quarta-feira, setembro 25, 2013

Por detrás da exuberância: a solidão


Este texto integrou um trabalho maior sobre a estreia do filme 'Por Detrás do Candelabro', de Steven Sooderbergh', publicado originalmente nas páginas do DN. 

Foi projetado pela televisão e fez carreira de sucesso nos palcos de Las Vegas, mas na verdade o pianista que chegou a ser o entertainer mais bem pago do mundo não era senão um solitário assombrado pelo peso que a sua própria fama havia criado em torno da sua imagem. Ele era aquela figura exuberante que se mostrava com longos casacos de peles, camisas de folhos, transportado num Rolls Royce especialmente decorado ou atuando com um candelabro, ao jeito de um palácio dos tempos do Antigo Regime, sobre o seu piano. Mas, tal e qual nos mostra agora o filme Por Detrás do Candelabro, de Steven Sodrebergh, Liberace era afinal um homem amargurado e perdido entre sucessivas relações com finais infelizes, sempre escondendo de tudo e todos a natureza da sua sexualidade.

Com o argumento de que era um projeto “demasiado gay” alguns estúdios de Hollywood declinaram produzir o filme que hoje chega às salas de cinema portuguesas. Numa altura em que os Estados Unidos têm um presidente que defende inclusivamente a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo, esse “argumento” parece coisa dos dias em que Liberace era o paradigma do excesso visual do showbusiness abalado pelas alegações de homossexualidade que chegaram a passar pela imprensa (gerando até processos em tribunal) e respondendo com artigos cor-de-rosa onde falava da sua mulher ideal. Uma delas sendo, como o filme evoca, a patinadora-superstar norueguesa Sonja Henie.

Produzido sob a égide do canal de televisão HBO, mas curiosamente apresentado em competição no Festival de Cannes, Por Detrás do Candelabro não corre o era uma vez da história pessoal e artística de Liberace. Opta antes, e tomando como referência a memória biográfica Behind the Candelabra: My Life with Liberace, por mergulhar nos espaços da sua vida privada. Escrito por Alex Thorleifson e Scott Thorson (que teve uma relação amorosa com o pianista), o livro conduz assim o filme para um tempo específico (finais dos anos 70) em que a vida de Liberace se transformara numa rotina de espetáculos em Las Vegas para plateias que ali reconheciam o homem que, quando tocava na televisão, parecia que falava mesmo para cada um dos espectadores.

Com um cuidado extremo na criação do guarda-roupa (que segue à risca modelos que Liberace usou) e recriando os espaços de luxo barroco nas salas da sua mansão, o filme assinala os jogos de contrastes entre estes cenários sumptuosos tantas vezes fotografados e o modo escondido como o músico respirava a sua instável vida sentimental. A figura de Scott Thorson é aqui recriada por Matt Damon, ator que esteve a bordo deste projeto de Steven Soderbergh desde que o realizador pensou em partir das memórias pessoais do antigo companheiro de Liberace para dali fazer nascer o argumento do filme. Michael Douglas, que veste a pele do protagonista, juntou-se ao elenco um ano depois. E, como os demais envolvidos no projeto, esperaram anos a fio até que chegasse a bom porto.

Figura única na história do showbiz americano, artista que dividiu opiniões, Liberace é hoje um ícone de culto algo distante da estrela mainstream que em tempos foi. Nos últimos 25 anos saíram vários livros sobre a sua vida e obra, em alguns deles sublinhando-se o facto de se ter transformado numa figura de referência da história da cultura queer. Por Detrás do Candelabro reforça, com um filme em tudo notável, a celebração dessa face outrora escondida de um artista que teve tanto de estranho como de único.