1948 — RIO VERMELHO |
1971 - A ÚLTIMA SESSÃO |
No mundo do cinema, a defesa das salas escuras é uma questão que já vinha de trás, tendo sido agravada pela pandemia. Questão cultural, por excelência, ou melhor, de política cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Maio), com o título 'Por amor do cinema'.
Amar o cinema. Eis um valor que, de uma maneira ou de outra, persiste através da cinefilia. Um dos filmes mais genuinamente cinéfilos da minha geração conta uma história em que a própria definição de “juventude” envolve esse amor. Chama-se A Última Sessão, tem data de 1971 e foi realizado pelo grande, e tão esquecido, Peter Bogdanovich. Aliás, o título original é ainda mais esclarecedor, uma vez que se refere a uma “última sessão de cinema” (The Last Picture Show).
Baseando-se num romance de Larry McMurtry, Bogdanovich faz o retrato de uma cidadezinha esquecida do Texas que, no ano de 1951, se parecia ainda com os povoados dos “westerns” no meio do deserto. É nesse contexto de muitos desencantos que alguns rapazes escolhem como alternativa a vida militar e, nessa medida, a participação na guerra da Coreia. Sinal directo, cruelmente simbólico, da desagregação de todo um modo de vida tradicional é o encerramento da única sala de cinema da cidade, o velhinho Royal. Na “última sessão”, precisamente, é exibido um clássico do “western”, afinal, na altura, um objecto contemporâneo, produzido apenas três anos antes: Rio Vermelho (1948), com John Wayne e Montgomery Clift, sob a direcção de Howard Hawks.
Com ou sem nostalgia, neste tempo em que a saúde pública é uma prioridade indiscutível, a questão da sobrevivência das salas de cinema volta a estar na ordem do dia. As regras de distanciamento social suspenderam, literalmente, a exibição cinematográfica, desde os tradicionais circuitos comerciais até muitos festivais programados para todos os recantos do planeta.
O certo é que as alternativas criadas ou consolidadas na Internet — os muitos modelos de plataformas de “streaming” — não são uma resposta directa à situação que estamos a viver. Dito de outro modo: o actual “boom” dessas plataformas (cujas virtudes não estão em causa) não é uma consequência unilateral da pandemia, uma vez que, como bem sabemos, a última década tem sido marcada pelo desenvolvimento exponencial do consumo de filmes online. De acordo com estatísticas recentes, a Netflix, pedra de toque de toda esta conjuntura, tem 182 milhões de assinantes em todo o mundo (incluindo 69 milhões nos EUA).
A história do cinema pode ser contada também como uma colecção de crises, entre a euforia e a depressão, protagonizadas pelas salas. Lembremos a eclosão do som, em finais da década de 1920, e a dramática reconversão técnica a que todos os cinemas foram obrigados. Ou, mais recentemente, a passagem da projecção com cópias em película para os suportes digitais.
[1946 - 1984] |
Um pouco por toda a parte, as políticas culturais chegam quase sempre atrasadas a estas crises. Por uma razão de fundo que, de alguma maneira, a nossa “modernidade” agravou: fenómenos como a digitalização do cinema e a proliferação de circuitos online começaram por ser encarados como evoluções “meramente” técnicas, ignorando-se a sua dimensão (também) eminentemente cultural.
Enfrentar a hipótese de desmembramento do circuito das salas de cinema (ou a sua redução a mínimos “decorativos”) é, afinal, uma das prioridades culturais do momento. Dizê-lo não significa minimizar os muitos dramas que estão a ser vividos nos mais variados domínios artísticos; numa sociedade intrinsecamente democrática, nenhum desses domínios é secundário ou descartável.
Acontece que o cinema — entenda-se: os filmes vistos numa sala escura — constitui um dos últimos redutos que, apesar de tudo, resiste à formatação da cultura audiovisual dominante. Não se trata de opor cultura cinematográfica e cultura televisiva — será preciso recordar que os respectivos laços artísticos e financeiros se tornaram fundamentais? Trata-se, isso sim, de lembrar que o carácter instrumental, muitas vezes banal, do uso dos novos ecrãs (computador, telemóvel) não é uma boa razão para aniquilar uma cultura cinematográfica de mais de um século ligada às salas escuras, quer dizer, vivida através dos seus ecrãs. Desta vez, se tivermos uma “última sessão”, será sem alternativa.