça-feira, abril 19, 2016

Savages visitam Ellen

Esta é Jehnny Beth, vocalista da banda Savages, no programa de Ellen DeGeneres. Foram interpretar Adore, do seu magnífico segundo álbum Adore Life — o punk nas margens da pop (ou talvez o contrário).

Benjamin Clementine em concerto na NPR

Revelação absoluta com o álbum At Least for Now, vencedor do Mercury Prize 2015, Benjamin Clementine é uma genuína força de natureza. Entenda-se: senhor de um reino solitário a que, para além das singularidades da voz, basta a cumplicidade de um piano — ei-lo, como tal, numa performance da série 'Tiny Desk Concerts', na NPR.

Mike Nichols v. Mike Nichols

A primeira fase da carreira cinematográfica de Mike Nichols é pretexto para um belo documentário — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Abril), com o título 'O eterno enigma de ser actor'.

Nascido na Alemanha, o encenador teatral e cineasta americano Mike Nichols faleceu no dia 19 de Novembro de 2014, contava 83 anos. O derradeiro evento público em que participou — uma conversa com o seu amigo Jack O’Brien, produtor e director teatral —, está na base de Becoming Mike Nichols, documentário dirigido por Douglas McGrath (autor, entre outros, do filme Infame, sobre Truman Capote, lançado em 2006).
Actualmente a passar nos canais TVCine, Becoming Mike Nichols tem chancela de produção da HBO e começa por ser um belíssimo exemplo de uma lógica televisiva em que a arte da fala está muito para além da acumulação de elementos mais ou menos pitorescos. É uma lição modelar sobre as virtudes do diálogo, em tudo e por tudo contrária a esse narcisismo simplista que reduz a pluralidade do mundo à visão fechada de um “eu” sem disponibilidade para olhar (muito menos compreender) os outros. Dito de outro modo: este não é um produto da ideologia dos “famosos”.
No caso de Nichols, cujos derradeiros filmes foram Perto Demais (2004) e Jogos de Poder (2007), tal disponibilidade passa pela paixão de trabalhar com actores. Em boa verdade, ele foi, em primeiro lugar, um actor. E um actor do espaço televisivo: os seus admiráveis sketches com Elaine May são momentos emblemáticos da história da comédia na televisão dos EUA, além do mais constituindo uma demonstração eloquente das virtudes da improvisação.
Nichols explica a sua atracção pelos imponderáveis caminhos do improviso através de elementos de natureza psicanalítica. Que é como quem diz: mais do que uma direcção determinista dos actores (fazer um gesto para “significar” isto ou aquilo...), importa deixar-lhes espaço — físico e emocional — para que possam encontrar aquela “coisa” inconsciente que os transforma em portadores de um texto que, afinal, fala através do próprio corpo.
A evocação do primeiro filme de Nichols, Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966), escrito por Ernest Lehman a partir da peça homónima de Edward Albee, é especialmente esclarecedora. Porque Nichols soube dirigir de modo invulgar o mais famoso par da época (Elizabeth Taylor/Richard Burton), mas também porque o filme funcionou como processo de aprendizagem em que o encenador de palco se viu na necessidade de compreender e aplicar as novas medidas do espaço induzidas pela utilização de uma câmara.
Becoming Mike Nichols (que poderíamos traduzir livremente por “Como Mike Nichols se tornou Mike Nichols”) termina com a abordagem da segunda longa-metragem do cineasta, The Graduate/A Primeira Noite (1967), com Dustin Hoffman, Anne Bancroft e Katharine Ross, testemunho vital da crise cultural e simbólica dos anos 60. Rever tais referências através das palavras de Nichols projecta-nos para além da mera nostalgia, levando-nos a revalorizar o enigma que transfigura um actor em personagem.

Paul Verhoeven no IndieLisboa (2/2)

O HOMEM TRANSPARENTE (2000)
Paul Verhoeven é um dos "heróis independentes" da 13ª edição do IndieLisboa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Abril), com o título 'A independência irónica de Paul Verhoeven'.

[ 1 ]

O gosto de espectáculo de Verhoeven enraíza-se numa espécie de reconversão paródica da aliança “sexo & violência” que, na altura [primeira metade dos anos 70], balizava muitas discussões sobre as fronteiras do cinema (ainda hoje não saímos desse simplismo). Aliás, antes da integração no cinema americano, ele já assinara o épico medieval Amor e Sangue (1985), bem típico de tal visão. Reforçou-a logo após RoboCop, com Total Recall/Desafio Total (1990), transformando um conto de Philip K. Dick numa espécie de ópera bufa abrilhantada pelo inimitável Arnold Schwarzenegger.
Seguiu-se Instinto Fatal (1992), o filme que fez de Sharon Stone uma estrela, ao mesmo tempo que comprometeu para sempre a sua carreira — ser reduzida pela imprensa mais frívola de todo o planeta àquela “que abria as pernas” não é coisa simples. Bem sabemos que Stone pode ser admirável (veja-se Casino, de Martin Scorsese, lançado três anos mais tarde), mas nada disto acontece de forma inocente. No limite, a principal vítima foi o próprio filme: Instinto Fatal é um “thriller” suavemente inteligente, jogando com a ambivalência moral do olhar do próprio espectador, mas não foi por isso que ficou na história. Depois de todos os processos de demonização a que foi sujeito pelos mais diversos preconceitos anti-americanos, vê-lo agora programado com o rótulo de “obra independente” pode ser um “gag” salutar.
Por ingenuidade ou megalomania (uma coisa parece poder atrair a outra), Verhoeven lançou-se, então, na realização de Showgirls (1995), crónica sobre o mundo do “striptease” em Las Vegas. Dir-se-ia o filme erótico para acabar com todos os filmes eróticos... Os resultados ficaram como involuntariamente cómicos, com um saldo pouco simpático para o realizador — para além do apoteótico desastre comercial, o filme foi acompanhado por um grosseiro ritual de purificação (mediática e industrial). Em Hollywood, Verhoeven ainda fez Soldados do Universo (1997) e O Homem Transparente (2000), este uma brilhante variação sobre o 'Homem Invisível' (a meu ver, o objecto mais consistente de toda a sua filmografia). E voltou a trabalhar na Europa, sendo Elle, um “thriller” com Isabelle Huppert, o título que concluiu recentemente [seleccionado para a competição de Cannes].
Em Novembro de 2015, homenageado no Festival de Key West, na Florida, proclamou: “Sobrevivi a Showgirls!”. E adivinhem qual o filme projectado na homenagem? Showgirls. Na altura, em entrevista ao site IndieWire, Verhoeven formulou mesmo um voto cândido: “Claro que há elementos exagerados em Showgirls que podemos considerar irónicos ou satíricos. Em algumas entrevistas logo a seguir ao seu desastre, eu disse que, no espaço de 50 anos, as pessoas o veriam de modo diferente. Foi o que eu disse. Creio que é um filme elegante, muito bem feito de um ponto de vista artístico e visual.” Ainda antes de tão imperiosa reflexão, agendada para 2045, Showgirls será projectado, daqui a poucas semanas, em Lisboa.