domingo, março 31, 2013

À procura do cinema bíblico

OS DEZ MANDAMENTOS (1956)
Será que existe, ou existiu, um "cinema bíblico"? Esta é a versão alargada de um texto publicado no Diário de Notícias (29 Março), com o título 'As narrativas bíblicas ao serviço do espectáculo cinematográfico'.

Afinal de contas, de que falamos quando falamos de “cinema bíblico”? De grandes empreendimentos de Hollywood como Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille? Ou da introspecção espiritual proposta por Jean-Luc Godard em Eu Vos Saúdo, Maria (1985)? Será que existe uma ponte, simbólica ou estética, a ligar tais exemplos?
A resposta a esta última pergunta é claramente negativa. E não apenas porque, da estética à moral, tudo separa o delírio formal de DeMille do risco experimental de Godard. Acontece que o “filme bíblico” nunca existiu como um género consolidado, seja em termos narrativos, seja nas estruturas de produção.
Ainda assim, podemos considerar que há dois momentos históricos em que os temas bíblicos adquirem um valor não exactamente espiritual, mas basicamente comercial. Porquê? Porque a abrangência das narrativas recolhidas na Bíblia (ou no imaginário popular tocado pela Bíblia) favoreceu a consolidação pública de determinados modelos de espectáculo.
O primeiro desses momentos é, naturalmente, o período mudo do cinema. E bastará recordar de novo o caso exemplar de DeMille que rodou a sua primeira versão de Os Dez Mandamentos em 1923. Aliás, mais do que o filme bíblico, o épico situado antes de Cristo define uma tendência transversal do cinema mais primitivo, encontrando eloquente expressão em Itália onde surgiu, por exemplo, em 1914, esse filme grandioso, ainda hoje impressionante, que é Cabiria, de Giovanni Pastrone.
O REI DOS REIS (1961)
Depois, durante a época áurea da chamada “superprodução”, as narrativas bíblicas voltaram a assumir um peculiar valor de mercado. De facto, a partir de meados da década de 50, a grande produção (de origem americana) tentou contrariar os efeitos cada vez mais gravosos da concorrência televisiva. Como? Apostando numa ostentação física e dramática que se traduziu em retratos de Jesus Cristo como O Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray, ou A Maior História de Todos os Tempos (1965), de George Stevens. Tais filmes coexistiram com outros grandes espectáculos como Lawrence da Arábia (1962) ou Doutor Jivago (1965), ambos de David Lean, afirmando um cinema do gigantismo dos cenários e de milhares de figurantes que, curiosamente, foi em grande parte concretizado na Europa, tirando partido da mão de obra mais barata de países como Itália ou Espanha. Ironicamente, quase sempre um dos títulos menos lembrados, mas mais exemplares, dessa época chama-se... A Bíblia (1966) e foi realizado por John Huston.
A partir daí, pode dizer-se que há um pouco de todo, de forma irregular, tanto no plano artístico, como nas estratégias de mercado. Reflectindo uma crescente tentativa de “imitação” da grandiosidade cinematográfica, a televisão tem apostado ao longo dos décadas na recriação mais ou menos académica dos temas bíblicos: a mini-série Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zeffirelli, poderá servir de símbolo de tal tendência. Em boa verdade, neste campo, o cinema só voltou a gerar um gigantesco sucesso comercial com A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson.
Seja como for, tendo em conta o amplo e aceso debate que gerou, A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, adaptando o romance homónimo de Nikos Kazantzakis, terá sido o último grande filme bíblico, ainda filiado na tradição clássica. Com Willem Dafoe no papel de Jesus, o filme ficou como um título tanto mais importante quanto está assinado por alguém que vive, por dentro, as referências religiosas que convoca.