domingo, maio 31, 2020

Happy birthday, Mr. Eastwood!

O BOM, O MAU E O VILÃO (1966)
Há qualquer coisa de contundente e paradoxal no facto de Clint Eastwood celebrar hoje, 31 de Maio de 2020, o seu 90º aniversário. Primeiro, porque ele é, não apenas uma das maiores estrelas vivas do cinema dos EUA, mas também alguém que se consolidou como símbolo da própria América; depois, porque essa sua América, historicamente sempre tão ansiosa de se resgatar através da sua simbologia, está a viver uma dramática convulsão interna de que a mediocridade de Donald Trump e a morte trágica de George Floyd são os sinais mais imediatos e perturbantes.
Não sabemos, claro, como o próprio Eastwood encara os acontecimentos das últimas semanas. Seria, aliás, favorecer a mais estúpida demagogia especular sobre os seus pontos de vista face a tais acontecimentos a partir seja do que for que possa estar nos seus filmes. Uma coisa é certa: desde a estreia como realizador, com o muito esquecido e brilhante Play Misty for Me/Destinos nas Trevas (1971) até ao recente, igualmente brilhante, O Caso de Richard Jewell (2019), ele tem sido um retratista interior e do interior do seu país, contemplando-o através de um elaborado pendor crítico que não é alheio a um obstinado amor.
E não deixa de haver também alguma ironia no reconhecimento desse seu labor. De facto, é verdade que grande parte da identidade artística e da mitologia de Eastwood está ligada ao western, género made in USA, por excelência, mas não é menos verdade que, nesse domínio, um dos capítulos vitais da sua filmografia está indissociavelmente ligado a paisagens (geográficas e industriais) da nossa Europa. Que é como quem diz: os três títulos lendários — Por um Punhado de Dólares (1964), Por Mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1966) — em que foi dirigido por Sergio Leone. 
A partir de um lugar europeu, olhando a América: Happy birthday, Mr. Eastwood!

>>> Clint Eastwood conversando com James Lipton, em 'Inside the Actors Studio' (5 Outubro 2003).



sábado, maio 30, 2020

"Viagem a Tóquio" — 2 dias online

Com o anúncio de reabertura de algumas salas de cinema, nomeadamente o Nimas (Lisboa), a Medeia Filmes conclui a iniciativa 'Quarentena cinéfila' que, ao longo das últimas semanas, disponibilizou links gratuitos para vários filmes. O título final, Viagem a Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu, é daqueles que há muito integra a galeria mais universal dos clássicos — no último inquérito internacional da revista britânica Sight & Sound dedicado aos "100 melhores filmes" de sempre, surgiu em terceiro lugar (logo após Vertigo e Citizen Kane). Poderá ser visto ou revisto nos dias 31 de Maio e 1 de Junho, entre as 11h00 e a meia-noite.

Rolling Stones — Hyde Park, 2013

Com as mensagens #extralicks e #stayhome, os Rolling Stones têm estado a partilhar registos de alguns memoráveis momentos ao vivo. Este extracto pertence aos concertos de 2013, em Londres, editados no álbum Hyde Park Live e no DVD Sweet Summer Sun: Live in Hyde Park. São quatro temas, incluindo Before They Make Me Run, na voz de Keith Richards (canção especialmente significativa na sua história pessoal):

* Paint It, Black
* Tumbling Dice
* Before They Make Me Run
* Emotional Rescue

sexta-feira, maio 29, 2020

Danny Elfman — em directo
[esta madrugada]

Chama-se Percussion Quartet e é uma composição inédita de Danny Elfman, interpretada pelo ensemble Third Coast Percussion: poderá ser escutada (e vista) esta madrugada.

* link para o YouTube.
* horário: dia 29, 20h00 (NY) = dia 30, 01h00 (Portugal).

Larry Kramer (1935 - 2020)

Personalidade fundamental na história dos direitos LGBT, Larry Kramer faleceu aos 84 anos de idade: a sua peça Um Coração Normal é um clássico sobre a luta contra a sida nos primeiros anos da década de 1980 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Maio), com o título 'Morreu Larry Kramer, pioneiro na luta contra a sida'.

Pioneiro na luta contra a sida, activista dos direitos LGBT, dramaturgo e argumentista, o americano Larry Kramer faleceu no dia 27 de maio, em Nova Iorque — contava 84 anos. Segundo informação prestada pelo seu marido, o arquitecto e designer David Webster, ao jornal The New York Times, a morte foi provocada por uma pneumonia, não relacionada com o covid-19.
No começo da década de 1980, Kramer esteve ligado à organização Gay Men’s Health Crisis e, mais tarde, ao movimento ACT UP, tornando-se uma das personalidades dos movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais com maior visibilidade mediática. A sua acção desempenhou um papel especialmente importante numa altura em que a burocracia das autoridades dos EUA ia contornando a urgência de tratamento da sida, sem que isso o impedisse de chamar a atenção para o que considerava uma perigosa apatia, perante a doença, de alguns sectores da comunidade gay.
Reflectindo tanto a sua militância como o seu desencanto, escreveu a peça Um Coração Normal (The Normal Heart), emprestando ao seu protagonista, o activista Ned Weeks, algumas componentes inequivocamente auto-biográficas. A estreia ocorreu em Nova Iorque, em 1985, desde então impondo-se como um texto clássico sobre a luta contra a sida nos primeiros anos da década de 80.
Na segunda metade dos anos 90, Um Coração Normal esteve para ser transformado num filme realizado por Barbra Streisand. O certo é que, depois de ter dirigido As Duas Faces do Espelho (1996), projecto de produção especialmente agitada, Streisand decidiu suspender o seu trabalho como realizadora, criando uma situação de impasse que se arrastou durante vários anos. Um Coração Normal foi, finalmente, rodado, em 2014, com chancela da HBO. O próprio Kramer adaptou a sua peça e Ryan Murphy assinou a realização; com Mark Ruffalo e Matt Bomer nos papéis principais, arrebataria várias distinções, incluindo um Emmy de melhor telefilme e um prémio de interpretação para Ruffalo, atribuído pela Guild (sindicato) dos actores americanos [trailer].


Kramer não era um estreante na escrita de argumentos, tendo sido responsável pelos diálogos de Here We Go Round the Mulberry Bush (1968), comédia sobre a sexualidade adolescente dirigida por Clive Donner. Depois, assinou a adaptação da obra de D. H. Lawrence na base de Mulheres Apaixonadas (1969), de Ken Russell — o seu trabalho valeu-lhe, aliás, uma nomeação para o Oscar de melhor argumento adaptado (no ano em que o vencedor dessa categoria foi Ring Lardner Jr., por MASH). Em 1973, escreveu também o argumento de Horizonte Perdido, de Charles Jarrott, remake do clássico de 1937 de Frank Capra, tendo por base o romance de James Hilton.
Os temas LGBT e a análise histórica e ética das vivências em torno da sida marcam toda a sua obra escrita, nomeadamente as peças Just Say No (1988) e The Destiny of Me (1992), esta retomando a personagem de Ned Weeks. Em 2013, foi distinguido com o Prémio PEN/Laura Pels, atribuído anualmente pelo PEN America a dois dramaturgos (neste caso, a par de Kirsten Greenidge). Antes da identificação da sida, destaca-se o seu polémico romance Faggots (1978), retratando em tom crítico e satírico as vivências da comunidade gay de Nova Iorque. Em 1989, publicou uma antologia dos seus escritos sobre a sida e o activismo pelos direitos LGBT, com o título Reports from the Holocaust: The Making of an AIDS Activist.


>>> Obituário: Los Angeles Times + Broadway.com.
>>> Perfil de Larry Kramer na revista The Advocate.
>>> Memórias de Larry Kramer no Playbill.

quarta-feira, maio 27, 2020

No supermercado,
com Marcelo Rebelo de Sousa

Marcelo Rebelo de Sousa às compras,
ou como todas as imagens são políticas
De máscara, respeitando o distanciamento social, o Presidente da República foi às compras. Dito de outro modo: a sua imagem num supermercado dá origem a um peculiar, e muito interessante, evento mediático — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Maio).

No nosso mundo saturado de imagens, vive-se todos os dias uma guerra (cultural, por excelência) visando a maior ou menor visibilidade de cada imagem. Não é um conflito clássico, um exército de um lado, outro do outro. Na sua complexidade e aceleração, nem sequer é possível detectar centros dominantes de poder. Alheando-se das noções clássicas de responsabilização, as novas tecnologias dispensaram todos de se sentirem assombrados por algum tipo de responsabilidade pelas imagens cuja circulação promovem, administram ou reforçam. Basta que a circulação prossiga. Os corações coloridos e os polegares ao alto farão o resto.
[Instagram]
Com o seu admirável cepticismo poético, Jean-Luc Godard uma vez comentou este estado de coisas a propósito das “diferenças” entre mostrar um filme numa sala escura ou num ecrã de televisão. Lembrava ele que, de uma maneira ou de outra, as pessoas que apareciam para ver o filme na sala tinham tomado alguma decisão — são seres humanos concretos num lugar concreto. Nos televisores, que acontece ao filme? “Não sei para onde vai”, diz ele.
Vem isto a propósito de uma curiosa imagem recente de Marcelo Rebelo Sousa, dizem as notícias que “socialmente” muito difundida. Em tempos de COVID-19, vêmo-lo num supermercado, às compras, usando máscara protectora, respeitando as distâncias impostas pela pandemia. Sabemos que a imagem tem tido especial impacto no estrangeiro (em Espanha, por exemplo, o El País dedicou-lhe um artigo), até porque, deduz-se, fora dos limites figurativos do quotidiano português, o seu efeito de surpresa será maior.
Importa contornar o cinismo "social" que este tipo de eventos quase sempre suscita, começando por sublinhar o valor pedagógico da imagem — eis um cidadão numa tarefa de rotina, com a sua máscara protectora, respeitando as distâncias impostas pela pandemia. E tanto mais quanto importa também não esquecer que o Presidente da República está longe de ser personagem isolada neste tipo de exposição pública: as mais diversas personalidades da cena política, de todos os quadrantes, têm tido idêntico cuidado prático e simbólico.
Ao mesmo tempo, seria demasiado ingénuo escamotear o valor "promocional" da própria imagem. Entenda-se: não necessariamente porque isso resulte da acção directa e unívoca, porventura perversa, do próprio protagonista (ou da máquina de propaganda que alguns dirão que existe, precisamente, para este tipo de performances públicas). Sejamos realistas: Marcelo Rebelo de Sousa encarna a regra, não a excepção — hoje em dia, para o melhor e para o pior, todos os políticos sabem que os modelos de tal exposição pública desempenham um papel fundamental na gestão dos seus discursos e, nessa medida, na maior ou menor eficácia da sua relação com os cidadãos/eleitores.
[Presidente da República]
Deparamos, assim, com uma dúvida paradoxal. A sua formulação conduz-nos ao cerne de um impensado (político & mediático) que afecta todos os parâmetros da nossa vida colectiva. A saber: são os políticos que, com maior ou menor talento, vão fazendo a gestão das suas imagens, ou é o próprio sistema mediático (e imagético) que provoca, incute e induz a "obrigação" de fazer política através dos seus dispositivos de amostragem e difusão?
Há outra maneira, por certo menos teórica e mais angustiante, de formular tal paradoxo: quase todos os gestos políticos passaram a existir através da sua apresentação mediática, quer dizer, das imagens que podem gerar. Tornou-se quase impossível fazer política sem passar pelas regras mais ou menos compulsivas de tal universo de comunicação.
Podemos admitir que tal estado de coisas nos envolve numa cumplicidade sem mácula com Marcelo Rebelo de Sousa. Talvez, porque não? Aliás, o próprio sistema mediático consagrou tal cumplicidade através de uma fórmula sugestiva, mas de esquemática banalidade: "Presidente dos afectos”. A afectividade passou a ser mediaticamente concebida como o “contrário” das ideias: há mesmo quem pense que a nossa relação com as ideias é alheia a formas muito particulares de afectividade. Resta saber se este modelo de cumplicidade nos permite pensar — e pensar politicamente — para lá das fronteiras afectivas de um corredor de supermercado.

Eugène Atget + Maurício Lima
— fotografando Paris

Paris visto por Eugène Atget é mais do que uma esplendorosa memória fotográfica — é também um capítulo fulcral da nossa história urbana, do seu imaginário humano, do seu labirinto humanista. O facto (célebre) de as ruas fotografadas por Atget, no começo do século XX, se apresentarem vazias levou o fotógrafo Maurício Lima a percorrer as mesmas ruas, fotografando-as a partir dos "mesmos" enquadramentos de Atget — os cenários desertificados por causa da pandemia envolvem-se, assim, com as fotografias registadas há cerca de 120 anos, definindo uma curva temporal em que tudo existe, ou parece existir, como sereníssimo presente. As imagens comparadas estão no site do New York Times, acompanhadas por um belo texto de Adam Nossiter.

14, rue Servandoni
[ATGET + LIMA]

Bruno Barbey no Bois de Vincennes

FOTO: Bruno Barbey
Obtida no dia 14 de Maio, eis uma espantosa imagem: o cidadão, com máscara, que segue o trajecto de uma actividade talvez algo urgente; a jovem, sem máscara, que aproveita o esplendor do Bois de Vincennes para uma selfie; e o fotógrafo, qual sombra pendular entre os dois, usando a vegetação como tela. Dir-se-ia que se condensam, aqui, as solidões e partilhas que o COVID-19 nos obriga a viver — a assinatura é de Bruno Barbey e a imagem está no Instagram da agência Magnum.

segunda-feira, maio 25, 2020

Jimmy Cobb (1929 - 2020)

[Vater]
Baterista de excelência, figura lendária da história do jazz, o americano Jimmy Cobb faleceu no dia 24 de Maio, na sua casa de Manhattan, vítima de cancro no pulmão — contava 91 anos.
Quase todas as memórias de Cobb envolvem o nome de Miles Davis, os tempos gloriosos do hard bop e as influências de blues e gospell. E por muito boas razões: ele era o único sobrevivente do álbum Kind of Blue (1959), obra seminal da música do século XX. Tal referência não é, obviamente, um facto isolado, uma vez que os sons ágeis e elegantes da sua bateria surgem em vários álbuns de Miles, incluindo Sketches of Spain (1960) e Someday My Prince Will Come (1961). Em boa verdade, a lista de nomes com que Cobb colaborou é impressionante, de Dizzy Gillespie e John Coltrane a Sarah Vaughan, Gil Evans ou Ron Carter. Isto sem esquecer que ele possui também uma importante discografia como líder, incluindo os recentes This I Dig of You e Cobb's Pocket (ambos de 2019).

>>> Blue in Green, de Kind of Blue (1959).


>>> All Blues: Jimmy Cobb's So What Band, comemorando os 50 anos de Kind of Blue (Bridgestone Music Festival, 2009).


>>> Video de apresentação do álbum This I Dig of You (2019).


>>> Obituário na DownBeat.

Miles Davis + Jimmy Cobb
[Drummerworld]

Pandemia a preto e branco

As imagens não curam pandemias. Mas é um facto que todas as situações de crise ou catástrofe geram mecanismos de transformação das imagens e da nossa relação com elas. Nestes tempos de COVID-19, um dado a assinalar é o retorno do preto e branco. Por necessidade de um realismo mais primitivo? Talvez. Em qualquer caso, sinalizando a necessidade de ver e registar para lá das regras dominantes do imaginário televisivo — exemplo a ter em conta: a primeira página da edição de 25 de Maio do Libération.

domingo, maio 24, 2020

The New York Times: os nomes

Neste tempo de saturação de imagens, muitas vezes gerando uma dramática cegueira social e simbólica, a revalorização da palavra é uma questão cultural de todos os dias. A palavra que se diz, a palavra que se escreve. Nesta perspectiva, a edição de 24 de Maio do New York Times consuma um gesto exemplar: quando os EUA se aproximam do número de 100.000 mortos por coronavírus, o jornal faz uma primeira página (com continuação no interior) em que evoca os nomes de um milhar dessas vítimas — para lá das generalizações, estão as pessoas, cada uma diferente da outra.
Há cerca de duas semanas, esta obstinada demanda da verdade — The truth is essencial — foi mais uma vez sublinhada pelo jornal através deste video.

sábado, maio 23, 2020

Maria Velho da Costa (1938 - 2020)

Figura maior da literatura portuguesa das últimas seis décadas, Maria Velho da Costa faleceu no dia 23 de Maio, em sua casa, em Lisboa — contava 81 anos.
O nome da escritora ficou para sempre associado à publicação das Novas Cartas Portuguesas (1972), com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, obra que marca os tempos finais do Estado Novo, quer pela denúncia da moral pública e privada dominante, quer pela intransigente afirmação da identidade feminina. Em qualquer caso, nessa altura Maria Velho da Costa tinha já publicado O Lugar Comum (1966) e Maina Mendes (1969), afirmando-se como singularíssima voz de um romanesco em que a relação com as zonas mais secretas do comportamento humano surge indissociável de uma paciente reinvenção gramatical e simbólica da própria arte da escrita. Livros como Cravo (1976), Casas Pardas (1977), Lucialima (1983) ou Missa in Albis (1988) são outros exemplares modelares do seu labor.
Certamente não por acaso, a luminosidade "figurativa" da sua escrita fê-la gerar relações de cumplicidade com alguns cineastas. Encontramo-la, assim ligada a títulos dirigidos por João César Monteiro (Que Farei Eu com esta Espada?, Veredas e Silvestre, respectivamente de 1975, 1978 e 1981), Alberto Seixas Santos (A Rapariga da Mão Morta e E o Tempo Passa, de 2005 e 2011) e Margarida Gil (O Anjo da Guarda e Paixão, de 1998 e 2012).
Foi presidente da direcção da Associação Portuguesa de Escritores no período 1973-78; nesse cargo, a sua acção revelou-se decisiva na organização do primeiro Congresso de Escritores Portugueses, em Maio de 1975. Entre as distinções que recebeu, inclui-se, em 2002, o Prémio Camões.

>>> Os verbos são o que são e eu não sei ser morada pela linguagem e apenas o sabor e os sons dela passando aqui como comida variável por temperos de cada dia.

in Cravo

>>> Programa da RTPN (2011), sobre a reedição de Novas Cartas Portuguesas.


>>> Fragmento de Casas Pardas, por Lia Gama, no documentário Fátima de A a Z (2009), de Margarida Gil.


>>> Trailer de E o Tempo Passa.


>>> Obituário no Diário de Notícias.

"Shining", 40 anos

Quando começa o filme Shining [video], vemos o "carocha" amarelo da família Torrance a atravessar deslmubrantes paisagens, a caminho do Overlook Hotel... Bem sabemos que o cenário os irá acolher num inusitado misto de estranheza e violência. Em qualquer caso, da primeiríssima vez que vimos aquelas imagens não pudemos deixar de experimentar uma suave perturbação — como escreveu um crítico francês, toda aquela serenidade e beleza envolvente faz-nos sentir que "algo vai mal".
Assim é a obra-prima de Stanley Kubrick: uma viagem por terrenos familiares, literalmente, que nos confronta com o assombramento do ser e as convulsões da identidade humana. Dizer que a sua actualidade temática e simbólica não só não se perdeu, como se reforçou, eis uma cândida evidência. Shining teve a sua estreia no dia 23 de Maio de 1980 — faz hoje 40 anos.

sexta-feira, maio 22, 2020

Cannes: como defender o cinema?

Thierry Frémaux
O novo filme de Spike Lee não poderá estar em Cannes porque… não haverá Festival de Cannes. Para Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, este é um bom momento para repensar o futuro do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Maio), com o título 'A política de Cannes'.

Durante e, por certo, após a pandemia, vale a pena tentar enunciar algumas ideias programáticas para defesa dos filmes. Entenda-se: não apenas medidas transitórias para lidar com os dramas gerados pelo confinamento, antes ideias que possam contribuir para esclarecer e reforçar o futuro do cinema.
Eis oito princípios possíveis: “1) Repensar os circuitos de financiamento. 2) Proteger os criadores, reforçando os direitos de autor. 3) Fazer com que as plataformas estrangeiras contribuam significativamente para o financiamento do cinema francês e europeu. 4) Negociar arduamente com os GAFA (Google + Apple + Facebook + Amazon) para que a utilização das obras seja correctamente remunerada e os impostos pagos. 5) Combater a pirataria que é um crime cultural. 6) Reinstalar programas de cinema na escola. 7) Reflectir com as televisões sobre as suas obrigações, e também os seus deveres, para que contribuam ainda mais para a produção de obras que não sejam unicamente pensadas para o horário nobre. 8) Adaptar a cronologia dos media ao século XXI, para que cinema e audiovisual coabitem no interesse de todos, sem excluir ninguém.”
A referência ao “cinema francês e europeu” permite deduzir de onde provêm tais linhas programáticas — de França, claro. Mas não de um qualquer programa político. Onde estão, afinal, os políticos europeus (incluindo os franceses, criadores de um elaborado sistema de protecção do seu cinema nacional) que tenham enunciado princípios deste teor, com a mesma clareza e convicção?
Cada leitor terá a sua resposta. Digamos apenas que a apresentação de tais princípios provém de um lugar emblemático no mundo global do cinema, envolvendo a complexidade dos seus circuitos financeiros e o esplendor do seu património mitológico. A saber: o Festival de Cannes. Mais exactamente, são palavras de Thierry Frémaux, delegado-geral do certame (também director do Instituto Lumière, em Lyon), em entrevista à revista L’Obs, publicada no dia 11 de maio.
A entrevista serviu, antes do mais, para dar uma notícia que os cinéfilos tinham pressentido como inevitável: depois de vários adiamentos, a 73ª edição dos Festival de Cannes, marcada para esta altura (12-23 maio), foi cancelada. Não haverá sequer uma “versão” online do certame, já que, segundo Frémaux, um festival serve para “estarmos juntos”, abrindo a cada filme apresentado “uma aventura no grande ecrã”.
Estranhamente (ou não…), as sugestões programáticas de Frémaux geraram um eco débil, para não dizer nulo. E, no entanto, não é todos os dias que lemos ou ouvimos alguém a resumir com tal precisão o labirinto de temas e interrogações em que, aqui e agora, os filmes existem (ou não existem…). Lembrando a especificidade artística do cinema e, por isso, a importância da defesa dos respectivos postos de trabalho, Frémaux evoca mesmo a noção de povo sem que isso se confunda com tantas e tão fúteis formas de demagogia: “Temos de dar provas de pedagogia popular para que todos se comprometam na salvaguarda daquilo que tem um preço e um valor.”
Nada disto, entenda-se também, arrasta qualquer maniqueísmo “cultural” que acabe por ceder à estupidez “política” segundo a qual se trata de salvar a “pureza” europeia da “impureza” do cinema dos EUA. Ficamos, aliás, a saber curiosas notícias sobre o novo filme de Spike Lee, Da 5 Bloods, centrado num grupo de afro-americanos, veteranos do Vietname, já com 70 anos feitos, que decidem regressar aos cenários da guerra para esclarecer algumas pontas soltas das suas próprias memórias…
Produzido pela Netflix, o filme seria uma das grandes revelações do festival deste ano (extra-concurso, uma vez que Spike Lee iria assumir a presidência do júri oficial). O que, além do mais, nos leva a supor que o diferendo Cannes/Netflix — decorrente da resistência da plataforma de streaming a estrear muitos dos seus filmes nas salas escuras e dos consequentes protestos dos exibidores franceses — poderá estar a evoluir de forma interessante, “sem excluir ninguém”.
Para já, sabemos que Da 5 Bloods estará disponível na Netflix a partir de 12 de junho. E que, mais do que nunca, a “pedagogia popular” de Cannes merece ser pensada. Com as consequências políticas que tal pensamento implica.

quinta-feira, maio 21, 2020

Roger Waters: "Mother" a preto e branco

Afinal, as tensões entre Roger Waters e David Gilmour não estão sanadas — é uma história longa, contrastada, nem sempre edificante, que desembocou agora num video de Waters, lembrando que Gilmour não é "dono" dos Pink Floyd e que ele, embora tendo saído da banda em 1985, não pode ser rasurado da sua história [notícia: Rolling Stone].
Conflitos à parte, Waters deu-nos agora uma das mais belas peças musicais deste nosso confinamento: uma versão de Mother — do álbum The Wall (1979) —, além do mais parecendo projectar os impasses emocionais da canção no nosso assombrado presente. A preto e branco.

Mother should I build the wall?
Mother should I run for President?
Mother should I trust the government?
Mother will they put me in the firing mine?


quarta-feira, maio 20, 2020

Qual a relação do TikTok
com a herança de Walt Disney?

Que pensaria Walt Disney do TikTok? Se as viagens no tempo não acontecessem apenas nos filmes, seria interessante saber como o criador do Rato Mickey encararia as formas de grosseira manipulação a que, em nome da liberdade virtual, tem sido sujeita a sua querida personagem?
Eis algumas interrogações que se justificam face a uma curiosa e, por certo, sintomática notícia das esferas de poder dos grandes conglomerados mediáticos. A saber: Kevin Mayer, responsável pelo lançamento da plataforma de streaming Disney+, abandona a companhia de Mickey, Donald e Pluto para assumir as funções de CEO do TikTok, propriedade do conglomerado chinês ByteDance — pormenores nas páginas de The Hollywood Reporter.
É difícil encarar uma notícia deste teor como um banal efeito das dinâmicas do mercado de trabalho. Desde logo, porque nas altas esferas da Disney, Mayer terá sido recentemente preterido como possível sucessor de Bob Iger, em favor de Bob Chapek; depois, porque, para a ByteDance, se trata de consolidar a sua rapidíssima afirmação no mundo dos negócios, no sentido de contrariar também as especulações que, nos EUA, apontam o TikTok como um risco para a segurança nacional.
Em qualquer caso, o mais sintomático será o facto de, pelos vistos, ter deixado de haver diferença significativa (entenda-se: do ponto de vista da gestão administrativa) entre trabalhar com um património tão rico e diversificado como o que pertence à Disney e comandar uma aplicação de telemóvel que, no essencial, vive à custa dos filmes (?) de 15 segundos que milhões de pessoas colocam online para nos dar conta da sua arte de tropeçar em obstáculos caseiros ou de aplicar desodorizante nos sovacos...
Enfim, para Mayer, por certo o menos incomodado com especulações deste género, o nome "Disney" passou a ser apenas uma referência no seu currículo de sucesso. Mas seria mesmo interessante poder ouvir a opinião de Walt Disney, ele que idealizava um mundo em que "todos os nossos sonhos se pudessem tornar realidade" — era um mundo de negócios, sem dúvida, mas é duvidoso que o criador de Pinóquio e Fantasia estivesse a pensar em futilidades de 15 segundos.

terça-feira, maio 19, 2020

"Da 5 Bloods" / Spike Lee

Memórias e fantasmas da guerra do Vietname. Seja o que for, e como for, o novo filme de Spike Lee, o respectivo trailer possui uma energia contagiante — sem esquecer o impacto do poster: Da 5 Bloods estará na Netflix a partir do dia 12 de Junho.

segunda-feira, maio 18, 2020

Michel Piccoli (1925 - 2020)

HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti
Actor de todas as transfigurações, símbolo da produção francesa ao longo de mais de meio século, o actor Michel Piccoli faleceu a 12 de Maio (a notícia só foi divulgada no dia 18), vítima de um acidente vascular cerebral — contava 94 anos.
Foi, de facto, um actor de muitas e impressionantes personagens. Mas não apenas no sentido da "caracterização". Mesmo quando essas personagens o projectavam das zonas mais obscuras do factor humano, Piccoli não renegava esse factor, antes o sublinhava sem temer expor as suas insolúveis contradições.

A GRANDE FARRA (1973), de Marco Ferreri [Instagram]
UM QUARTO NA CIDADE (1982), de Jacques Demy [Instagram]
HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti [Instagram]
Com uma sólida experiência teatral (nunca abandonou os palcos), Piccoli possuía a arte rara de combinar a pertinência da pose com a requintada verbalização dos diálogos, nessa medida podendo funcionar com o mesmo à vontade no romanesco terminal de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard [video: 5 minutos iniciais], na féerie musical de As Donzelas de Rochefort (1967), de Jacques Demy, ou na farsa trágica Vocês Ainda Não Viram Nada (2012), de Alain Resnais.


Passou pelo realismo onírico de Buñuel, por exemplo em Belle de Jour (1967) ou O Charme Discreto da Burguesia (1972). Foi várias vezes cúmplice do humor desconcertante de Manoel de Oliveira, incluindo nesse título emblemático, porque suavemente confessional, que é Vou para Casa (2001). Transfigurou-se para satisfazer a lógica experimental de Leos Carax, em Má Raça (1986).
Mesmo com os inevitáveis altos e baixos de uma carreira de mais de duas centenas de títulos, Piccoli nunca desmentiu a sua condição de actor enigmático, sendo especialmente fascinante observar a sua "naturalidade" quando, à sua volta, todas as coordenadas — dramáticas, morais e até temporais — se vão metodicamente desfazendo. Exemplo supremo de tal postura poderá ser Dillinger Morreu (1969), de Marco Ferreri, uma crónica da vida privada que se projecta num insólito surrealismo — filme de absoluta excepção, temática & formal, que a Net, silenciosamente, coloca à nossa disposição.


>>> Obituário no jornal de Le Monde.

domingo, maio 17, 2020

TikTok: 15 segundos de fama

Charli D'Amelio [TikTok]
Assim vai o mundo: Charli D’Amelio, 16 anos, é a principal vedeta da nova rede social TikTok; os seus dotes de dançarina, em videos de 15 segundos, valem-lhe mais de 50 milhões de seguidores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio), com o título 'O admirável mundo do TikTok'.

TikTok: eis a nova moda virtual. Apresenta-se como uma rede social para partilha de videos de pequena duração (cerca de 15 segundos, na maior parte dos casos). Concebida pela ByteDance, uma empresa da China especializada em tecnologia da Internet, foi lançada em 2016 no mercado chinês com a designação Douyin. Entretanto, generalizou-se como TikTok, sendo recordista de downloads para os telemóveis de sistema iOS. Números redondos: há 800 milhões de pessoas a usar regularmente o TikTok.
A dimensão do fenómeno justifica que lhe prestemos alguma atenção, tentando compreender a especificidade da sua linguagem. Não se trata, entenda-se, de atrair generalizações moralistas que simplifiquem a evidente pluralidade interna de tais fenómenos, nem de sugerir que há uma espécie de lugar virginal a partir do qual é possível observá-los (no plano pessoal, devo dizer que, em tempos de confinamento, abri duas contas de Instagram, sem que o facto me suscite qualquer queixa ou protesto).
Acontece que os modelos dominantes de “comunicação” que podemos encontrar no TikTok vêm reforçar duas linhas de força da nossa “sociabilidade” virtual: primeiro, a redução do protagonista a uma militante caricatura de si próprio; segundo, a resistência implícita a qualquer forma de duração que ultrapasse o efeito acelerado e efémero de um clip publicitário. Decididamente, tornou-se impossível partilhar com alguém o prazer de assistir a duas horas de um filme de Hitchcock… Tudo isto, importa acrescentar, através da integração de instrumentos de manipulação das imagens (sobreposições, variações de velocidade, etc.) que reduzem a pessoa a uma cobaia virtual, partilhável como coisa fútil e descartável.
O texto de apresentação (de origem brasileira) disponível em várias plataformas portuguesas é revelador: “TikTok é uma comunidade de videos global. Com TikTok criar videos curtos se tornou ainda mais fácil. Grave e edite seus próprios videos com nossos efeitos especiais, filtros, stickers e muito mais. Depois é só compartilhar com o mundo seu talento.”
Eis uma ideologia de “comunicação” que promove a mais grosseira das utopias: o utilizador pode cortar o cabelo, fingir-se ilusionista ou aplicar desodorizante nos sovacos (não estou a inventar) porque está a… “compartilhar com o mundo seu talento”. Com um efeito perverso: qualquer contemplação de imagens que implique mais do que uns breves segundos é desvalorizada, prevalecendo o princípio pueril segundo o qual as imagens já nem sequer servem para lidar com os contrastes do mundo em que vivemos — são meros atropelos caricaturais a que não se atribui qualquer pertinência cognitiva, muito menos estética. O TikTok apela, assim, ao desenraizamento do utilizador, definido apenas através da sua performance no… TikTok.
É verdade que há figuras muito populares do “entertainment”, de Jimmy Fallon e Stephen Colbert a Jennifer Lopez ou Selena Gomez, que já aderiram ao TikTok, induzindo muitas especulações sobre a capacidade de a aplicação vir a gerar receitas astronómicas. Por exemplo: o tema de capa da edição de 6 de maio de “The Hollywood Reporter” não é o novo filme de Tom Cruise (que, já agora, vai ser rodado em órbita, na International Space Station), mas o… TikTok.
O universo de vedetas criado pelo TikTok está longe de ser uma mera duplicação do que existe nos domínios tradicionais do espectáculo. Assim, Selena Gomez tem 18 milhões de seguidores, o que, convenhamos, é quase penoso face às proezas da actual líder das estatísticas do TikTok, com 54 milhões: é ela Charli D’Amelio, simpática e talentosa adolescente americana de Norwalk, Connecticut (completou 16 anos no dia 1 de maio), especialista na invenção de novos passos de dança, em bem dispostas fatias de 15 segundos.
Em diversos sites de informação sobre as atribulações deste nosso admirável mundo, verifico que, tal como outras figuras do TikTok, Charli D’Amelio é definida como “social media personality”. Moral da história: os circuitos virtuais já foram promovidos à condição de criadores de “personalidades”.

sábado, maio 16, 2020

Chopin + Barenboim

Uma prenda da Deutsche Grammophon: a partir de 15 de Maio, quinzenalmente, a etiqueta alemã oferece um 'Momento Musical' com um dos artistas do seu vasto e fascinante catálogo. Primeira proposta: Daniel Barenboim interpreta o Estudo Op. 25, No.1, de Chopin — filmado na Pierre Boulez Saal, Berlim.

sexta-feira, maio 15, 2020

Alison Mosshart, "It Ain't Water"

Um novo álbum de The Kills está em laboração... Entretanto, em confinamento, Alison Mosshart tem andado, como ela diz [NME], a recuperar material arquivado, não editado. Daí as novidades: depois de Rise, It Ain't Water é o lado B do mesmo single, servido por um belo e austero teledisco a preto e branco.

quinta-feira, maio 14, 2020

Spike Lee, "New York, New York"

É uma carta de amor ao povo de Nova Iorque: Spike Lee dá-nos a ver a grande metrópole sob o efeito do COVID-19, convocando a canção-tema de New York, New York (1977), de Martin Scorsese, e utilizando a maravilhosa película Super 8 da Kodak. I wanna wake up in a city / that doesn't sleep...

quarta-feira, maio 13, 2020

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FOTOGRAFIAS_João Lopes

Moda + beleza + COVID-19

FOTO: Richard Bush / MODELO: Ajsa Movic
Document (Primavera/Verão 2020)
Como todas as publicações jornalísticas, também a Document, magazine de tendências culturais e de moda, está a viver tempos de confinamento, apostando em vencer as barreiras impostas pelo COVID-19. Sem que isso altere a regularidade e a singularidade das respectivas edições, como o prova o número de Primavera/Verão. Precisamente para avaliar o ponto da situação, o site models.com entrevistou Sarah Richardson e Lucia Pieroni, respectivamente responsáveis pelos departamentos de moda e beleza da Document. O resultado é uma interessante conversa por onde perpassam temas que vão desde a mutabilidade dos padrões de beleza até às futuras formas de organização do trabalho. Sem esquecer o valor da bondade humana — ou como diz Peroni: "Seja bondoso e lave as mãos."

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Cher canta "Chiquitita"

Aos 73 anos (celebra 74 a 20 de Maio), Cher lançou o seu primeiro single em língua espanhola: uma versão de Chiquitita, original dos ABBA que foi o primeiro single do álbum Voulez-Vous (1979). A canção retoma, assim, o seu papel de veículo em favor de acções humanitárias: foi lançada a 9 de Janeiro de 1979, no evento designado como 'Music for UNICEF Concert'; regressa agora ligada às acções desenvolvidas pela UNICEF no sentido de proteger as populações infantis do COVID-19 — notícia na Rolling Stone; teledisco aqui em baixo.

terça-feira, maio 12, 2020

Dylan — novo álbum a 19 de Junho

O 39º álbum de estúdio de Bob Dylan vai chamar-se Rough and Rowdy Ways — sai no dia 19 de Junho. Entretanto, podemos escutar mais uma magnífica canção, False Prophet, reafirmando uma velha sensibilidade não alinhada.

I’m the enemy of treason - the enemy of strife
I’m the enemy of the unlived meaningless life
I ain’t no false prophet - I just know what I know
I go where only the lonely can go

segunda-feira, maio 11, 2020

Defender as salas de cinema
— que políticas culturais?

1948 — RIO VERMELHO
1971 - A ÚLTIMA SESSÃO
No mundo do cinema, a defesa das salas escuras é uma questão que já vinha de trás, tendo sido agravada pela pandemia. Questão cultural, por excelência, ou melhor, de política cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Maio), com o título 'Por amor do cinema'.

Amar o cinema. Eis um valor que, de uma maneira ou de outra, persiste através da cinefilia. Um dos filmes mais genuinamente cinéfilos da minha geração conta uma história em que a própria definição de “juventude” envolve esse amor. Chama-se A Última Sessão, tem data de 1971 e foi realizado pelo grande, e tão esquecido, Peter Bogdanovich. Aliás, o título original é ainda mais esclarecedor, uma vez que se refere a uma “última sessão de cinema” (The Last Picture Show).
Baseando-se num romance de Larry McMurtry, Bogdanovich faz o retrato de uma cidadezinha esquecida do Texas que, no ano de 1951, se parecia ainda com os povoados dos “westerns” no meio do deserto. É nesse contexto de muitos desencantos que alguns rapazes escolhem como alternativa a vida militar e, nessa medida, a participação na guerra da Coreia. Sinal directo, cruelmente simbólico, da desagregação de todo um modo de vida tradicional é o encerramento da única sala de cinema da cidade, o velhinho Royal. Na “última sessão”, precisamente, é exibido um clássico do “western”, afinal, na altura, um objecto contemporâneo, produzido apenas três anos antes: Rio Vermelho (1948), com John Wayne e Montgomery Clift, sob a direcção de Howard Hawks.
Com ou sem nostalgia, neste tempo em que a saúde pública é uma prioridade indiscutível, a questão da sobrevivência das salas de cinema volta a estar na ordem do dia. As regras de distanciamento social suspenderam, literalmente, a exibição cinematográfica, desde os tradicionais circuitos comerciais até muitos festivais programados para todos os recantos do planeta.
O certo é que as alternativas criadas ou consolidadas na Internet — os muitos modelos de plataformas de “streaming” — não são uma resposta directa à situação que estamos a viver. Dito de outro modo: o actual “boom” dessas plataformas (cujas virtudes não estão em causa) não é uma consequência unilateral da pandemia, uma vez que, como bem sabemos, a última década tem sido marcada pelo desenvolvimento exponencial do consumo de filmes online. De acordo com estatísticas recentes, a Netflix, pedra de toque de toda esta conjuntura, tem 182 milhões de assinantes em todo o mundo (incluindo 69 milhões nos EUA).
A história do cinema pode ser contada também como uma colecção de crises, entre a euforia e a depressão, protagonizadas pelas salas. Lembremos a eclosão do som, em finais da década de 1920, e a dramática reconversão técnica a que todos os cinemas foram obrigados. Ou, mais recentemente, a passagem da projecção com cópias em película para os suportes digitais.
[1946 - 1984]
Um pouco por toda a parte, as políticas culturais chegam quase sempre atrasadas a estas crises. Por uma razão de fundo que, de alguma maneira, a nossa “modernidade” agravou: fenómenos como a digitalização do cinema e a proliferação de circuitos online começaram por ser encarados como evoluções “meramente” técnicas, ignorando-se a sua dimensão (também) eminentemente cultural.
Enfrentar a hipótese de desmembramento do circuito das salas de cinema (ou a sua redução a mínimos “decorativos”) é, afinal, uma das prioridades culturais do momento. Dizê-lo não significa minimizar os muitos dramas que estão a ser vividos nos mais variados domínios artísticos; numa sociedade intrinsecamente democrática, nenhum desses domínios é secundário ou descartável.
Acontece que o cinema — entenda-se: os filmes vistos numa sala escura — constitui um dos últimos redutos que, apesar de tudo, resiste à formatação da cultura audiovisual dominante. Não se trata de opor cultura cinematográfica e cultura televisiva — será preciso recordar que os respectivos laços artísticos e financeiros se tornaram fundamentais? Trata-se, isso sim, de lembrar que o carácter instrumental, muitas vezes banal, do uso dos novos ecrãs (computador, telemóvel) não é uma boa razão para aniquilar uma cultura cinematográfica de mais de um século ligada às salas escuras, quer dizer, vivida através dos seus ecrãs. Desta vez, se tivermos uma “última sessão”, será sem alternativa.

Little Richard (1932 - 2020)

c. 1956 [Wikipedia]
Com a morte de Little Richard (dia 9 de Maio, em Nashville, contava 97 anos) desapareceu um dos pais do rock'n'roll. O modo como ao longo da década de 50 transformou o território da música popular acabou por valer-lhe o cognome de "The Originator". Muito para lá dos títulos emblemáticos da sua longa carreira (Lucille, Tutti Frutti, Long Tall Sally, etc.), ele foi um arquitecto de muitos cruzamentos e contaminações, do gospel à soul, afirmando uma identidade criativa também fundamental na história política dos afro-americanos.
Eis algumas pistas para (re)descobrir o seu imenso legado.

>>> Obituário na Billboard.
>>> Tributo de Bob Dylan.
>>> Little Richard no Rock & Roll Hall of Fame.
>>> 'Quando John Waters se encontrou com Little Richard' [The Guardian].
>>> Little Richard no AllMusic.

>>> Registo televisivo de Lucille (1957) + Let the Good Times Roll na 3ª edição dos Grammy (12 Abril 1961) + programa da Granada TV, com The Shirelles, gravado em Novembro 1963, transmitido a 8 Janeiro 1964.