Não é a primeira vez que aqui apresentamos uma gravação da Grande Messe des Morts de Berlioz. De resto, uma relativamente recente gravação dirigida por Paul McCreesh (que tomará a partir deste verão o cargo de maestro titular da Gulbenkian) foi inclusivamente aqui falada em abril do ano passado. E na altura, ao abordar a obra, não deixei de referir a ligação que, desde 2011, esta música passou a ter com o cinema de Terrence Malick. Dizia então aqui:
“É assombrosa, de facto, a força das imagens. E hoje é impossível escutar o Danúbio Azul de Johann Strauss sem pensar em 2001: Odisseia no Espaço de Kubrick, a Cavalgada das Valquírias de Wagner sem lembrar a “carga” aérea em Apocalypse Now de Coppola ou o adagietto da Sinfonia Nº 5 de Mahler sem evocar a adaptação de Morte em Veneza por Visconti”. Poderia acrescentar o Alina, de Arvo Pärt, perante as imagens do Gerry de Gus Van Sant. “E hoje, ao escutar a Grande Messe des Morts (muitas vezes referida simplesmente como o Requiem) de Hector Berlioz (1803-1869), não escapo a duas sequências de A Árvore da Vida, de Terrence Malick, em particular aquele reencontro vivido na praia, perto do final, ao som de parte do Agnus Dei.
Como o filme de Malick, esta obra de Hector Berlioz é também ela uma reflexão sobre a fé que se socorre de uma visão maior da sua arte para atingir um patamar invulgar de grandiosidade, emotividade e, podemos acrescentar, excelência. Originalmente encomendada para um serviço religioso em memória de um general morto numa tentativa de assassinato ao rei francês Luis Filipe em 1837, a grande missa pelos mortos recuperou elementos de obras que Berlioz deixara inacabadas por estrear – como a Missa Solene, a oratória Le Dernier Jour du Monde ou a Fête Musicale Funèbre a la Mémoire des Hommes Ilustres de La France – e usa recursos instrumentais e humanos de grande escala, procurando um efeito dramático maior, na verdade arrebatador. A ocasião para a qual a missas fora encomendada acabou cancelada, mas uma oportunidade de estreia chegou pouco depois, numa outra cerimónia em memória de outro militar, então morto em campanha no Norte de África. E hoje é episódio com características quase míticas o momento em que pela primeira vez esta música ganhou corpo e som, a 5 de dezembro desse mesmo 1837 na Igreja dos Inválidos, em Paris.”
Naturalmente a música existe sem a ligação ao filme. Esta é uma associação pessoal. Como tantas outras que todos nós fazemos em relação a todas as músicas que escutamos, relacionando as memórias de cada uma com vivências, momentos ou imagens.
Uma nova gravação desta obra monumental de Berlioz acaba de conhecer edição, numa gravação pela London Symphony Orchestra e respetivo coro, sob direção de Colin Davis (e lançada pela editora da própria orquestra). Davis é um “especialista” no compositor francês e tem vindo a gravar algumas das suas grandes obras, tendo até recebido dois Grammys pela sua edição da ópera Les Troyenes. Com a participação do tenor Barry Banks, esta Grande Messe des Morts encerra o ciclo de gravações em torno de Berlioz, apresentando o registo captado numa atuação ao vivo na londrina St. Paul’s Cathedral (e tomando o melhor partido possível das suas potencialidades acústicas, de certa forma recuperando a sugestão do ambiente em que a obra foi originalmente estreada). Aguarda-se agora, mais dia menos dia, a eventual reunião destas gravações numa só caixa antológica.