segunda-feira, maio 18, 2020

Michel Piccoli (1925 - 2020)

HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti
Actor de todas as transfigurações, símbolo da produção francesa ao longo de mais de meio século, o actor Michel Piccoli faleceu a 12 de Maio (a notícia só foi divulgada no dia 18), vítima de um acidente vascular cerebral — contava 94 anos.
Foi, de facto, um actor de muitas e impressionantes personagens. Mas não apenas no sentido da "caracterização". Mesmo quando essas personagens o projectavam das zonas mais obscuras do factor humano, Piccoli não renegava esse factor, antes o sublinhava sem temer expor as suas insolúveis contradições.

A GRANDE FARRA (1973), de Marco Ferreri [Instagram]
UM QUARTO NA CIDADE (1982), de Jacques Demy [Instagram]
HABEMUS PAPAM (2011), de Nanni Moretti [Instagram]
Com uma sólida experiência teatral (nunca abandonou os palcos), Piccoli possuía a arte rara de combinar a pertinência da pose com a requintada verbalização dos diálogos, nessa medida podendo funcionar com o mesmo à vontade no romanesco terminal de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard [video: 5 minutos iniciais], na féerie musical de As Donzelas de Rochefort (1967), de Jacques Demy, ou na farsa trágica Vocês Ainda Não Viram Nada (2012), de Alain Resnais.


Passou pelo realismo onírico de Buñuel, por exemplo em Belle de Jour (1967) ou O Charme Discreto da Burguesia (1972). Foi várias vezes cúmplice do humor desconcertante de Manoel de Oliveira, incluindo nesse título emblemático, porque suavemente confessional, que é Vou para Casa (2001). Transfigurou-se para satisfazer a lógica experimental de Leos Carax, em Má Raça (1986).
Mesmo com os inevitáveis altos e baixos de uma carreira de mais de duas centenas de títulos, Piccoli nunca desmentiu a sua condição de actor enigmático, sendo especialmente fascinante observar a sua "naturalidade" quando, à sua volta, todas as coordenadas — dramáticas, morais e até temporais — se vão metodicamente desfazendo. Exemplo supremo de tal postura poderá ser Dillinger Morreu (1969), de Marco Ferreri, uma crónica da vida privada que se projecta num insólito surrealismo — filme de absoluta excepção, temática & formal, que a Net, silenciosamente, coloca à nossa disposição.


>>> Obituário no jornal de Le Monde.