sábado, março 30, 2013

Conversas de arquivo:
Depeche Mode em 2005 (1)

Em tempo de lançamento de um novo álbum dos Depeche Mode vamos recordar aqui uma entrevista que fiz a Dave Gahan, o vocalista do grupo, por alturas do lançamento de Playing The Angel, em 2005. A conversa decorreu num hotel em Paris, perto da Place Vendôme. A entrevista foi publicada na edição de 14 de outubro de 2005 do DN sob o título ‘Depois da fé, a devoção’. 

Quando promoveu o seu álbum a solo Paper Monsters deixou claro que, se os Depeche Mode voltassem a gravar, teria de participar como autor no disco. Isso, de facto, aconteceu?
É verdade. Esse disco foi para mim o catalisador do que veio a acontecer. E deu-nos força para continuar. Neste novo disco há, portanto, um certo espírito de competitividade que até aqui nos faltava internamente.

Precisava de experimentar as suas capacidades como autor, a solo, antes de as apresentar nos Depeche Mode?
Sim, creio que sim. Houve sempre esta ideia de que algumas canções que eu tinha feito poderiam caber em discos nossos. Uma ideia que remonta aos dias do Violator ou ao Songs Of Faith and Devotion. Mas nunca senti que esse fosse exactamente o meu lugar. Ao longo dos anos fui-me progressivamente sentindo cada vez mais desconfortável com o papel que havia atribuído a mim mesmo.

Como um grito mudo interior?
Creio que sim. Havia um desejo de sair de casa e tentar algo novo?

Em que termos pensa que a sua escrita difere da de Martin Gore?
Em primeiro lugar tenho de dizer, e creio que o Martin diria o mesmo, que não escrevo para os Depeche Mode. Assim como o Martin não escreve para os Depcehe Mode. Ele escreve para si. Quando comecei a escrever as canções para o álbum que acabei por gravar como Paper Monsters, não vislumbrava nada mais além. Sentei-me a escrever e estava apenas a fazer isso mesmo. A escrever. E a chegar ao fim do dia com a sensação que tinha conseguido fazer algo. Continuei a escrever depois da Paper Monsters Tour e só no final do ano o Daniel Miller [patrão da Mute, que era então a editora dos Depeche Mode] chegou ao pé de mim e propôs que se fizesse um novo álbum de Depeche Mode. Tornou-se então bem claro para mim que teria de falar com os outros elementos do grupo e dizer-lhes que, se íamos desafiarmo-nos novamente como Depeche Mode, teriam de contar comigo a assinar algumas canções.

Durante 25 anos cantou primeiro as canções de Vince Clarke, depois as de Martin, e pontualmente as de Alan Wilder. Foi como um actor a vestir um papel escrito por outro?
De certa maneira, penso que sim. Há cantores como Frank Sinatra, Elvis Presley ou Billie Holliday, que eram os modelos que eu admirava, que sempre foram intérpretes.

Criou, portanto, uma personalidade através da interpretação?
Creio que sim. E levei muito tempo a encontrar qual era exactamente o meu lugar, aquele onde me sentia seguro. Podia cantar canções de qualquer outro autor, desde que nelas procurasse uma identificação. E há um tema que me parece ser transversal a todas as canções do Martin, que é o da luta numa relação. E a sua própria relação com a vida. E sempre tive isso em comum com ele. O que o Paper Monsters me permitiu depois fazer foi abraçar as minhas próprias lutas, que reflectem muitos desconfortos, sobretudo ao nível do tornar claro e aberto o que se passa no âmago de uma relação.

E como se relacionou ao longo dos anos com as temáticas de fé, muito obsessivas por vezes, na escrita de Martin Gore?
Também me identifico aí. E parece-me que o que eu próprio escrevo revela também essas obsessões pela fé. Ou a sua falta ou eventual procura?

É um homem religioso?
Não creio que o seja. Mas julgo que desejo acreditar que há algo em que possamos acreditar. Acredito que há uma grande força a trabalhar.

(continua)