sábado, abril 30, 2016

Manoel de Oliveira, João Botelho e nós

Manoel de Oliveira em Acto da Primavera (1963)
Foi apresentado no IndieLisboa um filme em que João Botelho evoca o seu mestre Manoel de Oliveira — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Abril), com o título 'No espelho de Manoel de Oliveira'.

De que falamos quando falamos do cinema de Manoel de Oliveira? A pergunta envolve um perverso jogo de espelhos. Como todos os grandes criadores, Oliveira é alguém que convoca a singularidade do espectador: quando dizemos “ele”, somos levados a repensar o nosso “eu”. É isso mesmo que faz João Botelho num filme belíssimo, intitulado O Cinema, Manuel de Oliveira e Eu, estreado no IndieLisboa.
Não por acaso, entre as memórias da filmografia de Oliveira convocadas por Botelho, Acto da Primavera (1963) emerge como a mais emblemática das referências. Através do seu registo da Paixão de Cristo, interpretada pelos habitantes da aldeia transmontana da Curalha, Oliveira celebrava, antes de tudo o mais, a verdade teatral das palavra. E a expressão não tem nada de arbitrário: a verdade não se apresenta, aqui, como uma entidade passiva que o cinema transcreve (nada a ver com o naturalismo pueril dos apanhados televisivos); a sua dinâmica está enraizada numa teatralidade em que, em última instância, se discutem as diferentes visões do mundo.
João Botelho
[Foto: Miguel A. Lopes]
Muito antes da actual “moda” dos documentários (com alguns filmes admiráveis, não é isso que está em causa), Acto da Primavera fazia ver o documental como uma variante do desejo de ficção que anima o ser humano, a sua incansável necessidade de contar e partilhar histórias.
Botelho conduz tal desejo a um extremo de radicalismo formal e amor cinéfilo, encenando uma história herdada do próprio Oliveira. Assim, a certa altura, através da sua voz off, recorda uma ficção melodramática sobre uma prostituta, pertencente à galeria imensa das histórias que Oliveira nunca chegou a filmar. Botelho chama-lhe “sua”, dá-lhe o título de A Rapariga das Luvas, e encena-a como se fosse um filme mudo, assumindo as leis narrativas do cinema antes do som (integrando mesmo o obrigatório acompanhamento ao piano, numa delicada interpretação de Nicholas McNair).
O resultado envolve qualquer coisa de raro e desconcertante. Aqui está um filme que começa como um documentário na primeira pessoa, transfigurando-se num ritual de imagens e sons em que o cinema desafia, nem que seja pela ironia dos contrastes formais, os seus próprios limites. Nesta perspectiva, O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu sublinha uma das frases nucleares de Botelho: “Oliveira nunca fez filmes. Fez cinema. Fez cinema contemporâneo dele e, sobretudo, cinema que anunciava o que viria depois.”
Há qualquer coisa de profilático no trabalho de Botelho. Afinal de contas, quando Oliveira faleceu, há pouco mais de um ano, parecia que os difamadores de muitas décadas se tinham transformado todos, por milagre, em adoradores do “mestre”... Para combater tão vil cinismo, importa continuar a filmar, questionando o próprio cinema, questionando a difícil arte de ser espectador. É isso que Botelho arrisca.