De que falamos quando falamos de percepção da realidade? Para David Mamet chegou a altura de discutir — mais do que isso: desmontar com grande estrondo — o carácter ilusório que essa percepção pode envolver, em particular no mundo mediático em que planetariamente vivemos. O seu livro The Secret Knowledge é uma espantosa e mobilizadora viagem a um tempo (americano, antes do mais, mas necessariamente universal) em que a percepção da realidade pelas notícias tende a ser sugada pelos valores de uma lógica de espectáculo que, não poucas vezes, dispensa o mais básico rigor jornalístico.
>>> Confundimos as notícias com a realidade, tal como as próprias organizações produtoras de notícias. Vendem espectáculo e, como qualquer bom criador de espectáculo, dão ênfase aos factos que mais possam agradar à audiência, ao mesmo tempo estruturando como um drama a natureza confusa e não conclusiva da existência quotidiana.
Há uma dimensão made in USA em tudo isto que importa não simplificar. Aliás, mais do que isso, este é um livro de um americano que, com uma contundência porventura ainda mais agressiva do que a que encontramos em muito do seu trabalho (teatro & cinema), vem dar conta da sua transparente viragem: abandonou a Esquerda e aderiu aos valores do Conservadorismo.
Escusado será dizer que as divisões político-partidárias dos EUA (e até mesmo os mecanismos de significação de muitas palavras do léxico político) não podem ser automaticamente transpostas para outros contextos (por exemplo, europeus). O que está em jogo envolve uma dinâmica de pensamento que, além de enraizada num país com uma longuíssima tradição bipartidária, aplica também mecanismos de reflexão, ou até mesmo crença, que não podem ser dissociados de um muito denso e complexo património religioso — e, sobretudo, de permanente interacção entre o religioso e o político.
>>> Há outra interpretação possível para a divisão do mar por Moisés.
Em vez de intervir para criar um caminho numa substância unitária, pode dizer-se que ele demonstrou que a liberdade decorre da capacidade de ver as divisões; quer dizer, que a vida pode ser vista como divisível em bem e mal; moral e imoral; sagrada e profana; permitida e proibida — que o aparentemente unitário "mar" do comportamento e da ambição humana pode, de facto, estar dividido.
A um escravo não é permitido fazer estas distinções. Todo o seu comportamento está circunscrito pela vontade do seu dono. A necessidade de fazer distinções é a essência da liberdade, aí onde cada um não só pode mas deve escolher.
Digamos, simplificando, que a reflexão de Mamet não pode deixar de suscitar interrogações cruzadas, dúvidas pertinentes e contrapontos mais ou menos tensos — por alguma razão, ele atribui ao seu livro este eloquente subtítulo: 'Sob o desmantelamento da cultura americana'. Podemos, por exemplo, perguntar até que ponto ele enfrenta as consequências do 11 de Setembro na vida americana (cultural & política) da última década; e, por isso mesmo, podemos discutir o modo como ele escolhe Barack Obama como alvo preferencial de todas as suas desilusões com a Esquerda (americana). Seja como for, nada disso invalida um grama da inteligência filosófica e do fulgor argumentativo de The Secret Knowledge, um livro, afinal, para nos ajudar a repensar os dramas muito contemporâneos das miragens colectivas e dos desencantos individuais.
>>> Site oficial de David Mamet.