RENÉ MAGRITTE: A Clarividência (1936) |
"Tenho uma doença: vejo a linguagem"
ROLAND BARTHES
Edições 70, 1976
1. Há qualquer coisa de involuntariamente irónico no empenho — ideológico e moral — com que o Bloco de Esquerda defendeu a reconversão do "Cartão de Cidadão" em "Cartão de Cidadania", lembrando: "A linguagem que utilizamos reproduz, como é sabido, as representações sociais de género predominantes num determinado contexto histórico e cultural, refletindo-se depois, muitas vezes, em verdadeiras práticas discriminatórias."
2. Não me refiro, entenda-se, à avalanche de agressões "sociais", com que as ditas redes presentearam a proposta do BE — não precisamos de estar de acordo com um discurso para, face a esse inferno de mediocridade e impunidade, defender quem por ele é visado.
3. Refiro-me, isso sim, à candura com que o BE entra e sai da problemática da linguagem. Entenda-se: da problemática política da linguagem — não como "veículo" neutro de "informação", mas sim como matéria viva do nosso viver. E, para mais, pressupondo um universalismo sem arestas: como é sabido... (um pouco como os comentadores de política e futebol argumentam proclamando que uma determinada afirmação ou atitude... "vale o que vale").
4. De facto, a definição política do BE está assombrada por um problema de linguagem que, bem sabemos, a cena política ultrapassou (por que preço? — não sabemos), mas que persiste como subtexto sempre disponível para saltar para o espaço mais visível das práticas quotidianas — numa inusitada variação do retorno do recalcado.
5. Assim, o BE é o partido que considera que "existe uma grande coligação entre conservadores e socialistas, coligação dirigida pela Alemanha, que é hoje quem manda na União Europeia, e que impõe uma ditadura dos mercados e uma política de austeridade, desemprego, pobreza e desigualdade" [Manifesto Eleitoral]. Vê-se mal — em boa verdade, não é possível ver — como tão contundente diagnóstico se harmoniza com a actual convivência governamental do BE com o Partido Socialista.
6. É bem certo que tal convivência penaliza, antes de tudo o mais, o PS. E que o PS a ela se tenha acomodado de forma tão bem disposta e disponível, eis o que instala uma interrogação duradoura sobra a sua identidade — no limite, sobre a ideia europeia de "esquerda".
7. Para já, fica uma perplexidade: até onde o BE quer conduzir a sua muito talentosa arte de ocupar o espaço mediático? Como nenhuma outra força política, o BE compreendeu a lógica dominante dos soundbytes e dos discursos de protesto ("protestar", nem que seja contra um treinador de futebol, é coisa que garante infinitas repetições nos noticiários televisivos), arriscando agora apresentar-se como guardião da linguagem. Resta saber se o BE julga que a cidadania implica não ver a linguagem. Por cruel ironia, a palavra linguagem é feminina para nós, masculina no francês de Roland Barthes — como é sabido.