sexta-feira, abril 22, 2016

Marlon Brando por Marlon Brando (1/2)

Listen to Me Marlon é um notável documentário em que Marlon Brando surge através de registos sonoros das suas próprias palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Abril), com o título 'Marlon Brando - A história contada pelas palavras esquecidas'.

A história de Marlon Brando envolve muitos contrastes e contradições que talvez se possam condensar nestas palavras: “Um homem perturbado e só, enredado em memórias, num estado de confusão, tristeza, isolamento e desordem. Passou a ser convocado para além das regras normais da sociabilidade, acabando por tornar-se um boneco mecânico. Talvez sentisse que era mal tratado, tendo ficado revoltado com esse tratamento”.
O autor de tão desencantada descrição não é um qualquer analista que se tenha debruçado sobre as zonas mais obscuras da vida de Brando — é ele próprio que traça tal retrato. Podemos escutá-lo a dizer essas e muitas outras palavras de auto-análise no documentário Listen to Me Marlon, de Stevan Riley, agora disponível em DVD. E importa sublinhar tal singularidade: trata-se de escutar o actor, sem que haja imagens registadas no próprio momento em que as palavras foram ditas.
O ponto de partida de Listen to Me Marlon é um arquivo sonoro do próprio Brando, incluindo reuniões de trabalho, entrevistas, sessões de terapia e até simples conversas em ambiente caseiro. Depois do falecimento do actor (em 2004, aos 80 anos), o arquivo permaneceu esquecido no espólio da família e só agora foi colocado à disposição da equipa de Riley e do produtor John Battsek (responsável por À Procura de Sugar Man, Oscar de melhor documentário de 2012).
Desde os primeiros momentos, o filme tira partido de uma experiência que Brando protagonizou, na década de 90, quando se deixou que o seu rosto fosse registado em imagens digitais, para permitir algumas experiências de “interpretação” virtual. Ironicamente, reconheceu que a criação de personagens a partir de imagens computorizadas talvez seja o “canto do cisne” dessa nobre profissão — ser actor — de que ele foi (e é) um dos símbolos mais universais.
HÁ LODO NO CAIS
[cartaz francês]
A partir de tais imagens, a equipa de Riley vai construindo uma narrativa que integra entrevistas, depoimentos e extractos de filmes que, de facto, não se deixa resumir pelo subtítulo — “A Vida de Marlon Brando” — que o DVD apresenta. A tradução literal do título original — “Escuta-me, Marlon” — seria muito mais sugestiva. Trata-se de colocar em cena um homem que aceita dividir-se em dois, um que fala, outro que escuta, num processo que visa, em última instância, devolver verdade à sua existência.
O paradoxo que assim se instala é, no mínimo, fascinante. Através de clássicos como Um Eléctrico Chamado Desejo (1951) e Há Lodo no Cais (1954), Brando foi, a par de James Dean ou Paul Newman, uma das figuras determinantes na integração do Método (sistema de representação enraizado nos ensinamentos do russo Constantin Stanislavski) no cinema de Hollywood — o filme inclui, aliás, algumas breves e preciosas imagens da sua professora, a lendária Stella Adler, e da sua procura de uma verdade do actor que começa numa relação aberta, honesta e corajosa com as suas emoções mais secretas. Ao mesmo tempo, dir-se-ia que Brando viveu grande parte da sua existência a lutar contra os efeitos perversos da fama. Na sequência de uma tragédia familiar — em que o filho Christian matou o namorado da sua meia-irmã, Cheyenne —, proferiu publicamente estas palavras: “Tem sido uma luta tentar preservar a sanidade e o sentido de realidade que o sucesso nos retira.”
Descobrir Brando para lá dos rituais mais ou menos fúteis do sucesso leva-nos, assim, a compreender algo que ele próprio sublinha: representar não é o oposto da vida normal, mas sim algo que a contamina em todos os espaços (a começar pelos consideramos mais familiares). Somos todos actores, garante-nos Brando.

* LISTEN TO ME MARLON
de Stevan Riley
DVD
Edição: UNIVERSAL
14,99 €