Notícias sobre o Netflix relançam a questão fulcral do que se programa e do modo que se programa — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'A tragédia dos “conteúdos"'.
Notícia de segunda-feira [18 Abril], no site da BBC, dava conta de uma quebra de 9%, na bolsa de Nova Iorque, do valor das acções do Netflix. Na origem da desvalorização estarão os índices de crescimento das assinaturas, inferiores às expectativas, tanto nos EUA como nos mercados internacionais (o Netflix opera em quase duas centenas de países). Entretanto, no mesmo dia ficou a saber-se que, nos EUA, a Amazon lançou novas tabelas para o serviço de streaming, apostando em concorrer de forma agressiva com o Netflix, precisamente, e também o Hulu.
Dada a volatilidade dos mercados de todas as actividades (e também a gestão mediática das suas convulsões), é bem provável que, daqui a alguns dias, estes dados surjam completamente invertidos, num jogo de evidências e especulações em que o consumidor surge reduzido a uma marioneta sem poder. Um pouco como as notícias das transferências de futebolistas: todos os dias nos garantem que aquele grande craque que já estava certo na equipa X, afinal poderá ir parar à equipa Y, se o seu empresário conseguir conjugar o negócio com a colocação de um outro jogador na equipa Z...
Assistimos ao triunfo de uma lógica de desenvolvimento em que os decisores celebram os “conteúdos”, embora, em boa verdade, apenas queiram vender (e promover) plataformas de difusão. Assim vai o mundo audiovisual e, em particular, o território televisivo: a especificidade dos programas tende a ser secundarizada, incutindo-se no cidadão a ideia (?) de que o fundamental é ser assinante “daquela” plataforma que se distingue pelo volume da oferta ou pela pequenez da assinatura.
Eis uma grande questão cultural do audiovisual contemporâneo: muito boa gente celebra aqueles que encara como consumidores, quase ninguém pensa que eles são sempre... espectadores! Um dia destes, a canção de Bruce Springsteen corre o risco de já não ser metafórica: “57 canais e nada para ver...”