domingo, março 31, 2013

À procura do cinema bíblico

OS DEZ MANDAMENTOS (1956)
Será que existe, ou existiu, um "cinema bíblico"? Esta é a versão alargada de um texto publicado no Diário de Notícias (29 Março), com o título 'As narrativas bíblicas ao serviço do espectáculo cinematográfico'.

Afinal de contas, de que falamos quando falamos de “cinema bíblico”? De grandes empreendimentos de Hollywood como Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille? Ou da introspecção espiritual proposta por Jean-Luc Godard em Eu Vos Saúdo, Maria (1985)? Será que existe uma ponte, simbólica ou estética, a ligar tais exemplos?
A resposta a esta última pergunta é claramente negativa. E não apenas porque, da estética à moral, tudo separa o delírio formal de DeMille do risco experimental de Godard. Acontece que o “filme bíblico” nunca existiu como um género consolidado, seja em termos narrativos, seja nas estruturas de produção.
Ainda assim, podemos considerar que há dois momentos históricos em que os temas bíblicos adquirem um valor não exactamente espiritual, mas basicamente comercial. Porquê? Porque a abrangência das narrativas recolhidas na Bíblia (ou no imaginário popular tocado pela Bíblia) favoreceu a consolidação pública de determinados modelos de espectáculo.
O primeiro desses momentos é, naturalmente, o período mudo do cinema. E bastará recordar de novo o caso exemplar de DeMille que rodou a sua primeira versão de Os Dez Mandamentos em 1923. Aliás, mais do que o filme bíblico, o épico situado antes de Cristo define uma tendência transversal do cinema mais primitivo, encontrando eloquente expressão em Itália onde surgiu, por exemplo, em 1914, esse filme grandioso, ainda hoje impressionante, que é Cabiria, de Giovanni Pastrone.
O REI DOS REIS (1961)
Depois, durante a época áurea da chamada “superprodução”, as narrativas bíblicas voltaram a assumir um peculiar valor de mercado. De facto, a partir de meados da década de 50, a grande produção (de origem americana) tentou contrariar os efeitos cada vez mais gravosos da concorrência televisiva. Como? Apostando numa ostentação física e dramática que se traduziu em retratos de Jesus Cristo como O Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray, ou A Maior História de Todos os Tempos (1965), de George Stevens. Tais filmes coexistiram com outros grandes espectáculos como Lawrence da Arábia (1962) ou Doutor Jivago (1965), ambos de David Lean, afirmando um cinema do gigantismo dos cenários e de milhares de figurantes que, curiosamente, foi em grande parte concretizado na Europa, tirando partido da mão de obra mais barata de países como Itália ou Espanha. Ironicamente, quase sempre um dos títulos menos lembrados, mas mais exemplares, dessa época chama-se... A Bíblia (1966) e foi realizado por John Huston.
A partir daí, pode dizer-se que há um pouco de todo, de forma irregular, tanto no plano artístico, como nas estratégias de mercado. Reflectindo uma crescente tentativa de “imitação” da grandiosidade cinematográfica, a televisão tem apostado ao longo dos décadas na recriação mais ou menos académica dos temas bíblicos: a mini-série Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zeffirelli, poderá servir de símbolo de tal tendência. Em boa verdade, neste campo, o cinema só voltou a gerar um gigantesco sucesso comercial com A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson.
Seja como for, tendo em conta o amplo e aceso debate que gerou, A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, adaptando o romance homónimo de Nikos Kazantzakis, terá sido o último grande filme bíblico, ainda filiado na tradição clássica. Com Willem Dafoe no papel de Jesus, o filme ficou como um título tanto mais importante quanto está assinado por alguém que vive, por dentro, as referências religiosas que convoca.

Colin Davis encerra ciclo dedicado a Berlioz

Não é a primeira vez que aqui apresentamos uma gravação da Grande Messe des Morts de Berlioz. De resto, uma relativamente recente gravação dirigida por Paul McCreesh (que tomará a partir deste verão o cargo de maestro titular da Gulbenkian) foi inclusivamente aqui falada em abril do ano passado. E na altura, ao abordar a obra, não deixei de referir a ligação que, desde 2011, esta música passou a ter com o cinema de Terrence Malick. Dizia então aqui:

“É assombrosa, de facto, a força das imagens. E hoje é impossível escutar o Danúbio Azul de Johann Strauss sem pensar em 2001: Odisseia no Espaço de Kubrick, a Cavalgada das Valquírias de Wagner sem lembrar a “carga” aérea em Apocalypse Now de Coppola ou o adagietto da Sinfonia Nº 5 de Mahler sem evocar a adaptação de Morte em Veneza por Visconti”. Poderia acrescentar o Alina, de Arvo Pärt, perante as imagens do Gerry de Gus Van Sant. “E hoje, ao escutar a Grande Messe des Morts (muitas vezes referida simplesmente como o Requiem) de Hector Berlioz (1803-1869), não escapo a duas sequências de A Árvore da Vida, de Terrence Malick, em particular aquele reencontro vivido na praia, perto do final, ao som de parte do Agnus Dei.

Como o filme de Malick, esta obra de Hector Berlioz é também ela uma reflexão sobre a fé que se socorre de uma visão maior da sua arte para atingir um patamar invulgar de grandiosidade, emotividade e, podemos acrescentar, excelência. Originalmente encomendada para um serviço religioso em memória de um general morto numa tentativa de assassinato ao rei francês Luis Filipe em 1837, a grande missa pelos mortos recuperou elementos de obras que Berlioz deixara inacabadas por estrear – como a Missa Solene, a oratória Le Dernier Jour du Monde ou a Fête Musicale Funèbre a la Mémoire des Hommes Ilustres de La France – e usa recursos instrumentais e humanos de grande escala, procurando um efeito dramático maior, na verdade arrebatador. A ocasião para a qual a missas fora encomendada acabou cancelada, mas uma oportunidade de estreia chegou pouco depois, numa outra cerimónia em memória de outro militar, então morto em campanha no Norte de África. E hoje é episódio com características quase míticas o momento em que pela primeira vez esta música ganhou corpo e som, a 5 de dezembro desse mesmo 1837 na Igreja dos Inválidos, em Paris.”

Naturalmente a música existe sem a ligação ao filme. Esta é uma associação pessoal. Como tantas outras que todos nós fazemos em relação a todas as músicas que escutamos, relacionando as memórias de cada uma com vivências, momentos ou imagens.

Uma nova gravação desta obra monumental de Berlioz acaba de conhecer edição, numa gravação pela London Symphony Orchestra e respetivo coro, sob direção de Colin Davis (e lançada pela editora da própria orquestra). Davis é um “especialista” no compositor francês e tem vindo a gravar algumas das suas grandes obras, tendo até recebido dois Grammys pela sua edição da ópera Les Troyenes. Com a participação do tenor Barry Banks, esta Grande Messe des Morts encerra o ciclo de gravações em torno de Berlioz, apresentando o registo captado numa atuação ao vivo na londrina St. Paul’s Cathedral (e tomando o melhor partido possível das suas potencialidades acústicas, de certa forma recuperando a sugestão do ambiente em que a obra foi originalmente estreada). Aguarda-se agora, mais dia menos dia, a eventual reunião destas gravações numa só caixa antológica.

David Bowie a 45 RPM (15)


Há uma etapa algo esquecida na obra de Bowie em inícios dos anos 70. E que corresponde, depois da sucessão de bandas “menores” em que militou nos anos 60 e antes da criação dos Tin Machine em finais dos noventas, à fugaz carreira sob a designação Arnols Corns, pela qual editou dois singles. A banda juntava David Bowie a Freddi Burretti, um jovem designer que seria responsável pela criação de algumas das primeiras roupas de Ziggy Stardust. E incluía também, como guitarrista, Mick Ronson.

Editado no mesmo mês em que chegava às lojas o álbum The Man Who Sold The World, o primeiro single que Bowie lança como membro dos Arnold Corns foi Moonage Daydream, numa versão consideravelmente diferente daquela que registaria mais tarde em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. O lado B era Hang On To Yourself, também numa leitura ainda distante daquela que depois faria história no alinhamento do mesmo álbum. Ambas as canções, sobretudo Moonage Daydream, foram peças importantes na criação de primeiras ideias para a posterior construção da personagem (e da música) de Ziggy Stardust. Toda a breve etapa Arnold Corns funciona, de resto, como uma proto-história de Ziggy, numa altura em que Bowie lançava em nome próprio o álbum The Man Who Sold The World e começava a trabalhar em Hunky Dory, o seu sucessor. Apesar de se dizer que Bowie terá eventualmente imaginado Burretti como uma estrela pop, a verdade é que os Arnold Corns passaram a leste das atenções. Bem mais significativas seriam as contribuições do designer para a criação da imagem de Ziggy Stardust e a sua presença quase “excvlusiva” (apesar de trabalhar para um alfaiate londrino) ao serviço de Bowie naqueles tempos, tal e qual recordaria Angie Bowie, em entrevista em 1999.

Podem ouvir aqui o lado A e, aqui o lado B deste primeiro single dos Arnold Corns.

Páscoa com Bach e Brahms


Notável a escolha do programa proposto pela Gulbenkian em semana de Páscoa, aliando (a mais “clássica” escolha de) uma cantata de Bach ao superlativo Um Requiem Alemão, de Brahms, num conjunto que confirmou em pleno as qualidades interpretativas da Orquestra residente, assim como o trabalho (de já mais de quatro décadas) de Michel Corboz com o coro que dirige, aos quais juntou três vozes solistas, duas delas, tal como ele, de origem suíça (acrescente-se vi o concerto de quarta-feira, o segundo dos três apresentados). 

Mesmo tendo sido soberba a interpretação da cantata Ich hatte viel Bekümmernis, BWV 21, de Bach (e que espantoso é aquele diálogo entre violino e oboé), foi o Brahms que arrebatou o serão numa leitura intensa, que a direção de Corboz e a magnífica resposta do coro e solistas tão bem sublinharam. A obra é já em si um monumento de visão e de expressão de personalidade. Sem recorrer aos textos “canónicos” das missas pelos mortos, Brahms optou por escolher passagens da Bíblia selecionadas mais pelo seu valor poético que pela eventual carga teológica (como bem sublinha o texto no programa da sessão). Sob uma linguagem muito pessoal, que de resto ajudou a definir os caminhos do romantismo, Brahms Um Requiem Alemão é, mais que uma manifestação de fé, uma reflexão meditativa sobre o homem e a morte, num quadro que naturalmente não exclui a transcendência. A perda de figuras que lhe eram próximas – Robert Schumann e a mãe, em concreto – estão na origem terrena de uma obra que, pelos valores que cruza, ganhou depois uma dimensão maior. Cabe por isso à interpretação esse saber no desenhar de uma coexistência dos dois planos (o da vida terrena e o da divindade) que a música sugere. Brindem-se por isso a subtileza da voz de Raches Harnisch (belíssima) e a firmeza da de Rudolf Rosen que, aliadas aos jogos de contrastes que a obra percorre e que tanto a orquestra como o coro tão bem sublinharam, fizeram deste Um Requiem Alemão algo que nos transportou de facto para lá de uma vivência terrena durante os cerca de 70 minutos que fizeram deste mais um momento a reter na já longa (e frutuosa) história de Corboz em Lisboa.

sábado, março 30, 2013

Inspiral Carpets, 1990


Esta semana recordámos aqui o álbum de estreia dos Inspiral Carpets, agora reeditado num lançamento com som remasterizado e extras. Hoje deixamos aqui o teledisco que então acompanhou This Is How It Feels, o single central do alinhamento deste álbum surgido em plena explosão do movimento ‘Madchester’.

Conversas de arquivo:
Depeche Mode em 2005 (1)

Em tempo de lançamento de um novo álbum dos Depeche Mode vamos recordar aqui uma entrevista que fiz a Dave Gahan, o vocalista do grupo, por alturas do lançamento de Playing The Angel, em 2005. A conversa decorreu num hotel em Paris, perto da Place Vendôme. A entrevista foi publicada na edição de 14 de outubro de 2005 do DN sob o título ‘Depois da fé, a devoção’. 

Quando promoveu o seu álbum a solo Paper Monsters deixou claro que, se os Depeche Mode voltassem a gravar, teria de participar como autor no disco. Isso, de facto, aconteceu?
É verdade. Esse disco foi para mim o catalisador do que veio a acontecer. E deu-nos força para continuar. Neste novo disco há, portanto, um certo espírito de competitividade que até aqui nos faltava internamente.

Precisava de experimentar as suas capacidades como autor, a solo, antes de as apresentar nos Depeche Mode?
Sim, creio que sim. Houve sempre esta ideia de que algumas canções que eu tinha feito poderiam caber em discos nossos. Uma ideia que remonta aos dias do Violator ou ao Songs Of Faith and Devotion. Mas nunca senti que esse fosse exactamente o meu lugar. Ao longo dos anos fui-me progressivamente sentindo cada vez mais desconfortável com o papel que havia atribuído a mim mesmo.

Como um grito mudo interior?
Creio que sim. Havia um desejo de sair de casa e tentar algo novo?

Em que termos pensa que a sua escrita difere da de Martin Gore?
Em primeiro lugar tenho de dizer, e creio que o Martin diria o mesmo, que não escrevo para os Depeche Mode. Assim como o Martin não escreve para os Depcehe Mode. Ele escreve para si. Quando comecei a escrever as canções para o álbum que acabei por gravar como Paper Monsters, não vislumbrava nada mais além. Sentei-me a escrever e estava apenas a fazer isso mesmo. A escrever. E a chegar ao fim do dia com a sensação que tinha conseguido fazer algo. Continuei a escrever depois da Paper Monsters Tour e só no final do ano o Daniel Miller [patrão da Mute, que era então a editora dos Depeche Mode] chegou ao pé de mim e propôs que se fizesse um novo álbum de Depeche Mode. Tornou-se então bem claro para mim que teria de falar com os outros elementos do grupo e dizer-lhes que, se íamos desafiarmo-nos novamente como Depeche Mode, teriam de contar comigo a assinar algumas canções.

Durante 25 anos cantou primeiro as canções de Vince Clarke, depois as de Martin, e pontualmente as de Alan Wilder. Foi como um actor a vestir um papel escrito por outro?
De certa maneira, penso que sim. Há cantores como Frank Sinatra, Elvis Presley ou Billie Holliday, que eram os modelos que eu admirava, que sempre foram intérpretes.

Criou, portanto, uma personalidade através da interpretação?
Creio que sim. E levei muito tempo a encontrar qual era exactamente o meu lugar, aquele onde me sentia seguro. Podia cantar canções de qualquer outro autor, desde que nelas procurasse uma identificação. E há um tema que me parece ser transversal a todas as canções do Martin, que é o da luta numa relação. E a sua própria relação com a vida. E sempre tive isso em comum com ele. O que o Paper Monsters me permitiu depois fazer foi abraçar as minhas próprias lutas, que reflectem muitos desconfortos, sobretudo ao nível do tornar claro e aberto o que se passa no âmago de uma relação.

E como se relacionou ao longo dos anos com as temáticas de fé, muito obsessivas por vezes, na escrita de Martin Gore?
Também me identifico aí. E parece-me que o que eu próprio escrevo revela também essas obsessões pela fé. Ou a sua falta ou eventual procura?

É um homem religioso?
Não creio que o seja. Mas julgo que desejo acreditar que há algo em que possamos acreditar. Acredito que há uma grande força a trabalhar.

(continua)

David Bowie a 45 RPM (14)

Qualquer obra e carreira vive de momentos certeiros e de tiros falhados. E David Bowie somou, entre alguns episódios mais iluminados, vários destes casos de pontaria menor na etapa que antecedeu a edição de Hunky Dory, o álbum de 1971 que finalmente o colocou num rumo desafiante e consequente. Um desses singles falhados surgiu nos escaparates das novidades em janeiro de 1971, cerca de três meses antes do lançamento do seu terceiro álbum de originais, The Man Who Sold The World. Com claras afinidades com o novo rumo que entretanto tomara a música de Marc Bolan (que estava prestes a fazer dos T-Rex um dos primeiros grandes fenómenos de popularidade da década de 70), Holy Holy foi uma canção gravara depois de terminados os trabalhos em The Man Who Sold The World, perante a noção de que não haveria um “êxito potencial” entre os temas do álbum.

Holy Holy foi produzido por Herbie Flowers (creditado como Blue Mink), que toca baixo. Mick Rock surge na guitarra. E Tony Visconti no baixo de Black Country Rock, a canção apresentada no lado B.

O single teve exposição televisiva, numa histórica atuação na qual David Bowie surgiu com um vestido longo, abrindo aí caminho para a imagem que meses depois apareceria na capa do álbum (a cujo alinhamento este single não foi acrescentado). Holy Holy foi mais um flop, tanto que durante anos não surgiu em nenhuma antologia de Bowie. Aparece, já nos oitentas, em Rare Bowie. E, numa segunda versão (mais encorpada, editada como lado B nos dias de Diamond Dogs) numa reedição de Ziggy Stardust em 2002.

sexta-feira, março 29, 2013

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2011

ERWIN OLAF
Ballet Nacional da Holanda - 50º aniversário
2011

Um filme de Floria Sigismondi

É um teledisco. Mas também é apresentado como sendo "um filme de" Floria Sigismondi. Com o título Leaning Towards Solace, este "filme" usa os temas Varud e Daudalogn, do mais recente álbum dos islandeses Sigur Rós e integra o conjunto de telediscos que fazem o Valtari Film Experiment, recentemente editado em DVD. Aqui ficam as imagens, recordando a sessão de ontem do Sound + Vision Magazine.

Reedições:
Inspiral Carpets, Life

Inspiral Carpets 
“Life” 
EMI Music 
3 / 5 

Passaram pouco mais de 20 anos sobre a edição do álbum de estreia dos Inspiral Carpets. E se da restante discografia do grupo pouco a história recordará um dia – nem mesmo singles como Two Words Collide ou Saturn V parecem ter resistido ao tempo que entretanto passou – deste primeiro disco vale a pena lembrar que, juntamente com o maravilhoso álbum de estreia dos Stone Roses e do também marcante EP Madchester Rave On dos Happy Mondays (e sublinhe-se que o álbum Pills’N’Thrills and Bellyaches sempre me pareceu sobrevalorizado), foi um dos pilares estruturais de um movimento que, na transição dos oitentas para os noventas, chamou atenções globais para o que estava a acontecer pelos lados de Manchester. Por “sugestão” do título do já referido EP dos Happy Mondays, convencionou-se então designar como Madchester ao “movimento” de bandas que, então, não só ensaiavam estimulantes cruzamentos entre as linguagens da cultura pop/rock e das formas emergentes da música de dança, mas também ensaiavam um olhar interessado sobre modelos e referências escutados em discos de finais dos anos 60, sobretudo entre o estimulante e caleidoscópico universo do psicadelismo. Convém lembrar que os Inspiral Carpets, surgiram em Oldham (arredores de Manchester) em meados dos anos 80 e que lançaram primeiras gravações em disco em 1988, a mudança de formação (para acolher a figura de Tom Hingley) tendo acompanhado o momento da focagem de interesses da Mute Records, que os assinou, editando em 1990 o álbum Life. Apesar do relativo protagonismo da voz de Hingley, a figura central na caracterização da identidade dos Inspiral Carpets deve mais ao trabalho de teclas de Clint Boon, filiado numa tradição que aponta a contribuição (igualmente característica e bem vincada) de Ray Manzarek nos Doors como modelo primordial. As canções, que traduzem contudo uma não menos marcante presença dos Kinks como grande herança, caminham entre as sugestões de (aparente) hedonismo que então se associava à vida noturna de Manchester e retratos de uma vivência urbana menos luminosa. De resto, o belíssimo This Is How It Feels (que representaria o êxito maior de toda a obra do grupo) representa um dos grandes retratos do quotidiano na Inglaterra de então. 23 anos depois, Life é um álbum que, apesar do seu impacte na época, mora hoje num espaço de memórias que não deram frutos e que, ao contrário do disco de estreia dos Stone Roses, não alcançou aquele patamar de imortalidade que abraça os feitos maiores da música pop. Canções como o já referido This Is How It Feels ou Sun Don’t Shine, que traduzem a face mais melancólica do alinhamento, resitiram melhor aos anos que passaram que o hino dançavel que então se anunciava ao som de She Comes In The Fall... A edição “expandida” junta alguns extras – entre os quais o EP Trainsurfing (1989), uma sessão gravada na BBC para John Peel ou uma versão do “clássico “ 96 Tears dos ? & The Mysterons – e um segundo disco com uma gravação (em DVD) ao vivo que coloca já em cena ideias que explorariam no segundo álbum, The Beast Inside, editado em 1991. A presente “nostalgia” dos noventas pode explicar a reedição. Mas estamos longe de reencontrar aqui um episódio maior da história dessa década.

As tentações de Martin Scorsese e Peter Gabriel


Entre os créditos do filme há desde logo uma chamada de atenção, sublinhando que a narrativa que ali se apresenta não é baseada nos Evangelhos. É-o, na verdade, centrada em Last Temptation, o “controverso” (porque houve quem assim o entendesse) romance de Nikos Kazantzakis que toma a figura de Cristo como um homem que, como todos nós, tem medos, dúvidas, desejos. Da sua humanização maior e do confronto com as “tentações” que enfrenta acabando até por emergir como uma figura que vence as provações e aceita o seu destino. Afinal, respeitando algo de “canónico”.

Assinado por Martin Scorsese, e com um elenco no qual encontramos figuras como as de Willem Dafoe, David Bowie ou Harvey Keitel, o filme A Última Tentação de Cristo (estreado em 1988) é um dos mais interessantes dos olhares que o cinema lançou sobre figuras e narrativas “bíblicas” após aquele período em que grandes épicos tomaram aqueles tempos, figuras e histórias como tutano narrativo e contextual de produções monumentais.


A banda sonora composta por Peter Gabriel para o filme de Martin Scorsese, editada por alturas da estreia sob o título Passion, é um dos vários argumentos maiores daquele que é um dos títulos mais importantes da filmografia do realizador norte-americano.

Editado na sequência de So, o álbum de 1987 que corresponde ao mais evidente mergulho de Peter Gabriel pelas formas da pop mainstream, Passion é um disco que traduz um marcante ponto de viragem na carreira do músico e representa um episódio de importância maior na história da música criada para o cinema.

Ciente de que se retratava, mais que apenas um tempo, uma geografia concreta, Peter Gabriel centrou a etapa de pesquisa de ideias para a escrita da banda sonora num trabalho intenso de procura de músicas da região que acolheu a vida de Cristo. Na verdade a etapa de recolha transcendeu as fronteiras dessa geografia, tendo Peter Gabriel encontrado estímulos em músicas provenientes do Paquistão, Turquia, Índia, Costa do Marfim, Egito, Senegal ou Marrocos, entre outros lugares. O trabalho começou em 1983, com o desafio lançado então pelo realizador ao músico. Nas notas de uma reedição de Passion, Peter Gabriel recorda que começou por querer saber como iria Scorsese filmar esse “romance controverso” (expressão que ele mesmo usa). E explica que a intenção do realizador era a de “apresentar a luta entre a humanidade e a divindade de Cristo de uma forma poderosa e original” e aceitou o desafio ao entender o empenhamento de Scorsese “no conteúdo espiritual e na mensagem”. Assimiladas e depuradas, as músicas daquela região traduzem na perfeição as intenções do realizador. Juntando contribuições de músicos como Baaba Maal, Youssou N’Dour, Nusrat Fateh Ali Khan, Jon Hassell ou dos Musiciens du Nil, Passion revelar-se-ia mais que uma mera banda sonora. A versão que agora escutamos em disco junta a música que ouvimos no filme a ideias que surgiram numa etapa complementar de trabalho, garantindo ao todo das composições um sentido de coesão que confere ao disco uma unidade maior que o que poderia nascer de uma mera recolha e ordenação de material musical usado no filme.

A importância histórica desta banda sonora não decorre apenas deste labor adidcional, que garantiu a Passion uma identidade de álbum, mas também do facto de ter aberto as bases para uma ligação de Peter Gabriel aos universos da world music, dele fazendo mesmo um dos maiores editores e divulgadores de sons de outras latitudes. Passion, de resto, assinalou a estreia da editora Real World – de Pater Gabriel – que se revelaria uma das forças maiores da edição na área da world music nos anos 90. E surgiu acompanhado por um disco “complementar”, Passion Sources, com algumas gravações reunidas na etapa de pesquisa.

Louvre foi o museu mais visitado em 2012

O Museu do Louvre foi o mais visitado do mundo em 2012, de acordo com a lista anualmente apresentada pelo The Art Newspaper. Com 9 720 260 visitantes, o museu parisiense (que no ano passado inaugurou uma nova ala dedicada à arte Islâmica) lidera a tabela que apresenta, em segundo lugar, o Metropolitan de Nova Iorque (6 115 881 visitantes), o British Museum de Londres (5 575 946), a Tate Modern (5 304 710 visitantes), a National Gallery, ainda em Londres (5 163 902) e os Museus do Vaticano, em Roma (5 064 546). Por sua vez a exposição mais visitada do ano foi uma mostra dedicada aos velhos mestres flamengos, que começou a sua "digressão" pelo Japão.

Podem ver aqui os resultados deste levantamento de dados.

quinta-feira, março 28, 2013

Um realismo familiar e europeu

Kacey Mottet Klein e Léa Seydoux
Que é isso, afinal, de encenar a juventude? Ou, mais exactamente: como encenar UM jovem? Irmã (L'Enfant d'en Haut), de Ursula Meier, tem uma resposta concisa e realista — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Março), com o título 'Um realismo à medida da Europa'.

Nas sociedades europeias, existe um discurso “oficial” sobre a juventude marcado sempre por preocupações muito sérias sobre o lugar dos mais novos na vida económica e política. Como ter condições para estudar?... Como garantir emprego?... Como ter uma voz própria no complexo labirinto das relações sociais?... Etc., etc.
Como é óbvio, não faria sentido desvalorizar tais interrogações, até porque envolvem as questões mais íntimas do bem estar individual. Mas não deixa de ser desconcertante que tal discurso dispense quase sempre qualquer tipo de reflexão sobre as formas de representação audiovisual dos jovens, em particular no universo televisivo. Dito de outro modo: muitos agentes da política europeia dão-se ao luxo de ignorar a degradação das imagens da juventude, desde a estupidez militante dos “reality shows” (veja-se onde chegou a MTV, noutros tempos uma força muito real de transformação cultural) até ao vazio mental das telenovelas (veja-se Morangos com Açúcar e seus derivados).
É muito simples definir um filme como Irmã, de Ursula Meier: trata-se de um objecto empenhado em contrariar essas visões paternalistas dos jovens, tendo como personagem central um rapaz de 12 anos, Simon (excelente Kacey Mottet Klein), que vive uma existência mais ou menos marginal, roubando os turistas de uma estância de ski. Nesta perspectiva, podemos dizer que Irmã ilustra a energia e as convicções de uma certa vaga realista que, em anos recentes, tem marcado algumas zonas da produção europeia. Representa, aliás, um curioso “desvio” no trabalho de Meier, uma vez que o seu título anterior, Home – Lar Doce Lar (2008), funcionava como uma insólita parábola social. Em qualquer caso, o tema central persiste: o que é o espaço familiar e como podemos habitá-lo?

Lana... no Chelsea Hotel

Lana del Rey acaba de apresentar uma versão do clássico Chelsea Hotel # 2 de Leonard Cohen. A canção surge acompanhada por um teledisco simples (tal e qual o é a versão que apresenta). Aqui ficam as imagens.

Especial David Bowie
no Sound + Vision Magazine
hoje às 18.30 na Fnac Chiado

A sessão deste mês do Sound + Vision Magazine (hoje pelas 18.30 na Fnac Chiado) vai focar o regresso de David Bowie, falando não apenas do novo disco, como da exposição 'David Bowie Is' que abriu as portas no passado fim de semana no Victoria & Albert Museum, em Londres. Além de Bowie os livros, os outros discos e os filmes recentemente editados serão igualmente apresentados.

Discos pe(r)didos:
Recoil, Hydrology

Recoil 
“Hydrology” 
Mute Records 
(1988) 

Tudo começou com um acaso. Daniel Miller, o “patrão” da Mute Records, pela qual os Depeche Mode então gravavam, escutou algumas das maquetes que Alan Wilder tinha gravado. Eram experiências instrumentais, usando samples, sob uma sonoridade próxima à dos Depeche Mode, mas longe dos formatos da canção pop. Um primeiro par de composições foi então editado num EP com o título 1 + 2 sob a designação Recoil, que nascia como projeto paralelo ao grupo (estatuto que manteria até à saída de Wilder, em meados dos anos 90). Com o tempo, o projeto Recoil evoluiria para um espaço de experimentação do formato da canção, contando então com colaborações vocais de nomes como os de Douglas McCarthy (dos Nitzer Ebb) ou Toni Halliday (dos The Curve) e, após o seu afastamento dos Depeche Mode, tornou-se no espaço central do trabalho de Alan Wilder. Mas um dos mais interessantes entre os títulos da discografia do projeto Recoil data ainda dos dias em que Wilder militava nos Depeche Mode e procurava ainda formas no espaço da música instrumental. Lançado em 1988 – quando o grupo estava em pleno ciclo 'For The Masses' – o álbum Hydrology apresenta três temas instrumentais que vão bem mais longe que as sugestões de ensaio sobre sons e forma que havíamos escutado entre os caminhos mais “mecânicos” de 1 + 2. O alinhamento abre com Grain, que parte de um ensaio minimalista para piano e eco, construindo depois um espaço cénico em seu redor. Mais elaborados, Stone e The Sermon são composições de perto de um quarto de hora cada, ensaiando sons e soluções electrónicas mais próximas da sonoridade dos Depeche Mode por alturas dos álbuns Black Celebration (1986) e Music For The Masses (1987), todavia procurando uma lógica distinta da que conhecemos das suas canções, mas revelando em comum um interesse pelas estruturas rítmicas e pela utilização de certos registos áudio disponíveis à tecnologia da época. The Sermon traduz ainda primeiras formas de trabalho sobre a voz, nomeadamente através da manipulação de gravações que nos libertam de uma geografia ocidental europeia e avançam, inesperadamente, por território africano... Hydrology (que em formato de CD seria editado com as duas composições de 1 + 2 como extra) é um disco claramente datado. Mas é uma peça interessante não apenas no quadro da demanda de uma música electrónica “popular” nos anos 80, como expressão direta de uma busca que, então, decorrida da vida dos Depeche Mode e acabava depois por realimentar a sua sonoridade.

Crónica do fim de uma era

Foi há poucos dias. Entrei como tantas vezes o fiz pela grande porta que se abre para a sempre movimentada Ofxord St. Havia um cartaz a chamar a atenção do lançamento do novo álbum de Justin Timberlake, som vindo lá de dentro, os escaparates à entrada mostravam os quadradinhos de cor que, ainda à distância, sugeriam que os discos ainda respiravam por ali... Porém, bastou entrar na velha e grande loja central da HMV para sentir o efeito das notícias que, desde finais de 2012, dão conta do estado calamitoso a que chegara a saúde desta outrora grande rede de lojas e da cada vez mais improvável vontade de algum investidor em manter vivo naqueles espaços um negocio na área da música e do cinema.

Reparei desde logo no estado de dieta revelado pela grande parede lateral direita da loja, onde sempre me habituara a ver as novidades editoriais da semana, nestes últimos anos com os lançamentos em vinil a fazer até recordar algum do look da loja que conheci ainda nos anos 80. Desci ao piso inferior, para visitar aquela que, desde o encerramento da Tower Records em Picadilly, se tornara na maior e mais bem recheada secção de música clássica da cidade. Aí o panorama descia de dieta a semi-deserto, com bem mais de metade das prateleiras já despidas de discos, os poucos que restavam concentrados nos corredores centrais. No balcão o único empregado presente olhava em frente para os três clientes em busca de pechinchas em tempo de liquidação de stock. No seu olhar aquela inquietude de quem sabe que observa um corpo moribundo.

Pelo resto daquele andar, grandes caixas com discos empilhados à espera de quem os levasse e mais filas e filas de prateleiras (onde em tempos havia bandas sonoras, musicais, world music e jazz) a caminho de vazias. Regressei ao piso térreo para caminhar entre as filas de CD onde habitualmente encontrava de quase tudo o que havia para encontrar em regime pop/rock para reparar, agora ao pormenor, que também ali a coisa seguia pelo mesmo caminho. O vinil lá estava, finalmente, a ocupar um pedaço destas estantes, e já em seleção que, de tão escolhida, quase não interessava a ninguém. Saí de mãos a abanar. Atordoado. E com a sensação de que visitara um mausoléu que representa, certamente por poucas semanas mais, a imagem “viva” de uma era que acabou.

Lembro-me de ir a Londres com o percurso entre lojas de discos como sendo capaz de ocupar dois dias inteiros (e estava a ser despachado). Além das grandes lojas de Oxford Street (a da Virgin, logo na esquina com a Tottenham Court Rd e a da HMV, perto de Oxford Circus, sem esquecer outras duas, das mesmas redes, mais adiante, perto de Marble Arch) e da Tower em Picadilly, tinha uma via “sacra” de quase porta sim porta sim na Berwick St (em pleno Soho), onde havia até lojas só de singles, apenas de máxis para DJ, especializadas em reggae, dub e dancehall, e, claro, a mítica Sister Ray (para colecionadores) onde fui encontrando os singles das bandas que me ajudaram a construir o gosto musical entre finais dos setentas e inícios dos oitentas. Havia Camden Town, da Rhythm Records perto da saída do metro a outras pequenas lojas (e stands de pechinchas no mercado). E havia mais, muito mais, acabando inevitavelmente por regressar a Lisboa com gordinhos sacos na mão cheios de álbuns e singles, os “troféus” das poupanças dos meses anteriores...

Este mês, na mesma ocasião em que passei pela HMV de Ofxord St visitei as lojas de discos usados em Notting Hill Gate para também ali reparar que o que antes era uma sucessão de casas especializadas (havia uma só para clássica, uma para pop/rock, uma para música “urbana”, uma para filmes) está agora compactada em apenas duas, géneros e discos acotovelados e, depois de sujos os dedos e corridas algumas prateleiras, na verdade sem nada de surpreendente por ali.

Restou-me, estando nas redondezas, passar pela Rough Trade de Porobello Road (na verdade é numa pequena transversal. De lá regressei com um saco e dois LPs... Como que não querendo deixar de respeitar uma velha tradição em tempo de passagem por Londres.


PS. Os tempos mudaram. A era das grandes lojas acabou, o mercado maior tendo caminhado para a música digital ou para a encomenda de suportes físicos pela Internet. Nos países nórdicos emergiram novas lojas, especializadas, que apostam sobretudo no vinil e na criação de eventos. Em Lisboa há já um circuito expressivo de pequenas lojas (que cruzam novidades e usados). Mas Londres, que era a capital europeia para os compradores de discos, ainda não deu o salto para esta nova era...

Pompeia e Herculano moram em Londres

Pompeia e Herculano. As duas cidades foram apagadas do mapa em apenas um dia, na sequência da erupção explosiva do Vesúvio a 24 de agosto do ano 79. Durante séculos viveram soterradas pelos materiais ejetados pelo vulcão. Reencontradas no século XVIII deram-nos duas das mais importantes fontes de conhecimento dobre a vida quotidiana na Roma imperial. Agora, memórias destas duas cidades (com um foco muito particular nas questões do dia a dia dos seus cidadãos) habitam durante os próximos meses algumas salas do Museu Britânico, em Londres, numa exposição que promete (tal como a dedicada a Bowie no Victoria & Albert, na mesma cidade), ser um pólo de atenção para os muitos que visitarem a cidade entre a Primavera e o Verão.

quarta-feira, março 27, 2013

Madonna e a igualdade no casamento

Por certo, a imprensa que corre a fazer notícias (?) quando Madonna mostra algum centímetro proibido (?) do seu corpo não se dará ao trabalho de fazer eco de mais esta tomada de posição sobre o direito universal de contrair matrimónio à face da lei, independentemente da identidade sexual de cada pessoa. Aqui fica o duplo registo: por um lado, Madonna divulgou esta imagem no seu Instagram; por outro lado, em depoimento no site oficial, publicou estas palavras:

>>> O que quer que cada um seja, Dignidade Humana e Respeito para todos. Quem quer que cada um ame, todos devem ter os mesmos direitos e ser tratados com igualdade.

Para que conste.

José Sócrates no Reino da Estupidez

GEORGE GROSZ
Os Melhores Anos das Nossas Vidas
c. 1923
* Falo da Estupidez sobre a qual escreveu o nosso grande Jorge de Sena (em O Reino da Estupidez). Ou seja: aquela que se converteu em Inteligência, mas não se esquece de venerar o seu passado...

* Escrevo (e publico) antes de José Sócrates aparecer no muito comentado regresso à televisão. Quer dizer, faço o inventário de três formas de Estupidez que as suas palavras não anularão (mesmo que qualquer um de nós as possa considerar irrelevantes, deslocadas ou medíocres).

1 - os inimigos de Sócrates conseguiram essa coisa, estúpida entre todas, de gerar um delirante efeito de espera e expectativa em relação à sua performance televisiva, empolando o seu discurso antes mesmo de dele ouvirmos uma única sílaba — nunca se viu, aliás, uma campanha tão estupidamente cega, gerando o exacto contrário daquilo que seria o seu bizarro programa ético ("calar" Sócrates): por estes dias, a Sócrates foi concedido o poder imenso, de simbolismo totalizante, de não emitir um único som e, no entanto, existir como se não parasse de falar.

2 - tal efeito reforçou ainda mais a estupidez clubista que grassa na sociedade portuguesa: qualquer atenção que se dê a alguma entidade com determinadas conotações (ideológicas ou outras), tende a ser imediatamente rotulada como colagem aos desígnios mais torpes — não é metáfora: vivemos no país em que o árbitro que marcou um penalty contra o "meu" clube é necessariamente suspeito de corrupção...

3 - o espaço de reflexão política está estupidamente reduzido à guerrilha dos soundbytes — como se fazer política fosse apenas a arte de mostrar que se pode ser sempre menos inteligente que o nosso interlocutor ou adversário.

* Que aconteceu para que, quase quarenta anos depois de 1974, a sociedade portuguesa seja varrida por estes ventos de "purificação" que só sabem proclamar o silenciamento do outro como método de progresso (político)? Que é feito da arte das contradições que o 25 de Abril celebrou? Afinal de contas, nessa arte deambulava o mais utópico dos enunciados: a possibilidade de pensar a política para além da dicotomia direita/esquerda.

* Não creio que José Sócrates, hélas!, tenha poder, recursos ou sequer programa para nos ajudar a reencontrar essa energia política e estética — e não há coisa mais política que a intervenção estética. Em todo o caso, a Estupidez que gostaria de o calar está ainda mais distante de tal capacidade, aliás confirmando a sinistra ideologia futebolística que triunfou por todo o lado: onde está o adepto de um clube que seja capaz de admirar o jogo do adversário?

Velhas imagens para novas canções

A edição do novo álbum dos The Strokes não vem acompanhada por quaisquer elementos promocionais novos. Ou seja, tanto as fotos como as imagens que vemos no teledisco que serve de cartão de visita ao disco, são de colheitas anteriores. Mesmo assim aqui deixamos as que acompanham All The Time. Convenhamos que, também na música, a coisa não parece ter igualmente muito de novo.

Novas edições:
Depeche Mode, Delta Machine

Depeche Mode 
“Delta Machine” 
Sony Music 
3 / 5 

Este texto foi originalmente publicado na edição online do DN a 25 de março de 2013 com o título ‘Eletrónicas e ecos dos blues, segundo os Depeche Mode’.
Depois de uma primeira sucessão de quatro álbuns históricos que ajudaram a definir as linguagens da pop feita com eletrónicas, de uma inesquecível ode ao negro (Black Celebration, 1986), de alcançado o pico criativo entre Music For The Masses (1988) e Violator (1990) e de ensaiada uma assimilação de ecos da vivência americana em Songs Of Faith and Devotion (1993) os Depeche Mode têm vivido uma existência em clima de sucesso global, mas com discos nem sempre capazes de recuperar os patamares mais vibrantes de outros tempos (com episódio relativamente desapontante no anterior Sounds of The Universe, editado em 2009). Delta Machine tenta, tal como Playing The Angel (2005) o fez face ao menor Exciter (2001), o recuperar de ecos de outros dias, procurando encontrar na genética eletrónica fundadora da música do grupo novos motivos de entusiasmo para compor novo lote de canções. Importante peça no jogo é a presença de Flood (que produziu Violator e Songs of Faith and Devotion), que assume as misturas, a cadeira da produção cabendo, como nos dois discos anteriores, a Ben Hiller. Heaven, uma balada instrumentalmente convencional e feita de formas algo esgotadas foi escolha pouco feliz para um alinhamento que, na verdade, procura a redescoberta de um fôlego "primordial" que tem faltado à música dos Depeche Mode. E no fim, mesmo longe dos pontuais momentos mais inspirados de escrita que levaram algum entusiasmo ao alguns temas do disco de 2005, o alinhamento revela-se como o mais consistente que o grupo desde o virar do milénio. A angulosidade mais minimalista de My Little Universe (onde exploram aproximações a modelos techno) ou Alone traduzem os sabores mais inesperados num álbum que entusiasma muito mais pelo som que pela composição das canções, sendo até vários os momentos em que parecem piscar o olho a ideias já ensaiadas (como num Broken que evoca os dias de Music Fot The Masses ou um Soft Touch/Raw Nerve que parece procurar ecos da memória de A Question Of Time). Aqui e ali recuperam-se ensaios de cruzamento entre heranças dos blues e eletrónicas, que caracterizaram algumas das primeiras abordagens do grupo aos sons das guitarras nos anos 90. No final, e dada a ausência de grandes instantes memoráveis (e um programa temático que já cansa de tantas vezes repetido), Delta Machine é uma experiência sonicamente satisfatória, representando mesmo o disco com mais elaborado trabalho no departamento da sonoridade desde a saída de Alan Wilder. Agora que o som está no ponto, falta voltar a investir na escrita das canções.

À espera de 'To The Wonder'...

Quando o filme teve estreia mundial, integrado na edição de 2012 do Festival de Veneza, alguém decidiu que To The Wonder, o título que sucede a A Árvore da Vida na filmografia de Terrence Malick, era “um fiasco”. Nada porém como ver as coisas pelos nossos olhos. E depois de ter visto há dias o filme num ecrã londrino, de “fiasco” só vejo mesmo ali a conclusão a que o autor de semelhante decreto chegou. Houve também quem comentasse a grande proximidade estilística deste novo filme face ao antecessor, considerando como fator em desfavor de To The Wonder essa relação próxima com a forma de olhar, de pensar as imagens (e a sua montagem), a sua relação com a música (e com a voz off) e o modo de acompanhar a evolução de uma narrativa. A isso prefiro chamar linguagem. E estavam bem arranjados Rothko ou Pollock se semelhante argumento fosse válido. Enfim...

To The Wonder (que estreia entre nós em inícios de maio com o título A Essência do Amor) é, e como tão bem defendia o texto publicado na Sight & Sound, uma “lógica e bem vinda evolução estilística” para o cinema de Malick. Se em A Árvore da Vida (que muito provavelmente ficará para a história como a sua obra-prima) o realizador norte-americano alcançou um patamar maior para uma linguagem que começara a ensaiar em filmes anteriores (com expressões sobretudo evidentes em A Barreira Invisível e O Novo Mundo), aqui propõe antes uma nova expressão narrativa usando essa mesma linguagem que com o tempo encontrou e moldou com personalidade.

Estamos num terreno temporal e emocionalmente bem distinto do que vivemos em A Árvore da Vida (apesar das sequências com Sean Penn terem representado aí a primeira visita do cinema de Malick aos nossos tempos). A história vive-se no presente, entre França (do Monte St. Michel aos jardins de Versalhes) e uma pequena cidade rural no Oklahoma, acompanhando a evolução de um nada linear relacionamento amoroso entre um americano (Ben Affleck) e uma mulher europeia (Olga Kurylenko), a presença do conflito interior de um padre (Javier Bardem) que habita a mesma comunidade e sente que perdeu a noção do sentido da sua missão reforçando uma narrativa mais habitada por dúvidas e pelo lançamento de questões que pela busca a todo o custo de respostas. Pela evolução da trama passa ainda uma antiga companheira do protagonista (interpretada por Rachel Adams).

É entre esta teia narrativa, cuja evolução acompanhamos com momentos mais oníricos centrados em volta das personagens, dos seus pensamentos e dos lugares por onde caminham e por episódios mais atentos à evolução temporal e factual dos acontecimentos, que Malick nos mostra como, depois de encontrada uma “voz” maior em A Árvore da Vida, pode agora escutar e olhar outras narrativas, locais e figuras usando uma linguagem com região demarcada. Na verdade To The Wonder aprofunda mesmo mais ainda a relação entre os factos e as ideias, recorrendo mais ao off que o filme anterior. E, mesmo não tendo a dimensão “musical” magistral de A Árvore da Vida, revela novamente um trabalho notável de construção de um suporte musical, onde escutamos obras de Wagner, Gorecki ou Arvo Pärt.

Podem ver aqui um dos três trailers já disponibilizados deste filme. O trailer usa como banda sonora o tema November, do álbum Memoryhouse, de Max Richter.

Duran Duran, segundo David Lynch, em sala?

O filme-concerto dos Duran Duran realizado por David Lynch poderá ter uma expressão em sala e em suporte home video nos próximos tempos. Quem o admitiu foi o próprio Nick Rhodes, o teclista do grupo, no decurso de uma entrevista concedida ao DN a propósito do lançamento do álbum do projeto TV Mania (e que pode ser lida na edição impressa de hoje do jornal). Nick Rhodes explicou que o projeto, tendo nascido como uma transmissão em direto para a Internet, enfrentou os naturais pequenos precalços tão característicos a esta forma de trabalhar. Estão “resolvidos”, confirmou. E disse que gostava de pensar na eventualidade de um pequeno lançamento do filme em sala, antes mesmo de uma edição em suportes de home vídeo... Note-se que este é, por enquanto, apenas um desejo expresso pelo músico e não ainda uma estreia marcada.

O filme-concerto, registado em 2011, nasceu integrado na série ‘Unstaged’ que anualmente une um nome da música a um realizador, tendo os Duran Duran escolhido David Lynch como seu colaborador. A parceria entre ambos transcendeu depois o espaço deste concerto, tendo o realizador assinado uma remistura para o tema Girl Panic! lançada no sete polegadas em vinil que a banda editou por ocasião do Record Store Day em 2012.

Podem recordar aqui o momento em que, na companhia de Kelis, os Duran Duran interpretaram The Man Who Stole a Leopard neste filme-concerto de David Lynch. As imagens correspondem à transmissão feita em direto em 2011.

David Mamet, Moisés e o mar

De que falamos quando falamos de percepção da realidade? Para David Mamet chegou a altura de discutir — mais do que isso: desmontar com grande estrondo — o carácter ilusório que essa percepção pode envolver, em particular no mundo mediático em que planetariamente vivemos. O seu livro The Secret Knowledge é uma espantosa e mobilizadora viagem a um tempo (americano, antes do mais, mas necessariamente universal) em que a percepção da realidade pelas notícias tende a ser sugada pelos valores de uma lógica de espectáculo que, não poucas vezes, dispensa o mais básico rigor jornalístico. 

>>> Confundimos as notícias com a realidade, tal como as próprias organizações produtoras de notícias. Vendem espectáculo e, como qualquer bom criador de espectáculo, dão ênfase aos factos que mais possam agradar à audiência, ao mesmo tempo estruturando como um drama a natureza confusa e não conclusiva da existência quotidiana.

Há uma dimensão made in USA em tudo isto que importa não simplificar. Aliás, mais do que isso, este é um livro de um americano que, com uma contundência porventura ainda mais agressiva do que a que encontramos em muito do seu trabalho (teatro & cinema), vem dar conta da sua transparente viragem: abandonou a Esquerda e aderiu aos valores do Conservadorismo.
Escusado será dizer que as divisões político-partidárias dos EUA (e até mesmo os mecanismos de significação de muitas palavras do léxico político) não podem ser automaticamente transpostas para outros contextos (por exemplo, europeus). O que está em jogo envolve uma dinâmica de pensamento que, além de enraizada num país com uma longuíssima tradição bipartidária, aplica também mecanismos de reflexão, ou até mesmo crença, que não podem ser dissociados de um muito denso e complexo património religioso — e, sobretudo, de permanente interacção entre o religioso e o político.

>>> Há outra interpretação possível para a divisão do mar por Moisés.
Em vez de intervir para criar um caminho numa substância unitária, pode dizer-se que ele demonstrou que a liberdade decorre da capacidade de ver as divisões; quer dizer, que a vida pode ser vista como divisível em bem e mal; moral e imoral; sagrada e profana; permitida e proibida — que o aparentemente unitário "mar" do comportamento e da ambição humana pode, de facto, estar dividido.
A um escravo não é permitido fazer estas distinções. Todo o seu comportamento está circunscrito pela vontade do seu dono. A necessidade de fazer distinções é a essência da liberdade, aí onde cada um não só pode mas deve escolher.

Digamos, simplificando, que a reflexão de Mamet não pode deixar de suscitar interrogações cruzadas, dúvidas pertinentes e contrapontos mais ou menos tensos — por alguma razão, ele atribui ao seu livro este eloquente subtítulo: 'Sob o desmantelamento da cultura americana'. Podemos, por exemplo, perguntar até que ponto ele enfrenta as consequências do 11 de Setembro na vida americana (cultural & política) da última década; e, por isso mesmo, podemos discutir o modo como ele escolhe Barack Obama como alvo preferencial de todas as suas desilusões com a Esquerda (americana). Seja como for, nada disso invalida um grama da inteligência filosófica e do fulgor argumentativo de The Secret Knowledge, um livro, afinal, para nos ajudar a repensar os dramas muito contemporâneos das miragens colectivas e dos desencantos individuais.

>>> Site oficial de David Mamet.

Yeah Yeah Yeahs em flashback

Sacrilege pertence ao alinhamento de Mosquito, novo álbum dos Yeah Yeah Yeahs, a lançar em Abril. O audio já tinha sido divulgado, mas só agora chegou ao formato de teledisco (com realização de Megaforce).
Com a actriz inglesa Lily Cole no papel principal, o resultado é espantoso: não só porque o teledisco encena uma perturbante história de amores, desamores e intolerância, mas também porque o tempo é insolitamente envolvente — como se se tratasse de criar uma nova lógica de flashbacks em que a acção recua, em fatias de tempo, ao mesmo tempo gerando um ambíguo clima de continuidade. Ou como o sacrilégico narrativo compensa.

terça-feira, março 26, 2013

Brad Pitt e os zombies

Os zombies voltaram à actualidade tele-cinematográfica com essa série magnífica que é The Walking Dead. Neste Verão (20 de Junho em Portugal), a grande produção de Hollywood entende por bem não deixar os seus créditos por ecrãs alheios, apresentando World War Z, adaptação do romance homónimo de Max Brooks, com Brad Pitt sob a direcção de Marc Forster.
Para além da abundância de talentos envolvidos, incluindo o argumentista Matthew Michael Carnahan (que escreveu o prodigioso Lions for Lambs/Peões em Jogo, dirigido por Robert Redford, em 2007), aguarda-se com expectativa o trabalho de Forster, já que ele é o excelente realizador de coisas tão diversas como Monster's Ball (2001), À Procura da Terra do Nunca (2004) e Stay - Entre a Vida e a Morte (2005), isto sem esquecer a sua passagem pelo universo de James Bond (007 - Quantum of Solace, 2008) — para já, registe-se o elaborado visual de cartaz e trailer.