segunda-feira, setembro 30, 2013

Design de 'Interiors'...

É pelo nome Glasser que se apresenta a norte-americana Cameron Mesirow. Com discografia que remonta já a 2009, o projeto anuncia para breve o lançamento do álbum Interiors. Para já fica um aperitivo ao som de Design.

Sound + Vision Magazine
hoje às 18,30 na Fnac Chiado


A sessão deste mês do Sound + Vision Magazine, que tem lugar hoje pelas 18.30 na Fnac Chiado conhece dois destaques centrais. Por um lado a edição em DVD do documentário À Procura de Sugar Man, e por outro o lançamento, em vários formatos, de um registo da MDNA Tour de Madonna, que nos fará caminhar entre algumas memórias de outros filmes nascidos entre digressões anteriores.

 A edição deste mês passa ainda por outros focos de atenção como o lançamento de uma edição comemorativa dos 20 anos de ‘In Utero’, dos Nirvana, a edição em DVD de ‘Lore’ e ainda a chegada de um primeiro aperitivo para aquele que em outubro será o novo álbum dos Arcade Fire.

Novas edições:
David Sylvian, Do You Love Me Now?


David Sylvian

“Do You Know Me Now?”
Samadhi Sound
5 / 5

O desvio do centro de gravidade das atenções discográficas para o formato do álbum que ocorreu entre os finais da década de 80 e o início dos anos 90 afastou igualmente do destino das opiniões críticas a esmagadora maioria dos lançamentos no formato de single (e basta recuar no tempo a meados dos oitentas para lembrar como eram então raros os lançamentos em 45 rotações a não merecer uma reflexão na semana do seu lançamento). Habituámo-nos assim a falar de singles como pouco mais que aperitivos ou janelas de atenção lançadas sobre o alinhamento de álbuns. Mas quando surge pela nossa frente um acontecimento como a edição de um dez polegadas em vinil com duas canções por um nome com a dimensão de um David Sylvian, não há como não reconhecer que se trata de um episódio maior na história discográfica do ano em curso. Na verdade apenas uma destas canções é inédita, sendo que Do You Love Me Now? representa o melhor tema que o músico lança no formato de single desde os dias de Let The Happiness In (1987). De resto, há na estrutura clássica (e acústica) da canção e nos arranjos que contam com a discreta presença de uma orquestra sinais de um reencontro com os caminhos que o músico seguia nos dias de Secrets Of The Beehive (a sua obra-prima, editada também em 1987), interrompendo (só não sabemos se pontualmente) um percurso de relacionamento com electrónicas e com os espaços da música improvisada nos quais a sua música tem habitado desde Blemish, já lá vão dez anos. O tema nasceu de um desafio lançado com vista à colaboração de Sylvian numa instalação. Tal como os demais envolvidos nesse projeto coletivo, o músico usou sons gravados (com o consentimento dos utilizadores) num telefone instalado num centro para sem-abrigo na cidade de Colónia. Dessas gravações cada um dos envolvidos na instalação My heart’s in my hand, and my hand is pierced, and my hand’s in the bag, and the bag is shut, and my heart is caught (título que cita Jean Genet) retirou elementos, sons ou palavras, que trabalhou para apresentar, por sua vez, em pequenas cabines telefónicas colocadas no espaço da exposição. Foi neste contexto que nasceu Do You Know Me Now?, que agora surge nesta edição (exclusiva em vinil de dez polegadas e também lançamento digital) que junta no lado B o igualmente magnífico Where’s Your Gravity, que foi apresentado em 2012 como inédito no alinhamento da antologia Victim of Stars. E assim um “simples” single nasce como um dos grandes discos do ano.

Porque a música é um ser político

Este texto, sobre o lançamento nos formatos de CD, DVD e Blu-ray do registo da digressão MDNA de Madonna foi originalmente apresentado na edição de 9 de setembro nas páginas do DN. 

Coimbra, 24 de junho de 2012. No Estádio Cidade de Coimbra o terceiro concerto de Madonna em Portugal (ou a sua quarta atuação entre nós, se às digressões juntarmos a performance na edição dos Prémios MTV realizada em Lisboa em 2005), mostrava como não podemos avaliar, de antemão, uma digressão pelo álbum que lhe serve de mote e até dá título. Editado também em 2012 MDNA não só foi dos álbuns musicalmente menos consequentes da cantora como representa o seu disco de originais com vendas mais reduzidas. Com um total de 88 datas pelo mundo fora, enchentes atrás de enchentes e, sublinhe-se, um espetáculo brilhante, a MDNA Tour mostrou contudo que em Madonna continuamos a ter uma figura imbatível. E o registo do concerto (para quem esteve em Coimbra ou quem lá não foi), que agora é editado em vários formatos, não deixa grandes dúvidas.

Segundo a revista Billboard a MDNA Tour foi a digressão mais rentável de 2012 (alcançando os 231,5 milhões de euros), é agora décima mais lucrativa da história e apenas a própria Madonna, com a Sticky & Sweet Tour de 2008 e 2009, superou esta no ranking das cantoras mais bem sucedidas em palco.

Dividido em quarto partes (Transgression, Prophecy, Masculine/Feminine e Redemption), o concerto revela por um lado um exigente trabalho físico de palco (não apenas para os bailarinos mas para a própria cantora), explorando noções de mise en scène de cinema (como no quadro que acolhe Gang Bang) e vincando uma agenda política em tudo fiel ao que conhecemos das ideias e criações anteriores de Madonna, abordando questões como a violência, os direitos humanos, o direito à igualdade (em várias frentes de leitura, do género e da cor da pele à sexualidade). Num dos momentos mais pungentes do espectáculo, num interlúdio em vídeo ao som de Nobody Knows Me, cita iconografias religiosoas e chega mesmo a mostrar imagens de violência homofóbica e exemplos de jovens vítimas de crimes de ódio. Quem diz que Madonna é coisa light só pode andar distraído...

Estas e outras sequências de imagens e palavras chegaram a gerar alguns dos “casos” que mediatizaram esta digressão para lá dos espaços mais habituais do “entretenimento”, seja quando Madonna defendeu as Pussy Riot ou os diretos da comunidade LGBT na Rússia ou quando juntou uma suástica à figura da líder da Frente Nacional francesa.

Musicalmente, e tal como em digressões anteriores, o alinhamento da MDNA Tour juntou ao som do álbum mais recente algumas ideias de reinvenção. Que ganham expressão maior quando, acompanhada pelo trio basco Kalkan apresentou uma leitura para Open Your Heart apenas feita de voz e percussão, juntando-lhe o tema Sakkara Jo. Não menos surpreendente foi a transformação, ao jeito de uma balada para cabaret, do clássico Like A Virgin. No fim, a cores, canta-se Celebration. É certo que não se trata de um ensaio de “canto de intervenção”. Mas tomar posição não é ser-se político?

domingo, setembro 29, 2013

No final do Queer Lisboa 17

Não é todos os dias que podemos descobrir um filme que consegue colocar em cena a articulação simbólica entre sexualidade & política, evitando a dupla armadilha da "moral" redentora e do panfleto "militante" — Out in the Dark, de Michael Mayer (Israel, 2012), apresentado extra-competição na sessão de encerramento do Queer Lisboa 17, é um desses filmes.
À partida, estamos perante um dispositivo de perturbante intensidade (melo)dramática: esta é a história de amor entre o estudante palestiniano Nmir (Nicholas Jacob) e o advogado israelita Roy (Michael Aloni) — o primeiro, detentor de um visto que lhe permite circular em Telavive, esconde da família a sua homossexualidade, ciente de que a sua revelação lhe trará drásticas consequências; o segundo, apesar da "tolerância" dos pais, não pode deixar de suscitar as mais diversas desconfianças, em particular junto das autoridades policiais, devido à sua ligação com alguém que está "a mais"...
Este resumo será significativo das tensões que Out in the Dark coloca. Em todo o caso, não é suficiente para compreendermos a perturbante subtileza do seu desenvolvimento. Isto porque o argumento, também assinado por Mayer (em colaboração com Yael Shafrir), possui a inteligência necessária e suficiente de não reduzir a instância sexual a "chave" do que quer que seja. Dito de outro modo: a tragédia partilhada por Nmir e Roy é a de um progressivo exílio a que a sua relação os vai condenando.
Que exílio é esse? Um novelo de factos concretos e impasses simbólicos em que cada um vai sentindo que a procura de um lugar para viver se estreita até ao mais desesperado absurdo. Em primeiro lugar, para Nmir, empurrado para uma situação em que a marginalização sexual se confunde com a condição de pária social; mas também no caso de Roy, descobrindo que há um preço imposto por uma legalidade (a mesma de que ele é um convicto agente profissional) cuja lógica só pode ignorar a insensatez do amor.
Que insensatez é essa? A de o amor se enraizar num dispositivo pulsional que ignora as exigências, os condicionalismos e as estratégias de qualquer quadro político. Em última análise, Out in the Dark é a história de dois homens que se descobrem encurralados no intrincado mapa dos seus desejos — tudo isso é sexual, quer dizer, nada disso é alheio à política.

sexta-feira, setembro 27, 2013

Banda de um homem só

Tem nome de grupo, mas na verdade é um projeto de um homem só. Respondendo como St. Lucia, e com "casa" em Brooklyn, prepara-se para lançar um álbum de estreia em breve. Um cartão de visita aqui fica ao som de Elevate.

Reedições:
Mike Oldfield, Five Miles Out

Mike Oldfield
“Five Miles Out”
Virgin / Universal
3 / 5

A chegada dos anos 80 levou ao universo de Mike Oldfield duas grandes novas contribuições. Instrumentalmente a sua música passou a incluir uma mais evidente presença de sintetizadores (e de novas outras maquinarias electrónicas), afinal mais não fazendo senão expressar os novos sabores do universo pop que evoluía ao seu redor. Por outro, e aprofundando novas formas já ensaiadas em Platinum, os seus discos assinalam uma transição gradual da opção por peças de grande fulgor quase sinfónico para rumar a composições mais curtas, eventualmente desaguando numa relação com a canção pop. Coube a QE2, editado em 1980, o assinalar desse momento de transição mais evidente, num alinhamento que não acolhia nenhuma composição com muito mais de dez minutos e alargando as fontes instrumentais desde os espaços da folk e do progressivo a novos sabores contemporâneos à presença da voz. Foi contudo com Five Miles Out, de 1982, que a transição se tornou definitiva, representando o disco por um lado o encerrar de um capítulo de afinidades progressivas que a sua carreira percorreu nos anos 70 e, por outro, abre as portas a uma aproximação à pop que seria marcante na sua obra dos anos 80 (e de resto responsável por um momento de grande popularidade mainstream que então viveu). O disco abre com Taurus II (a continuação de uma ideia encetada em QE2 e concluída mais tarde em Crisis), uma construção que recupera as visões sinfonistas e complexas ensaiadas nos setentas (e ausente no disco de 1980). Mas alarga horizontes a outras experiências, não apenas no uso dos sintetizadores e vocoder, mas também numa mais franca abordagem à canção pop/rock que ganha forma em Family Man (em regime rock) e no “clássico” Five Miles Out, canção pop de quatro minutos que quase sintetiza a alma de todo um disco, a sua estrutura expressando mesmo uma complexa soma de partes, como que miniaturizando as longas peças sinfonistas que antes haviam cativado a sua atenção. A nova edição de Five Miles Out junta ao alinhamento com som remasterizado alguns temas extra e, na versão DeLuxe, uma gravação de um concerto da digressão que se seguiu ao lançamento do disco.

Uma (nova) grande antologia dos Sparks

Os Sparks vão lançar em outubro uma nova antologia. O alinhamento, que se expande por quatro discos, é vasto, e propõe um panorama por uma obra discográfica que soma já mais de 40 anos. Music For Amnesiacs inclui ainda um quinto disco com gravações ao vivo e um livro de 64 páginas mais alguma memorabillia. Aqui fica o alinhamento, conforme noticiou o This Is Not Retro.

CD1 - Wonder Girl / Roger / High C / Girl From Germany / Batteries Not Included / Whippings and Apologies / This Town Ain't Big Enough For Both of Us / Amateur Hour / Equator / Talent Is An Asset / Barbecutie / Propaganda / At Home At Work At Play / Never Turn Your Back On Mother Earth / Something For The Girl With Everything / Alabamy Right / Hospitality On Parade / Happy Hunting Ground / Looks, Looks, Looks / Get In The Swing / Miss the Start, Miss the End / Big Boy / Nothing To Do / Looks Aren't Everything / Tearing The Place Apart

CD2 - Goofing Off / Over The Summer / The Number One Song In Heaven / Beat The Clock / Tryouts For The Human Race (Unreleased Version) / When I'm With You (LP Single Version) / Young Girls (LP Single Version) / Tips For Teens / Funny Face / I Married A Martian / Angst In My Pants / I Predict / Mickey Mouse / Eaten By The Monster Of Love / Cool Places / Popularity / I Wish I Looked A Little Better / Pretending to Be Drunk / A Song That Sings Itself

CD3 - Music That You Can Dance To / Change / Let's Get Funky / Singing in The Shower (with Les Rita Mitsouko) / So Important / A Walk Down Memory Lane / Madonna / National Crime Awareness Week (Psycho Cut) / Gratuitous Sax & Senseless Violins / When Do I Get To Sing "My Way" / (When I Kiss You) I Hear Charlie Parker Playing (Radio Edit) / Tsui Hark (Feat. Tsui Hark & Bill Kong) / Let's Go Surfing / Propaganda / Pulling Rabbits Out of A Hat / This Town Ain't Big Enough for Both Of Us (with Faith No More) / Bullet Train / It's A Knockoff / Calm Before The Storm

CD4 - Concerto In Koch Minor (Wunderbar) / The Rhythm Thief / How Do I Get To Carnegie Hall? / My Baby's Taking Me Home / Suburban Homeboy / I Married Myself / Dick Around / Perfume / The Very Next Fight / Metaphor / As I Sit Down To Play The Organ At The Notre Dame Cathedral / Good Morning / Lighten

Queer Lisboa 17 (dia 8)


O oitavo dia do Queer Lisboa 17 propõe um mergulho pelo universo das grandes heroínas nascidas no cinema e na BD em Wonder Women! The Untold Story of American Superheroes, documentário que passa na Sala 3 às 21.30. É também um dia importante para a secção Queer Art com uma sessão, também na Sala 3, pelas 19.15, que vai apresentar os filmes O Corpo de Afonso, de João Pedro Rodrigues, Gingers de António da Silva e Filme Para Poeta Cego, de Gustavo Vinagre. É também o dia 1 da nova secção In My Shorts, com filmes criados por alunos de escolas de cinema.

Já a seguir fica um destaque para uma outra das sessões desta edição do Queer Lisboa 17, com um texto de minha autoria que integra o catálogo do festival (e a sua expressão online).


In The Name Of
(Sala Manoel de Oliveira, 22.00)


Há uma curiosa coincidência entre O Padre, filme de 1994 de Antonia Bird (sobre um padre dividido entre uma conduta católica conservadora e uma vida secreta partilhada com um amante) e In The Name Of... (título internacional para W imie...), que este ano conquistou o Teddy Award (para melhor longa metragem de temática gay e lésbica) na Berlinale e, depois, arrecadou o Grande Prémio do Festival de Istambul: ambos são histórias de desejo no masculino realizadas por mulheres.

Realizado por Malgoska Szumowska, In The Name Of… leva-nos à Polónia rural dos nossos dias, focando em concreto o espaço quotidiano de um centro de reabilitação de delinquentes, que tem no padre da paróquia a sua figura central de autoridade e referência. Adam (interpretado por Andrzej Chyra) é um jovem padre que, fora do altar e da sacristia, veste como qualquer outro homem, ajuda nas obras de construção em que o grupo está envolvido, faz jogging na floresta e ouve música num leitor de mp3. O desejo que nele despertam os outros do mesmo sexo, em particular Lucasz, um estranho e algo distante elemento desta comunidade, fazem-no questionar não só sobre a sua sexualidade mas a própria razão da sua vocação.

Com uma câmara observadora, que alia uma demanda realista a um sentido poético, o filme reflecte sobre identidade e fé, mas também levanta debates sobre a relação da comunidade com a homossexualidade e o desejo homossexual entre figuras do clero. Longe de procurar uma abordagem moral (e, muito menos, moralista), In The Name Of… toma a figura de Adam como a de um homem dividido entre o desejo e o que toma como dever. Vive as suas fragilidades, amplificando na sua figura um paradigma de solidão. E retrata a forma como a Igreja reage com algumas das questões levantadas, procurando a realizadora contribuir assim para um debate do nosso tempo.

quinta-feira, setembro 26, 2013

Um conto com caçador

O produtor britânico Jon Hopkins juntou esforços com a cantora canadiana Megan James (do projeto Purity Ring). Podemos escutar os resultados neste Breathe The Air. O teledisco é assinado por Anthony Dickenson.

Discos pe(r)didos: Cazuza, Ideologia

Cazuza
“Ideologia”
Universal
(1988)

Há dias, no Rio de Janeiro, via uma homenagem a Cazuza integrada na edição deste ano do Rock in Rio. Pelo palco passaram nomes como Frejat (antigo parceiro do músico nos Barão Vermelho), Bebel Gilberto, Maria Gadú ou Jota Quest, mas a estrela da noite foi mesmo Ney Matogrosso que, entre as três canções que reinventou incluiu o histórico Brasil, tema que em tudo traduz uma visão do país (com ressonâncias com o presente) que recordou uma perspetiva da música como uma realidade animada por uma alma política que fez de Cazuza uma das mais importantes figuras do movimento rock que ali floresceu nos anos 80. A canção integrava o alinhamento de Ideologia, talvez o álbum de estúdio mais bem sucedido da carreira a solo de Cazuza mas, como a sua demais obra, relativamente desconhecida deste lado do Atlântico. E como mais vale tarde que nunca, mergulhemos então entre as memórias desse disco de 1988 que logo na capa deixa registado todo um programa iconográfico, retratando simbologias (algumas de origem antiga) que traduzem modos de pensar e agir que conduziram muitas das maneiras de pensar do século XX (umas ainda bem atuais), tendo então gerado até alguma controvérsia a junção, num mesmo espaço, da estrela de David e da suástica. O álbum, o terceiro a solo de Cazuza depois de uma primeira metade dos oitentas vivida a bordo dos Barão Vermelho, chegou na sequência de um tempo de reflexão profunda que certamente se seguiu não apenas ao diagnóstico de uma infeção com o VIH (feito em 1985, mas só tornado pública em 1989) mas a uma hospitalização em 1987 que o levou a um tratamento nos EUA. O disco reflete assim um tempo de incertezas e de profundo desencanto, o tema-título começando mesmo por ouvi-lo a dizer Meu partido / É um coração partido / E as ilusões / Estão todas perdidas / Os meus sonhos / Foram todos vendidos / Tão barato / Que eu nem acredito / Ah! eu nem acredito... Acrescenta depois que o seu prazer “é agora risco de vida”, que os seus “heróis morreram de overdose”, vestindo ainda a pele de um “garoto que queria mudar o mundo” mas agora “assiste a tudo em cima do muro”... Não será todavia este um canto de desistência, das fragilidades e de um fim que soube mais próximo nascendo mesmo assim um álbum de grande fôlego poético, instrumentalmente herdeiro dos caminhos que vinha a tomar (e também sob evidentes marcas do estilo de produção vigente no som pop/rock de então) e que tem em Brasil outro momento-chave que, 25 anos depois, parece estranhamente atual perante mapa dos noticiários que dali nos chegam. O concerto de homenagem deixou mesmo claro que, fosse vivo, Cazuza estaria a gostar de ver a contestação que tem marcado os últimos meses da vida nas ruas de muitas cidades do país.

E a televisão deu uma bofetada no cinema


Hoje, na minha coluna semanal no site Dinheiro Vivo falo do filme ‘Por Detrás do Candelabro’ e da recente premiação dos Emmys que fez deste um caso digno de alguma reflexão.

Ali digo: “Steven Soderbergh, Michael Douglas, David Fincher, Jeff Daniels, Claire Danes... Todos eles de prémios na mão... Pois, estamos em setembro e os Oscares são no inverno... Todos foram, na verdade, vencedores de categorias distintas na edição deste ano dos Emmys, os “óscares da TV americana”. E numa só noite a ficção televisiva deu uma bofetada a Hollywood.”

Podem ler aqui o texto completo.

Queer Lisboa 17 (dia 7)


O sétimo dia do Queer Lisboa 17 mantém atenções centradas na secção Queer Focus (que ontem apresentou Boy Eating The Bird’s Food) e Queer Art. Hoje são também apresentados dois work in progess de António da Silva e André Murraças (Sala Montepio, 19.00) e uma série de títulos da competição de Longas Metragens. Entre estes três conta-se a repetição de The Comedian, estreado na noite de ontem (17.15, Sala Manoel de Oliveira) e a estreia de Facing Mirrors, uma narrativa passada no Irão dos nossos dias. Diz a sinopse: “Passado no Irão actual, Facing Mirrors é a história de uma invulgar e ousada amizade que se desenvolve apesar das normas sociais e crenças religiosas. Embora Rana seja uma mãe e esposa tradicional, é forçada a conduzir um táxi de forma a pagar as dívidas que levaram o marido à prisão. Por acaso, apanha um dia a rebelde e rica Edi, que espera, desesperadamente, um passaporte para sair do país. A princípio Rana tenta ajudá-la, mas quando se apercebe que Edi é transsexual, uma série de conflitos perigosos emergem. Facing Mirrors é a primeira ficção iraniana com um protagonista transsexual.” O filme passa às 19.30 na Sala Manoel de Oliveira.

À noite, na Sala Manoel de Oliveira, passa o filme chileno Joven Y Alocada. Já a seguir fica o este destaque com um texto de minha autoria que integra o catálogo do festival (e a sua expressão online).


Joven Y Alocada
(Sala Manoel de Oliveira, 22.00)

Nos últimos anos, e cada vez mais, o Festival de Sundance (que, podemos dizer, abre oficialmente a nova época festivaleira a cada Janeiro que passa) tem revelado títulos que marcam incontornavelmente os meses que se seguem, tanto entre as programações de outros festivais como mesmo nos mapas locais de distribuição de cada país. Em 2012 Joven Y Alocada ali se afirmou como mais um “caso” notável, de Sundance saindo com um prémio para Melhor Argumento, daí partindo para uma carreira de expressiva visibilidade que passou já por festivais como a Berlinale ou San Sebastian.

Assinado pela chilena Marialy Rivas (de quem o Queer Lisboa já apresentou a curta Blokes), Joven Y Alocada representa também mais uma expressão de um cinema que procura reflectir e representar a idade da comunicação online. Um blogue é aqui um ponto de partida. Um blogue – com o título do próprio filme – onde a jovem protagonista (no limiar da idade adulta) dá conta de um dia a dia dividido entre o desejo, as dúvidas e as descobertas habituais na sua idade e um quotidiano sistematicamente vigiado por uma mãe conservadora e intolerante que aplica a cada lufada de ar que respira as regras de uma conduta castradora. Filha de uma família evangélica, Daniela é expulsa do colégio porque fez sexo antes do casamento. Como “castigo” é colocada num canal de TV religioso. Entre um namorado e o desejo que desperta em si a proximidade de uma amiga, acompanhamos o debate interior de Daniela ao mesmo tempo que os seus leitores, que vão lendo os “evangelhos” de alguém que não acredita que outros possam pensar por si.

Retrato de juventude que olha para pessoas e não para estereótipos, Joven Y Alocada procura por um lado cruzar a linguagem visual da comunicação online com o cinema. E, como Daniela, acredita que questionar é na verdade coisa mais sagrada à espécie humana que, simplesmente, acreditar.

quarta-feira, setembro 25, 2013

Canção para um plano fixo

É curiosa (e invulgar) a opção do norte americano Arthur Ashin, que responde habitualmente pelo nome Autre Ne Veut, para o teledisco que acompanha o tema Ego Free Sex Free. Um plano fixo, no topo de uma sala de baile, as mesas arrumadas e uma pequena multidão evoluindo ao seu redor.... Bom, na verdade a opção deve ter sido do realizador Aille Avital Tsypin, que assina o teledisco. Aqui ficam as imagens.

Novas edições:
Mazzy Star, Seasons of Your Day

Mazzy Star
‘Seasons of My Day’
Body of Music
3 / 5

Há trilogias que ficam bem como estão. Ou seja, com três peças. E quando chega uma quarta, nem sempre se repete a história. E a verdade é que o trio de álbuns (magníficos, sublinhe-se) que os Mazzy Star editaram entre She Hangs Brighly (1990) e Among My Swan (1996), passando pelo superior So Tonight That I Might See (1993), em pouco precisava do que nos traz o novo disco para continuar uma obra que em tudo se materializara e concluíra como uma das experiências maiores do mundo indie dos noventas, numa rara expressão de evolução em diálogo com tradições acústicas de heranças assimiladas do shoegaze de finais dos oitentas. Hope Sandoval, a voz (e a principal assinatura do grupo, apesar da personalidade também vincada de David Roback) não deixou de fazer discos e tanto gravou com os Warm Inventions, como colaborou em gravações dos Chemical Brothers, Air ou Massive Attack. Mas em 2009 chegaram primeiras notícias de uma reunião dos Mazzy Star, um primeiro single, com os temas Common Burn e Lay Myself Down (ambos agora recuperados para o álbum) a calar um hiato que vinha desde 1996. Agora, 17 anos depois de Around My Swan eis que surge Seasons of Your Day, um quarto álbum em tudo traçado em lógica de sintonia face aos discos lançados nos anos 90, mas estranhamente mais feito de repetições e soluções de modelos que de uma eventual continuidade que representasse um presente mais herdeiro dessas memórias que feito de decalques do que então aconteceu. Recupera-se a relação da voz com uma teia instrumental suave, mas elaborada, desenham-se trovas que transportam ecos pastorais mas que são expressões de uma cultura urbana melómana e informada. E há até instantes magníficos, como os que escutamos em Lay Myself Down, California ou In The Kindgom. É verdade que tinham encontrado uma voz. Uma linguagem. E pelos vistos a ela quiseram regressar sem contaminações. É uma opção que, pelo menos, contraria a lógica apenas feita do apelo da nostalgia sobre velhas canções que muitas vezes conduz tantas outras reuniões. E mesmo não repetindo a excelência dos discos dos noventas e com um alinhamento apenas interessante, convenhamos que, ao lado dos álbuns de reunião de tantos outros grupos, até acabam por, pelo menos, não quebrar o encanto.

Queer Lisboa 17 (dia 6)


Hoje o Queer Lisboa abre a secção Queer Focus com o filme Boy Eating The Bird's Food, do realizador grego Ektoras Lygizos, que pode representar uma das grandes surpresas desta edição do festival. Diz a sinopse "Um rapaz de 22 anos, em Atenas, não tem emprego, nem dinheiro, nem namorada, nem comida, mas tem um canário e uma linda voz para cantar. Quando fica sem casa, tem que procurar abrigo para o seu pássaro. E quando o pássaro fica aprisionado dentro do abrigo, o rapaz tem que encontrar ajuda. Ele tem que encontrar alguém a quem confessar que não tem emprego, nem dinheiro, nem namorada, nem comida". Passa na Sala Manoel de Oliveira, do Cinema São Jorge, às 19.30.

Hoje é também apresentado The Comedian, de Tom Shkolnik, filme que integra a competição para a Melhor Longa Metragem de Ficção (Sala Manoel de Oliveira, 22.00). Para quem não viu ontem, hoje repete Interior Leather Bar, o muito falado projeto de Travis Matthews e James Franco criado sobre memórias (e ausências) do clássico Cruising, de William Friedkin. Passa na Sala 3 às 17.15, em sessão conjunta com a curta In Their Room, de Travis Matthews.

Podem ver aqui a restante programação para hoje.

Já a seguir fica um destaque para uma outra das sessões desta edição do Queer Lisboa 17, com um texto de minha autoria que integra o catálogo do festival (e a sua expressão online).


I am Divine
(repete sábado, pelas 17.00, na Sala 3)

Olha... aqueles olhos não são os do nosso Glenn?... Foi mais ou menos assim, os pais reconhecendo o filho numa foto numa revista. Tempos depois de uma cisão familiar, a reconciliação com os pais aconteceu já Divine era importante figura de culto. Filho de uma família conservadora de classe média em Baltimore (onde nasceu em 1945), Harris Glenn Milstead teve uma infância difícil, sob constante violência dos colegas, refugiando-se nas suas duas paixões: a comida e o cinema. Foi com o vizinho, um rapaz chamado John (Waters, de apelido), que começou a fazer pequenos filmes, por puro prazer... Pouco depois, uma vez mais com Waters por detrás da câmara, e apresentando-se em drag como Divine, surgia como protagonista nesse acontecimento queer trash que foi Pink Flamingos, filme que faria do realizador e do actor duas das maiores figuras de referência do cinema independente norte-americano.

I Am Divine é um documentário biográfico, mas também uma celebração da memória da figura única que foi Divine, que John Waters explicou ter quebrado as regras do travesti, elevando esta arte a um nível de anarquia. Entrevistas com colaboradores, amigos e imagens de arquivo do próprio Divine cruzam-se aqui com momentos dos filmes em que participou (nos quais muitas vezes se desafiava no plano físico) e também instantes dos espectáculos que deu nos anos 80, quando encetou uma carreira em paralelo na música, editando discos como You Think You’re A Man ou Native Love (Step by Step).

Jeffrey Schwarz, produtor de renome e autor de documentários como Wrangler: Anatomy of An Icon ou Vito (sobre Vito Russo, o autor de Celluloid Closet), e que neste momento prepara um filme sobre Tab Hunter, encontra aqui mais um ponto de vista numa obra que tem ajudado a construir episódios fulcrais da história da cultura queer.

Por detrás da exuberância: a solidão


Este texto integrou um trabalho maior sobre a estreia do filme 'Por Detrás do Candelabro', de Steven Sooderbergh', publicado originalmente nas páginas do DN. 

Foi projetado pela televisão e fez carreira de sucesso nos palcos de Las Vegas, mas na verdade o pianista que chegou a ser o entertainer mais bem pago do mundo não era senão um solitário assombrado pelo peso que a sua própria fama havia criado em torno da sua imagem. Ele era aquela figura exuberante que se mostrava com longos casacos de peles, camisas de folhos, transportado num Rolls Royce especialmente decorado ou atuando com um candelabro, ao jeito de um palácio dos tempos do Antigo Regime, sobre o seu piano. Mas, tal e qual nos mostra agora o filme Por Detrás do Candelabro, de Steven Sodrebergh, Liberace era afinal um homem amargurado e perdido entre sucessivas relações com finais infelizes, sempre escondendo de tudo e todos a natureza da sua sexualidade.

Com o argumento de que era um projeto “demasiado gay” alguns estúdios de Hollywood declinaram produzir o filme que hoje chega às salas de cinema portuguesas. Numa altura em que os Estados Unidos têm um presidente que defende inclusivamente a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo, esse “argumento” parece coisa dos dias em que Liberace era o paradigma do excesso visual do showbusiness abalado pelas alegações de homossexualidade que chegaram a passar pela imprensa (gerando até processos em tribunal) e respondendo com artigos cor-de-rosa onde falava da sua mulher ideal. Uma delas sendo, como o filme evoca, a patinadora-superstar norueguesa Sonja Henie.

Produzido sob a égide do canal de televisão HBO, mas curiosamente apresentado em competição no Festival de Cannes, Por Detrás do Candelabro não corre o era uma vez da história pessoal e artística de Liberace. Opta antes, e tomando como referência a memória biográfica Behind the Candelabra: My Life with Liberace, por mergulhar nos espaços da sua vida privada. Escrito por Alex Thorleifson e Scott Thorson (que teve uma relação amorosa com o pianista), o livro conduz assim o filme para um tempo específico (finais dos anos 70) em que a vida de Liberace se transformara numa rotina de espetáculos em Las Vegas para plateias que ali reconheciam o homem que, quando tocava na televisão, parecia que falava mesmo para cada um dos espectadores.

Com um cuidado extremo na criação do guarda-roupa (que segue à risca modelos que Liberace usou) e recriando os espaços de luxo barroco nas salas da sua mansão, o filme assinala os jogos de contrastes entre estes cenários sumptuosos tantas vezes fotografados e o modo escondido como o músico respirava a sua instável vida sentimental. A figura de Scott Thorson é aqui recriada por Matt Damon, ator que esteve a bordo deste projeto de Steven Soderbergh desde que o realizador pensou em partir das memórias pessoais do antigo companheiro de Liberace para dali fazer nascer o argumento do filme. Michael Douglas, que veste a pele do protagonista, juntou-se ao elenco um ano depois. E, como os demais envolvidos no projeto, esperaram anos a fio até que chegasse a bom porto.

Figura única na história do showbiz americano, artista que dividiu opiniões, Liberace é hoje um ícone de culto algo distante da estrela mainstream que em tempos foi. Nos últimos 25 anos saíram vários livros sobre a sua vida e obra, em alguns deles sublinhando-se o facto de se ter transformado numa figura de referência da história da cultura queer. Por Detrás do Candelabro reforça, com um filme em tudo notável, a celebração dessa face outrora escondida de um artista que teve tanto de estranho como de único.

terça-feira, setembro 24, 2013

António Ramos Rosa (1924 - 2013)

É uma das figuras centrais na história da poesia portuguesa do último meio século: António Ramos Rosa faleceu no dia 23 de Setembro, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, vitimado por uma pneumonia — contava 88 anos.
Desde O Grito Claro (1958), publicou uma obra vastíssima que inclui títulos como Ocupação do Espaço (1963), A Construção do Corpo (1969), Boca Incompleta (1977), O Incêndio dos Aspectos (1980) ou Volante Verde (1986) — a coabitação cúmplice de palavra e silêncio, a par de uma delicada e dedicada atenção à sensualidade dos corpos, são linhas de força que poderão ajudar a definir uma obra que se distingue pela precisão clínica das estruturas formais.

A Festa do Silêncio

Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

in Volante Verde

Natural de Faro, no começo de Setembro, tinha doado à autarquia da cidade o espólio relativo ao percurso académico e literário. Entre as muitas distinções que recebeu, incluem-se o Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia (1980), o Prémio Pessoa (1988) e o Prémio Jean Malrieu, para o melhor livro de poesia traduzido em França (1992)

>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> Blog de António Ramos Rosa.

segunda-feira, setembro 23, 2013

Os Emmys de que televisão?...

Um prémio para Michael Douglas [foto]. E outro para Steven Soderbergh. E ainda outro para David Fincher...
Dir-se-ia o saldo de uma festiva noite de Oscars. Mas não: são personalidades emblemáticas do cinema americano distinguidas em noite de Emmys. Aliás, com provas mais que eloquentes dadas no campo dos filmes-de-cinema, podemos ainda citar outros premiados da cerimónia, incluindo Jeff Daniels, Claire Danes, Laura Linney e, last but not least, a admirável Ellen Burstyn, encarnação perfeita da mais nobre tradição de representação de Hollywood.
Não é difícil descrever o que está a acontecer: num cinema que, apesar da sua contínua vitalidade, está ferido pela degeneração galopante da ideologia dos blockbusters, alguns dos seus melhores encontram nos espaços televisivos as alternativas criativas que os estúdios (de cinema, passe a redundância) lhes recusam. O caso de Por Detrás do Candelabro é emblemático: rejeitado pelos estúdios, precisamente, acabou por se sagrar um dos grandes destaques dos Emmys deste ano, sendo eleito o melhor na área de filmes e mini-séries, além de ter arrebatado as categorias de melhor realizador (Soderbergh) e melhor actor (Douglas).
Mais do que isso: a distinção para Fincher — melhor realização/série dramática, pelo primeiro episódio de House of Cards — consagra um "desvio" televisivo de perversa ambivalência artística e de produção: produzida pela Netflix, plataforma de difusão por cabo, a série ilustra a contundente seriedade de um conceito de televisão que está muito para além da estupidificação quotidiana dos seus espectadores. E quem vier atrás, que feche a porta... Ou faça zapping.

>>> Site oficial dos Emmys: lista de premiados.

A Califórnia, segundo os Mazzy Star

De regresso aos discos, os Mazzy Star acabam de editar o álbum Seasons of Your Day. Hoje deixamos aqui o teledisco para o tema California, que assim lhe serve de aperitivo.

Novas edições:
Elton John, The Diving Board

Elton John 
“The Diving Board” 
Mercury / Universal 
4 / 5 

Na música não há regras certeiras. E por isso os graus de imponderabilidade que nascem das atitudes dos músicos ou das reações dos públicos guardam sempre uma dose valente do fator surpresa para o momento da revelação do disco e de como com ele nos relacionamos. Há contudo entre os veteranos uma noção de que, muitas vezes, o regresso às origens – o tal “back to the basics” - costuma ser uma boa opção. Nem que pelo facto de devolver o músico a um terreno onde, muitas vezes, já foi feliz. Isto para não dizer que este tipo de opções devolvem também os músicos a formas e referências que lhes foram formadoras, que dominam bem e que, na generalidade dos casos, lhes terão dado alguns dos seus melhores discos (os Beatles são mesmo uma das raras exceções de carreiras em que a obra tardia supera a inicial). Elton John não tem gravado muito nos últimos anos. Mas convenhamos que data de 2001 aquele que é um dos seus melhores discos de sempre e, inexplicavelmente, um dos mais ignorados. Trata-se de Songs From The West Coast, um mergulho sóbrio e inspirado, com magníficas canções e a companhia de nomes como Rufus Wainwright ou Stevie Wonder por terrenos americanos. O disco passou longe das atenções. Mas não foi muito diferente o destino dos sucessores Peach Tree (2004), The Captain and the Kid (2009) ou o encontro com Leon Russell (editado em 2010), pelo caminho um novo 'best of' deixando claro que o seu nome ainda vale ouro... O álbum de 2009 ensaiava uma tentativa de regresso ao passado, nomeadamente através da busca de uma sequela para o álbum de 1975 Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy. Agora, quatro anos depois, e com T Bone Burnett na produção, a ideia de um reencontro com as suas raízes ganha ainda maior evidência num novo disco que aceitou o desafio de um reencontro com o piano, o baixo e as percussões. E a verdade é que, sob esse mais limitado elenco de sons à sua disposição, Elton John e Bernie Taupin criaram para The Diving Board o seu melhor disco desde esse já referido título maior de 2001, com ele fazendo o par dos seus melhores álbuns desde os anos 70. As canções são todas elas de recorte clássico, o vigor vocal e pianístico de Elton John revelando uma forma notável num alinhamento que merece ser referido entre os melhores da sua discografia. No fim, é este fulgor vocal e interpretativo, quem juntamente com as qualidades da escrita de Taupin, acaba por fazer deste um disco que, mesmo recuando no tempo rumo a formas instrumentais de outro tempo, acaba na verdade por projetar a música de Elton John num espaço adiante do grosso da sua obra. Tal como aconteceu no encontro de Neil Diamond com Rick Rubin, este pode ser o primeiro disco do resto da sua discografia.

Queer Lisboa 17 (dia 4)

O quarto dia do Queer Lisboa permite não só um reencontro com Continental,. o filme de abertura do festival, como com Free Fall, exibido na noite de sábado. Entre as novidades do dia conta-se o filme polaco Floating Skyscrapers, sobre o qual podem ler aqui.

Podem encontrar depois aqui toda a programação para hoje.

Já a seguir fica um destaque para uma outra das sessões de hoje com um texto de minha autoria que integra o catálogo do festival (e a sua expressão online).



She Said Boom - The Story of Fifth Column
(Sala 3, 21.30)

Há artistas que, mesmo tendo desempenhado um papel pioneiro em algumas regiões da música popular, acabam por vezes arrumados (com algum injusto esquecimento) num mundo distante de memórias menos revisitadas. E há depois aqueles instantes em que tudo muda. She Said Boom: The Story of Fifth Colunmn, de Kevin Hegge, pode ser o gatilho que faltava para a redescoberta das Fifth Column, um all-girl band canadiana nascida em inícios dos anos 80 em clima pós-punk que não só precedeu (e decididamente influenciou) o movimento riot grrrl e ajudou a definir primeiras linhas do movimento queercore, como representou uma das mais visionárias forças de uma cultura alternativa canadiana da qual emergiria também a figura do realizador Bruce LaBruce (que, de resto, foi importante colaborador da banda, actuando a dada altura como go-go dancer nos seus concertos, numa altura em que era estudante de cinema).

Uma banda feita de raparigas era, por si só, uma posição política na Toronto de 1980. E é do choque de culturas, da busca de uma visão pessoal de uma noção de feminismo, da construção de um discurso sobre sexualidade e género, de uma abordagem ao artifício enquanto ferramenta estética, que nasce a identidade de uma banda cuja obra transcendeu os palcos, cruzando-se inclusivamente com expressões pioneiras de um novo (e radical) cinema queer.

O filme parte de uma série de entrevistas com elementos da banda, de colaboradores (como LaBruce) ou admiradoras (como Daryl Hannah, das Bikini Kill), junta imagens recentes e de arquivo de actuações, dos filmes e dos espaços que viveram para, mais que uma biografia musical, da cena queer da cidade onde nasceu a banda ou da própria expressão das consequências da revolução punk no Canadá, nos dar um retrato de um espaço de rebelião habitado com o mesmo irresistível sentido de humor e rebeldia que sempre animou as Fifth Column.

O melhor do Rock in Rio 2013 (3)

Fotos: N.G.
Continuamos a apresentação de alguns dos textos que enviei do Rio de Janeiro em reportagem de cobertura da edição deste ano do Rock in Rio no Brasil. E começamos com aquele que recorda o melhor concerto que vi e que foi originalmente publicado no DN online a 14 de setembro com o título 'Grande lição 'showbiz' de Beyoncé fechou a noite'

Um verdadeiro desfile de mestria shwowbiz, para gáudio de 85 mil admiradores fechou a primeira longa jornada da edição 2013 do Rock in Rio. Beyoncé era de facto a mais desejada da noite e a sua passagem pelo Palco Mundo deixou claro o estatuto de primeira linha que há muito ocupa. Recorrendo a um intenso (e magnífico) trabalho em vídeo que tem em Madonna uma referência, a atuação mostra contudo na cantora um fulgor em palco que parece mais herdeiro dos gestos e energia de uma Tina Turner. Mesmo assim as mais evidentes citações a grandes divas surgiram quando ora entoou um excerto de "Love To Love You Baby" de Donna Summer ou, apenas sob a ajuda da sua própria voz, passou por instantes pelo clássico "I Will Always Love You", de Whitney Houston.

O concerto integrou a digressão Mrs. Carter Show iniciada em Belgrado a 15 de abril e que chegara ao Brasil poucos dias antes em Fortaleza, seguindo amanhã para São Paulo. O alinhamento, apesar de passar seis vezes pelo mais recente álbum "4" (através de temas como "Run The World", "End of Time", "1+1" ou "Party"), alarga horizontes a todos os seus quatro álbuns de originais e junta mesmo "Why Don"t You Love Me", originalmente lançado como single independente. Se coreograficamente o espetáculo é intenso, exigindo tanto da cantora como dos seus bailarinos, o trabalho cénico em vídeo acaba por ser igualmente marcante, definindo os territórios pop onde o alinhamento das canções evolui. Os vídeos, alguns usados como interlúdio para permitir mais uma muda de roupa (e houve muitas!) refletem por um lado um trabalho cuidado de relação com a cor. Mas traduzem também uma certa presença de expressões de poder no feminino, nomeadamente sugerindo a dada altura uma noção de trono e realeza. Longe da iconografia religiosa que habitualmente habita os concertos de Madonna, aqui dominava uma certa iconografia... palaciana.

Mas por muito presente que fosse uma produção milimétrica e grandiosa, foi na música e na comunicabilidade que Beyoncé ganhou a noite. Apoiada por uma banda segura e muito capaz, não se limitou a desfilar uma montra de "êxitos", procurando construir acontecimentos num alinhavar de instantes, em muitos casos citando parte das canções, de umas caminhando para outras num registo fragmentário que já vimos em concertos de um Prince, por exemplo. Mesmo tendo destacado na reta final as presenças, algo inevitáveis, de "Single Ladies" e "Crazy in Love", o concerto não fez de nenhum tema um santo de altar em que se não possa tocar. E até mesmo o belíssimo "Countdown" não conheceu senão expressão, sob mistura diferente, num vídeo de interlúdio.


E aqui mais três imagens de olhares sobre a Cidade do Rock instalada nas margens da Lagoa de Jacarepaguá. Aqui voltamos a ver as estruturas em forma de peixe que estão espalhadas pelo reconto, as bandeiras à entrada (entre elas as dos países que acolhem já o festival) e a fechar uma perspetiva sobre a Rock Street deste ano, inspirada em formas inglesas e irlandesas.

domingo, setembro 22, 2013

Bach pelos dedos de Keith Jarrett


É muitas vezes dos cruzamentos de linguagens que nascem algumas das melhores ideias na música, criando pontos de vista que muitas vezes transcendem a mera soma dos mundos que ali se encontram. E esta ideia é em tudo válida para compositores que juntam à sua obra referencias que vão bem para lá das barreiras de género (de um Bela Bartók a um Max Richter, por exemplo), levando assim à sua música espaços de liberdade que rompem convenções e muitas vezes alargam os horizontes da música do seu tempo e abrem porta a novos caminhos que outros depois ajudam a desbravar. Mas esta ideia do cruzamento de mundos é igualmente marcante também no campo da interpretação musical quando, perante uma partitura fixada, ao intérprete cabe o papel de eventualmente descobrir novas abordagens, por vezes destapando mesmo ressonâncias inesperadas entre a época em que a obra foi composta e aquela em que a escutamos. E não é preciso uma aventura instrumentalmente ousada e quase extremada, como a que Wendy Carlos aplicou sobre a música de Bach ou Handel em finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, transportando peças do século XVIII para a idade das electrónicas. É certo que o piano não correspondeu ao objeto de trabalho de Bach. Mas a história da interpretação musical desde o advento do instrumento habituou-nos a escutar transcrições para piano de várias peças de Bach. O que aqui acontece é, antes, um encontro entre um pianista de jazz e uma série de obras de repertório clássico. E aí estão os mundos que uma vez mais se cruzam. Não é coisa inédita para Keith Jarrett, que não só gravou já para a ECM interpretações ao piano de obras de Shostakovich ou Mozart, como participou com Gidon Kremer na primeira gravação do já “clássico” Tabula Rasa de Arvo Pärt, como tem já uma vastíssima obra gravada em volta da música de Bach. Assim, e 26 anos do primeiro dos seis discos já editados com música de Bach (começou com os Prelúdios e Fugas para Cravo Bem Temperado, em 1987), eis que se junta a à violinista Michelle Makarski para, juntos, abordarem seis sonatas de Bach. As gravações datam de 2010, revelando uma clara fidelidade à partitura, mas expressando as qualidades interpretativas que fazem de Keith Jarrett um dos gigantes do piano do nosso tempo.

Queer Lisboa 17 (dia 3)

Está a decorrer no Cinema São Jorge o Queer Lisboa 17, a edição de 2013 do Festival Internacional de Cinema Queer. Aqui podem encontrar link para a programação de hoje. Já a seguir ficam destaques para duas das sessões de hoje e ainda mais dois textos de minha autoria que integram catálogo (e a sua expressão online) e que correspondem a filmes que poderão ver hoje.

Pelas 22.00 passa, em estreia nacional, o filme E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto, recentemente premiado em Locarno e claramente um dos filmes do ano. Documentário auto-biográfico, assinala também o reencontro das nossas salas com a obra de um cineasta notável, autor de filmes magníficos (e injustificadamente ausentes do circuito de DVD) como Onde Bate o Sol ou Uma Pedra No Bolso.

The Knife
Perfume Genius
The Hidden Cameras
Também hoje é apresentada a primeira das duas sessões do programa Queer Pop do Queer Lisboa 17. Trata-se de um panorama que propõe alguns telediscos produzidos ao longo do último ano, passando pelas reflexões sobre identidade de género dos The Knife, uma animação para os Sigur Rós ou ainda ecos do belíssimo segundo álbum de Perfume Genius. A grande estreia desta sessão é Gay Goth Scene, teledisco do mais recente single dos The Hidden Cameras, e aperitivo pata o álbum Age a editar no outono. Trata-se de um pequeno filme sobre bullying, apresentado na forma de um teledisco que tem estado a ser estreado em festivais de cinema e não está ainda disponível na Internet.




Me @ The Zoo
(Sala Manoel de Oliveira, 17.15)

A 10 de Setembro de 2007 um rapazito de 19 anos colocava na Internet um vídeo no qual, entre lágrimas quase convulsivas, pedia que deixassem Britney Spears em paz, respondendo assim às críticas que tinham surgido na sequência da actuação da cantora nos MTV Music Video Awards, dias antes, em Las Vegas... As imagens de Chris Crocker a implorar “Leave Britney Alone” correram mundo e alcançaram num ápice milhões de visualizações, fazendo desse um dos mais célebres vídeos virais da história e tornando o que era já uma pequena celebridade online num dos mais visíveis fenómenos de uma nova era da comunicação.

Me @ The Zoo propõe um retrato de um dos mais célebres vídeo bloggers (que, apesar de uma primeira etapa no MySpace, foi no YouTube que disponibilizou os seus vídeos mais visitados). Toma como ponto de partida a figura de um jovem gay, andrógino e provocador, residindo no espaço longe de tolerante de uma pequena cidade rural norte-americana (em concreto no Tennessee) e que, entretanto, encetou uma carreira discográfica e, mais recentemente, tem trabalhado na indústria do porno. Observa o seu espaço de vida privada, em casa dos avós, entre posters de Britney Spears. Reflecte sobre a celebridade fulminante, as luzes das passadeiras e dos estúdios de televisão, que convivem aqui com a ressaca que a exposição pode comportar.

Às imagens captadas pelos realizadores o filme junta outras, de muitos dos seus vídeos, assim como atenta a outras que traduzem as consequências que estes desencadearam. Mas Me @ The Zoo, que faz frequentes flirts com a linguagem destas plataformas de comunicação visual na Internet, celebra igualmente a era da comunicação online, os fenómenos de encantamento, mimetismo, mas também de ódios que se expressam com violência, que estas janelas abrem ao mundo.




A Volta da Pauliceia Desvairada
(Sala 3, 21.30)

Carão? É uma pessoa que, em plena noite, se comporta como se fosse famosa. Bapho é algo maravilhoso. Close é qualquer coisa que corre mal. Amapô é mulher e bofe é homem. Badalo? É como quem diz “que loucura!”... Estas são apenas algumas das palavras da gíria usada por quem anda pela noite paulista. Umas expressões têm anos de vida. Outras, como “bonsdrink” chegaram mais recentemente via YouTube (esta em concreto de um vídeo viral de Luisa Marilac). E fazem parte de um desfile de palavras e significados que podemos descobrir em A Volta da Pauliceia Desvairada documentário que procura arrumar, segundo várias regras sistemáticas, um retrato da enorme variedade que habita a noite gay e lésbica da cidade de São Paulo.

Apesar de centrado em retratos e vivências do presente, escutando o que dizem os DJs, porteiros, entertainers e público, o filme não esquece a memória, sobretudo do Madame Satã, um espaço mítico da cultura nocturna da São Paulo dos anos 80, num tempo em que, sob ditadura, a busca de liberdade encontrava outros caminhos e manobras para se expressar. “Hoje está tudo mais careta”, chega mesmo a confessar alguém que viveu esses dias.

Arrumar é mesmo o verbo que mais bem caracteriza o filme. Começamos por fazer um percurso dos bares e discotecas em função dos dias da semana em que mais dão que falar. E pelo caminho reparamos no que leva as pessoas a sair (há quem busque hedonismo, há quem procure sexo, há quem prefira a bebida). Fala-se da música que se dança. Do visual que vinca a personalidade de cada um. Do que pensam do amor...

Há quem aqui defenda que a noite é “o lugar que pode maximizar e libertar as pessoas”. E o filme acaba por ser a celebração dessa visão e da busca da liberdade de cada um. Deixa um retrato de festa e alegria. Mas no fim sobra uma questão. É tudo feliz ali?