terça-feira, abril 19, 2016

Mike Nichols v. Mike Nichols

A primeira fase da carreira cinematográfica de Mike Nichols é pretexto para um belo documentário — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Abril), com o título 'O eterno enigma de ser actor'.

Nascido na Alemanha, o encenador teatral e cineasta americano Mike Nichols faleceu no dia 19 de Novembro de 2014, contava 83 anos. O derradeiro evento público em que participou — uma conversa com o seu amigo Jack O’Brien, produtor e director teatral —, está na base de Becoming Mike Nichols, documentário dirigido por Douglas McGrath (autor, entre outros, do filme Infame, sobre Truman Capote, lançado em 2006).
Actualmente a passar nos canais TVCine, Becoming Mike Nichols tem chancela de produção da HBO e começa por ser um belíssimo exemplo de uma lógica televisiva em que a arte da fala está muito para além da acumulação de elementos mais ou menos pitorescos. É uma lição modelar sobre as virtudes do diálogo, em tudo e por tudo contrária a esse narcisismo simplista que reduz a pluralidade do mundo à visão fechada de um “eu” sem disponibilidade para olhar (muito menos compreender) os outros. Dito de outro modo: este não é um produto da ideologia dos “famosos”.
No caso de Nichols, cujos derradeiros filmes foram Perto Demais (2004) e Jogos de Poder (2007), tal disponibilidade passa pela paixão de trabalhar com actores. Em boa verdade, ele foi, em primeiro lugar, um actor. E um actor do espaço televisivo: os seus admiráveis sketches com Elaine May são momentos emblemáticos da história da comédia na televisão dos EUA, além do mais constituindo uma demonstração eloquente das virtudes da improvisação.
Nichols explica a sua atracção pelos imponderáveis caminhos do improviso através de elementos de natureza psicanalítica. Que é como quem diz: mais do que uma direcção determinista dos actores (fazer um gesto para “significar” isto ou aquilo...), importa deixar-lhes espaço — físico e emocional — para que possam encontrar aquela “coisa” inconsciente que os transforma em portadores de um texto que, afinal, fala através do próprio corpo.
A evocação do primeiro filme de Nichols, Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966), escrito por Ernest Lehman a partir da peça homónima de Edward Albee, é especialmente esclarecedora. Porque Nichols soube dirigir de modo invulgar o mais famoso par da época (Elizabeth Taylor/Richard Burton), mas também porque o filme funcionou como processo de aprendizagem em que o encenador de palco se viu na necessidade de compreender e aplicar as novas medidas do espaço induzidas pela utilização de uma câmara.
Becoming Mike Nichols (que poderíamos traduzir livremente por “Como Mike Nichols se tornou Mike Nichols”) termina com a abordagem da segunda longa-metragem do cineasta, The Graduate/A Primeira Noite (1967), com Dustin Hoffman, Anne Bancroft e Katharine Ross, testemunho vital da crise cultural e simbólica dos anos 60. Rever tais referências através das palavras de Nichols projecta-nos para além da mera nostalgia, levando-nos a revalorizar o enigma que transfigura um actor em personagem.