quinta-feira, março 28, 2013

Crónica do fim de uma era

Foi há poucos dias. Entrei como tantas vezes o fiz pela grande porta que se abre para a sempre movimentada Ofxord St. Havia um cartaz a chamar a atenção do lançamento do novo álbum de Justin Timberlake, som vindo lá de dentro, os escaparates à entrada mostravam os quadradinhos de cor que, ainda à distância, sugeriam que os discos ainda respiravam por ali... Porém, bastou entrar na velha e grande loja central da HMV para sentir o efeito das notícias que, desde finais de 2012, dão conta do estado calamitoso a que chegara a saúde desta outrora grande rede de lojas e da cada vez mais improvável vontade de algum investidor em manter vivo naqueles espaços um negocio na área da música e do cinema.

Reparei desde logo no estado de dieta revelado pela grande parede lateral direita da loja, onde sempre me habituara a ver as novidades editoriais da semana, nestes últimos anos com os lançamentos em vinil a fazer até recordar algum do look da loja que conheci ainda nos anos 80. Desci ao piso inferior, para visitar aquela que, desde o encerramento da Tower Records em Picadilly, se tornara na maior e mais bem recheada secção de música clássica da cidade. Aí o panorama descia de dieta a semi-deserto, com bem mais de metade das prateleiras já despidas de discos, os poucos que restavam concentrados nos corredores centrais. No balcão o único empregado presente olhava em frente para os três clientes em busca de pechinchas em tempo de liquidação de stock. No seu olhar aquela inquietude de quem sabe que observa um corpo moribundo.

Pelo resto daquele andar, grandes caixas com discos empilhados à espera de quem os levasse e mais filas e filas de prateleiras (onde em tempos havia bandas sonoras, musicais, world music e jazz) a caminho de vazias. Regressei ao piso térreo para caminhar entre as filas de CD onde habitualmente encontrava de quase tudo o que havia para encontrar em regime pop/rock para reparar, agora ao pormenor, que também ali a coisa seguia pelo mesmo caminho. O vinil lá estava, finalmente, a ocupar um pedaço destas estantes, e já em seleção que, de tão escolhida, quase não interessava a ninguém. Saí de mãos a abanar. Atordoado. E com a sensação de que visitara um mausoléu que representa, certamente por poucas semanas mais, a imagem “viva” de uma era que acabou.

Lembro-me de ir a Londres com o percurso entre lojas de discos como sendo capaz de ocupar dois dias inteiros (e estava a ser despachado). Além das grandes lojas de Oxford Street (a da Virgin, logo na esquina com a Tottenham Court Rd e a da HMV, perto de Oxford Circus, sem esquecer outras duas, das mesmas redes, mais adiante, perto de Marble Arch) e da Tower em Picadilly, tinha uma via “sacra” de quase porta sim porta sim na Berwick St (em pleno Soho), onde havia até lojas só de singles, apenas de máxis para DJ, especializadas em reggae, dub e dancehall, e, claro, a mítica Sister Ray (para colecionadores) onde fui encontrando os singles das bandas que me ajudaram a construir o gosto musical entre finais dos setentas e inícios dos oitentas. Havia Camden Town, da Rhythm Records perto da saída do metro a outras pequenas lojas (e stands de pechinchas no mercado). E havia mais, muito mais, acabando inevitavelmente por regressar a Lisboa com gordinhos sacos na mão cheios de álbuns e singles, os “troféus” das poupanças dos meses anteriores...

Este mês, na mesma ocasião em que passei pela HMV de Ofxord St visitei as lojas de discos usados em Notting Hill Gate para também ali reparar que o que antes era uma sucessão de casas especializadas (havia uma só para clássica, uma para pop/rock, uma para música “urbana”, uma para filmes) está agora compactada em apenas duas, géneros e discos acotovelados e, depois de sujos os dedos e corridas algumas prateleiras, na verdade sem nada de surpreendente por ali.

Restou-me, estando nas redondezas, passar pela Rough Trade de Porobello Road (na verdade é numa pequena transversal. De lá regressei com um saco e dois LPs... Como que não querendo deixar de respeitar uma velha tradição em tempo de passagem por Londres.


PS. Os tempos mudaram. A era das grandes lojas acabou, o mercado maior tendo caminhado para a música digital ou para a encomenda de suportes físicos pela Internet. Nos países nórdicos emergiram novas lojas, especializadas, que apostam sobretudo no vinil e na criação de eventos. Em Lisboa há já um circuito expressivo de pequenas lojas (que cruzam novidades e usados). Mas Londres, que era a capital europeia para os compradores de discos, ainda não deu o salto para esta nova era...