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Thierry Frémaux |
O novo filme de Spike Lee não poderá estar em Cannes porque… não haverá Festival de Cannes. Para Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, este é um bom momento para repensar o futuro do próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Maio), com o título 'A política de Cannes'.
Durante e, por certo, após a pandemia, vale a pena tentar enunciar algumas ideias programáticas para defesa dos filmes. Entenda-se: não apenas medidas transitórias para lidar com os dramas gerados pelo confinamento, antes ideias que possam contribuir para esclarecer e reforçar o futuro do cinema.
Eis oito princípios possíveis: “1) Repensar os circuitos de financiamento. 2) Proteger os criadores, reforçando os direitos de autor. 3) Fazer com que as plataformas estrangeiras contribuam significativamente para o financiamento do cinema francês e europeu. 4) Negociar arduamente com os GAFA (Google + Apple + Facebook + Amazon) para que a utilização das obras seja correctamente remunerada e os impostos pagos. 5) Combater a pirataria que é um crime cultural. 6) Reinstalar programas de cinema na escola. 7) Reflectir com as televisões sobre as suas obrigações, e também os seus deveres, para que contribuam ainda mais para a produção de obras que não sejam unicamente pensadas para o horário nobre. 8) Adaptar a cronologia dos media ao século XXI, para que cinema e audiovisual coabitem no interesse de todos, sem excluir ninguém.”

Cada leitor terá a sua resposta. Digamos apenas que a apresentação de tais princípios provém de um lugar emblemático no mundo global do cinema, envolvendo a complexidade dos seus circuitos financeiros e o esplendor do seu património mitológico. A saber: o Festival de Cannes. Mais exactamente, são palavras de Thierry Frémaux, delegado-geral do certame (também director do Instituto Lumière, em Lyon), em entrevista à revista L’Obs, publicada no dia 11 de maio.
A entrevista serviu, antes do mais, para dar uma notícia que os cinéfilos tinham pressentido como inevitável: depois de vários adiamentos, a 73ª edição dos Festival de Cannes, marcada para esta altura (12-23 maio), foi cancelada. Não haverá sequer uma “versão” online do certame, já que, segundo Frémaux, um festival serve para “estarmos juntos”, abrindo a cada filme apresentado “uma aventura no grande ecrã”.
Estranhamente (ou não…), as sugestões programáticas de Frémaux geraram um eco débil, para não dizer nulo. E, no entanto, não é todos os dias que lemos ou ouvimos alguém a resumir com tal precisão o labirinto de temas e interrogações em que, aqui e agora, os filmes existem (ou não existem…). Lembrando a especificidade artística do cinema e, por isso, a importância da defesa dos respectivos postos de trabalho, Frémaux evoca mesmo a noção de povo sem que isso se confunda com tantas e tão fúteis formas de demagogia: “Temos de dar provas de pedagogia popular para que todos se comprometam na salvaguarda daquilo que tem um preço e um valor.”
Nada disto, entenda-se também, arrasta qualquer maniqueísmo “cultural” que acabe por ceder à estupidez “política” segundo a qual se trata de salvar a “pureza” europeia da “impureza” do cinema dos EUA. Ficamos, aliás, a saber curiosas notícias sobre o novo filme de Spike Lee, Da 5 Bloods, centrado num grupo de afro-americanos, veteranos do Vietname, já com 70 anos feitos, que decidem regressar aos cenários da guerra para esclarecer algumas pontas soltas das suas próprias memórias…
Produzido pela Netflix, o filme seria uma das grandes revelações do festival deste ano (extra-concurso, uma vez que Spike Lee iria assumir a presidência do júri oficial). O que, além do mais, nos leva a supor que o diferendo Cannes/Netflix — decorrente da resistência da plataforma de streaming a estrear muitos dos seus filmes nas salas escuras e dos consequentes protestos dos exibidores franceses — poderá estar a evoluir de forma interessante, “sem excluir ninguém”.
Para já, sabemos que Da 5 Bloods estará disponível na Netflix a partir de 12 de junho. E que, mais do que nunca, a “pedagogia popular” de Cannes merece ser pensada. Com as consequências políticas que tal pensamento implica.