quinta-feira, fevereiro 28, 2019

Memórias chilenas de Nanni Moretti

Santiago, Italia — a cidade capital do Chile, o país de onde vem o realizador do filme. Nanni Moretti regressa às matérias documentais (recorde-se o notável La Cosa, produção de 1990 sobre a crise identitária do Partido Comunista Italiano), desta vez para evocar o golpe de Augusto Pinochet contra Salvador Allende, em 1973, e em particular o papel dos diplomatas italianos que, na sua embaixada, acolheram muitos opositores do novo regime que acabaram por encontrar condições de vida em Itália.
O filme teve estreia italiana em finais de 2018, tendo chegado agora ao mercado de França — este é o trailer francês.

Scorsese também está na Netflix

Martin Scorsese também está na Netflix. Ou seja: já sabíamos que o seu novo projecto, The Irishman, com Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Harvey Keitel, estava a ser produzido pela plataforma de streaming (que, entretanto, conseguiu obter três Oscars para Roma, de Alfonso Cuarón). O que ainda não sabíamos é que há sinais, porventura vagos, mas reveladores, de que a Netflix está disposta a lançar The Irishman à maneira "tradicional", procurando uma significativa ocupação de salas.
Em jogo está um produto com o qual a Netflix visa nada mais nada menos que aquilo que lhe "escapou" com Roma: o Oscar de melhor filme. Isto ao mesmo tempo que algumas vozes da comunidade de Hollywood, a começar por Steven Spielberg, têm reforçado a sua veemente resistência a formas de difusão que secundarizem as salas [The Hollywood Reporter]. O desafio é tanto maior quanto a recente entrada da Netflix na MPAA implica, para além do seu simbolismo, a aceitação das regras por que se regem os grandes estúdios.
Para já, temos um trailer, tão breve quanto fascinante, cuja promoção inverte a formulação tradicional. Assim, não se trata de um filme da Netflix "em salas seleccionadas", mas sim de um filme que estará "nas salas este Outono" — "e na Netflix". Things change...

quarta-feira, fevereiro 27, 2019

Michael Cohen vs. Donald Trump

Para que fique registado: este é o video (de mais de sete horas de duração) disponibilizado por The New York Times, correspondente ao interrogatório de Michael Cohen, ex-advogado de Donald Trump, no Congresso dos EUA — ou como a cena política existe, hoje em dia, como acontecimento televisivo ou tele-jornalístico.

Os políticos portugueses e os seus cartazes

ALBRECHT DÜRER
Auto-retrato
1498
Como é que os políticos se representam através das imagens da própria propaganda política? Que visão do mundo se exprime, por exemplo, nos seus cartazes? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro).

Há dias, no final do “Jornal 2” (RTP2), Sandra Sousa conduziu uma breve e muito interessante conversa com Ricardo Pais. O pretexto imediato era a sua encenação da peça Oleanna, de David Mamet (Teatro Sá da Bandeira, Porto, até 17 de Março).
Foi com especial prazer que escutei as palavras concisas de Ricardo Pais sobre o texto de Mamet, explicando, em particular, a sua tão peculiar (e também tão inconfundível) arte do diálogo e sublinhando o desafio que representa para os actores. Para além disso, registo o modo preciso e eloquente com que lembrou uma verdade muito incómoda. A saber: o desinvestimento do Estado na chamada área cultural.
O assunto é árduo e, como é evidente, não “cabia” nos poucos minutos daquela conversa televisiva (nem nas linhas deste texto). Até porque se corre sempre o risco de esvaziar a difícil arte de fazer política, favorecendo a ideia simplista segundo a qual se trata apenas de distinguir os governos que investiram “mais” daqueles que investiram “menos”... e sabemos bem que a cena político-mediática está saturada de debates (?) desse género em que quase todos, de todos os quadrantes políticos, parecem apenas empenhados em encontrar algum radioso soundbyte.
Não querendo fazer extrapolações abusivas a partir das palavras de Ricardo Pais, direi apenas, em termos pessoais, que me parece que o desinvestimento atrás referido está longe de ser meramente financeiro. É, acima de tudo, um elemento estrutural de um universo político, direitas e esquerdas confundidas, que há muito desistiu de pensar culturalmente o mundo.
David Mamet
Há excepções individuais, sem dúvida. Hoje como em décadas anteriores da nossa vida democrática. Mas também não se trata de multiplicar o simplismo, propondo uma espécie de “quadro de honra” no interior da classe política. Trata-se, isso sim, de perguntar como é que as entidades políticas que nos governam, já governaram ou podem vir a governar, pensam a cultura do país. Mais do que isso: como pensam culturalmente o país.
Será uma derivação esquemática, mas confesso que não pude deixar de recordar estes temas e dúvidas ao contemplar os cartazes que, preparando os próximos actos eleitorais, já começaram a proliferar nas ruas das nossas cidades. E perguntar: como é que os nossos políticos pensam as imagens? Ou apenas: como é que pensam as suas imagens?
Não tenho gosto nenhum em dizê-lo, mas receio que não pensem em nada que tenha a ver com a representação do mundo à sua volta — a começar pela representação de si próprios. Mais uma vez direitas e esquerdas confundidas, todos parecem obedecer aos conceitos criativos (?) de profissionais do marketing que, há anos, os fixaram num cliché único e unívoco: coloca-se uma foto tipo passe do político e ilustra-se com uma frase mais ou menos militante e apelativa.
Acima de tudo, importa que o fundo seja uma cor uniforme, pastel de preferência, não agressiva. Dito de outro modo: não há fundo representado (ou representável) para a imagem do político porque ninguém pensa, ou quer pensar, o contexto em que tudo isto está a acontecer.
Bem sei que a transformação das nossas vidas (já agora, se possível, para melhor) não se faz com cartazes nem se organiza com palavras de ordem. Ainda assim, quando os protagonistas da política acreditam que são aqueles cartazes que vão motivar os portugueses, contrariando, por exemplo, os seus hábitos abstencionistas, sou levado a pensar que há neles a candura chique de quem gosta de proclamar que “vivemos num mundo de imagens”, mas que nunca dedicou um escasso minuto do seu tempo a pensar o que isso pode querer dizer. Ou significar.

terça-feira, fevereiro 26, 2019

Spike Lee: palavras & publicidade

Vivemos no tempo da inscrição — entenda-se: da proliferação de suportes para as mais variadas formas de escrita. De tal modo que os criadores mais ousados não hesitam em ocupar espaços mais ou menos atípicos para escrever/inscrever as suas mensagens. Veja-se o metódico filme publicitário que Spike Lee dirigiu para a Coach, uma marca de malas de mão e artigos de luxo. Nele encontramos o actor Michael B. Jordan (Fruitvale Station: A Última ParagemCreed: O Legado de Rocky, Black Panther, etc.) numa demanda que envolve a celebração das palavras certas.
Num notável filme de 1989, entre nós lançado como Não Dês Bronca, Spike Lee encontrou o seu lema: do the right thing. Talvez seja a altura de acrescentar: write the right thing.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Lady Gaga & Bradley Cooper

Numa cerimónia de Oscars pouco (e mal) pensada para a paisagem específica da televisão, a canção Shallow, que viria a ganhar na respectiva categoria, foi a excepção que confirmou a regra: através da cumplicidade do piano, Bradley Cooper e Lady Gaga expõem-se numa delicada química emocional, prolongando a vibração das suas personagens em Assim Nasce uma Estrela.

A democracia dos Oscars

Em tempos de muitas atribulações da identidade americana, a vitória de Green Book nos Oscars referentes à produção de 2018 envolve uma muito básica, mas nada banal, muito menos indiferente, celebração democrática:
— o filme de Peter Farrelly nasce de uma reavaliação crítica, contra todos os maniqueísmos, das relações entre brancos e negros;
— ao mesmo tempo, a vitória de Roma como melhor filme estrangeiro relança a pluralidade cultural como valor intrínseco de Hollywood, afinal presente em toda a sua históra de mais de um século;
— se Roma, enquanto produto da Netflix, representa também a vitória das novas matrizes decorrentes das plataformas de streaming, Green Book refaz e relança valores enraizados em modelos clássicos de narrativa — o futuro próximo do cinema desenhar-se-á através de um ziguezague, de uma só vez material e simbólico, entre essas duas componentes.

>>> Lista de premiados nos Oscars/2019.

"Roma" — melhor filme estrangeiro

A vitória de Roma como melhor filme estrangeiro é, por si só, o sintoma das convulsões por que está a passar o mundo global do cinema — um objecto produzido por uma plataforma de streaming (Netflix), realizado por um mexicano (Alfonso Cuarón), recuperando um modelo melodramático encenado a preto e branco... Para o melhor ou para o pior, as fronteiras clássicas desapareceram. Que fronteiras? Dos filmes, do dinheiro dos filmes, dos espectadores para os filmes.

domingo, fevereiro 24, 2019

Stanley Donen (1924 - 2019)

Nunca ganhou um Oscar competitivo, tendo recebido um prémio honorário da Academia de Hollywood em 1998: Stanley Donen, personalidade nuclear na história clássica do género musical, faleceu no dia 21 de Fevereiro em Nova Iorque — contava 94 anos.
A sua condição de realizador de Um Dia em Nova Iorque (1949) e Serenata à Chuva (1952) seria suficiente para o colocar num lugar de especialíssima evidência no cinema americano das décadas de 40/50. O facto de nos dois casos ter partilhado a realização com Gene Kelly (também líder de ambos os elencos) é revelador: a dupla de encenadores — Donen tinha também formação específica na área da dança e provas dadas como coreógrafo de teatro e cinema — revolucionou o musical, quer na exploração dos recursos de estúdio, quer na utilização de cenários urbanos.
Para além do musical, foi sempre um explorador apaixonado das nuances do melodrama, nomeadamente em Indiscreto (1958), Charada (1963) e Caminho para Dois (1967); em 1974, assinou uma adaptação tão desconcertante quanto fascinante de O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry. Em 1996, Stephen M. Silverman publicou a biografia Dancing on the Ceiling: Stanley Donen and His Movies — o título alude a uma célebre cena de Casamento Real (1951) em que a espantosa conjugação de coreografia e cenografia faz com que Fred Astaire dance no tecto de uma sala.

>>> Trailer de Um Dia em Nova Iorque.

>>> Fred Astaire em Casamento Real.

>>> Canção Two for the Road, composta por Henry Mancini para Caminho para Dois.

>>> Cena de O Principezinho, com Steven Warner (Principezinho) e Bob Fosse (Cobra).

>>> Oscar honorário para Stanley Donen, entregue por Martin Scorsese.

>>> Obituário no New York Times.
>>> Extractos da biografia de Stanley Donen, por Stephen M. Silverman.

À espera dos Oscars
— SOUND + VISION Magazine [ hoje ]

Pela 91ª vez, Hollywood vai atribuir os seus lendários prémios: à espera dos Oscars, comentamos o panorama dos nomeados, revisitando também algumas memórias da história das estatuetas douradas — será poucas horas antes da cerimónia de Los Angeles (madrugada de 24 para 25).

* FNAC / Chiado: hoje, 24 Fevereiro (18h30)

sábado, fevereiro 23, 2019

Que futuro para a cinefilia?

O cinema passou a existir entre a tradição das salas escuras e o desenvolvimento exponencial de plataformas de “streaming” como a Netflix: resta saber que novos espectadores estão a nascer através da nova idade das imagens e dos sons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'O cinema do futuro passa pela Netflix... mas não só'.

Lembram-se de Apollo 13, o filme de 1995, com Tom Hanks, que evoca a dramática missão lunar que não chegou ao seu destino? Alguns meses depois da sua estreia, Reed Hastings, um matemático, então gestor da empresa de informática Pure Software, alugou uma cópia VHS do filme numa loja Blockbuster da cidade de Santa Cruz, na Califórnia. Acontece que excedeu o prazo do aluguer — o seu atraso traduziu-se numa multa de 40 dólares (cerca de 35 euros à cotação actual).
A veracidade desta história tem sido muito disputada; há até quem sugira que foi o próprio Hastings que a inventou como recurso estratégico de argumentação. Qual é, então, a moral da história? Pois bem, estavam criadas as condições para conceber um modelo de negócio que permitisse aos consumidores ver os filmes em suas casas sem estarem dependentes de idas regulares a um clube de vídeo.
O VHS vivia o derradeiro capítulo do seu período de glória, surgindo o DVD no mercado dos EUA a 31 de Março de 1997; poucos meses mais tarde, a 29 de Agosto, Hastings e o seu amigo Marc Randolph, empresário na área do marketing, fundavam a Netflix. Com que objectivo? Venda e aluguer de DVD pelo correio.
A empresa foi-se transfigurando: em 1998, era já um site de aluguer de filmes; em 2007, inaugurou um serviço de streaming na Internet; em 2010, começou a expandir-se para além dos EUA, chegando ao Canadá; em 2013, iniciou a difusão do primeiro conteúdo de produção própria (a série House of Cards). Em 2019, não é possível especular sobre o futuro do cinema sem convocar a Netflix.
Acessível em quase todos os países do mundo (China, Coreia do Norte e Irão são algumas das excepções), a Netflix está à beira de chegar aos 140 milhões de assinantes, produzindo anualmente mais de uma centena de filmes e séries. Neste momento, a sua bandeira universal é o filme Roma, de Alfonso Cuarón, um verdadeiro “papa-prémios”, dos Globos de Ouro de Hollywood aos BAFTA britânicos, perfilando-se como um dos principais favoritos na 91ª edição dos Oscars (24 de Fevereiro).
Há outra maneira de dizer tudo isto: para o melhor e para o pior, o modelo dominante do consumidor de cinema, que foi o modelo do século XX, mudou de forma drástica ao longo das primeiras duas décadas do século XXI. Para o melhor, porque, de facto, a acessibilidade dos filmes — do mais remoto clássico de Marlene Dietrich aos títulos de culto do cinema independente, passando pelas obras-primas de Charles Chaplin ou Ingmar Bergman — aumentou de modo exponencial; para o pior, porque estamos a assistir à metódica decomposição de uma cultura cinéfila que, ao longo de um século, celebrou a sala escura como lugar sagrado de descoberta e contemplação dos filmes.
Na mais pessimista avaliação deste estado de coisas, podemos mesmo considerar que há muitos espectadores das gerações mais jovens que estão a ser sujeitos a um processo de agressiva (des)educação. No limite mais cruel, tornaram-se indiferentes à verdade primordial do espectáculo: é um facto que podem ter Lawrence da Arábia (1962) ou 2001: Odisseia no Espaço (1968) a passar no sedutor ecrã do seu telemóvel, mas movem-se num sistema de consumo que tende a apagar os prazeres primitivos da memória. Como se andássemos a coleccionar cromos das obras-primas de Rembrandt, ignorando que aquelas pinturas existem com diferentes dimensões e uma outra verdade material...
Perturbante encruzilhada. Mesmo com o seu gigantismo e poder de difusão, a Netflix é apenas um dos elementos a considerar face à complexidade do que está em jogo. Desde logo, porque as plataformas de “streaming” constituem o palco primordial de algumas das mais aguerridas lutas económicas (entenda-se: de poder audiovisual) que, de uma maneira ou de outra, irão condicionar o cinema do futuro.
O caso dos estúdios Disney é revelador. O império do Rato Mickey, em tudo e por tudo associado à história e à mitologia das tradicionais salas de cinema, irá lançar no mês de Setembro, nos EUA, o seu próprio serviço de “streaming” (com a designação Disney+). Para além do património imenso dos seus filmes, a Disney contará com os produtos das suas aquisições dos últimos anos, dos estúdios de animação Pixar à 20th Century Fox, passando pela Marvel Entertainment e a Lucasfilm (ex-George Lucas, berço criativo da saga Star Wars).
E somos tentados a recuperar um velho simbolismo: será que estes confrontos entre entidades tão poderosas estão a colocar em causa a sobrevivência do “cinema de autor”?
Enfim, abrimos uma caixinha de Pandora quando formulamos tal questão. É verdade que a história nos ensina que sempre existiu um contraste mais ou menos óbvio entre os produtos anónimos, que se limitam a aplicar fórmulas estereotipadas de narrativa, e os filmes que nascem de inconfundíveis visões pessoais do mundo (e, claro, do próprio cinema).
Mas não é menos verdade que nada justifica que associemos o mais aguerrido poder económico ao esvaziamento de tais visões. Exemplo? Roma, esse diamante cinematográfico com que a Netflix, com toda a legitimidade, está a tentar arrebatar o seu primeiro Oscar. Haverá filme mais pessoal e intimista? Para mais, a preto e branco...
Todas estas convulsões questionam, implicitamente, um domínio que, quase sempre, se tem mantido ausente (ou se ausentou) de tão urgentes reflexões. Ou seja: as chamadas televisões generalistas.
Não se trata, entenda-se, de relançar a tradicional questão em torno da “qualidade” dos produtos que tais televisões geram ou difundem. Trata-se, isso sim, de compreender que o modelo clássico do espectador de televisão também foi desaparecendo do espectro do consumo. Tal como o “streaming” modificou os hábitos dos espectadores de filmes, também as matrizes de programação ligadas a horários estáveis (com programas “típicos” em cada momento do dia ou da noite) estão condenadas a desaparecer.
Nesta perspectiva, importa reconhecer que “cinema” e “televisão” estão a atravessar um processo de crescente contaminação pelos circuitos da Internet. O protagonismo de entidades como a Netflix é um inequívoco sintoma de tal processo, ao mesmo tempo reforçando a importância — cultural, económica e simbólica — de defesa do universo clássico das salas.
Do ponto de vista político, abre-se uma paisagem de questões e perplexidades que não pode ser enfrentada apenas através das funções de regulação que, tradicionalmente, as entidades políticas se atribuem. Regular o quê? As licenças dos operadores? O equilíbrio das respectivas oportunidades? A circulação dos conteúdos?
Sim, sem dúvida. E há muito por esclarecer nesse campo, sendo o Estado, idealmente, um árbitro tanto quanto possível equidistante de todos os protagonistas. Mas seria uma ingenuidade, de uma só vez política e cultural, pensar que nas nossas sociedades democráticas se pode lidar com tudo isso sem repensar de alto a baixo a educação dos jovens (e dos adultos, por certo) para a nova idade das imagens e sons em que já entrámos. O que distingue um bom de um mau espectador nada tem a ver com o ser ou não ser assinante da Netflix: é a capacidade de sentir e pensar para além das rotinas do próprio consumo.

Sequeira Costa (1929 - 2019)

Figura maior da história da música, o pianista Sequeira Costa faleceu no dia 21 de Fevereiro nos EUA, onde residia, vítima de cancro — contava 89 anos.
Nascido em Angola, foi aluno de Vianna da Motta, tendo sido galardoado, aos 22 anos, com o Prémio Internacional Marguerite Long (Paris); cinco anos mais tarde, fundou o Concurso Internacional de Música de Lisboa Vianna da Motta. Com especial fixação na obra de Bach, a sua formação clássica levou-o a explorar todas as nuances de compositores como Chopin, Schumann, Rachmaninov e Beethoven — gravou as integrais para piano e orquestra de Schumann, Rachmaninov e Chopin. Desde 1976, foi professor de piano na Universidade do Kansas, sendo também especialmente reconhecido pelas suas qualidades de pedagogo.

>>> Sonata op. 57 "Appassionata", de Ludwig van Beethoven + Por Amor ao Piano (2008), documentário sobre Sequeira Costa da autoria de Joaquim Vieira.




quinta-feira, fevereiro 21, 2019

The Chemical Brothers + Gondry x 2

Velho aliado de The Chemical Brothers, o realizador francês Michel Gondry surge a assinar um novo teledisco do duo inglês, desta vez contando com a colaboração do irmão, Olivier Gondry. O tema Got To Keep On pertence a um novo álbum (No Geography, 12 Abril) e surge encenado como uma aventura de corpos em insólita transfiguração — dança concreta, efeito abstracto.

terça-feira, fevereiro 19, 2019

Karl Lagerfeld (1933 - 2019)

A boneca Barbie concebida por Karl Lagerfeld em 2014 (apenas 999 unidades foram produzidas) condensa de forma eloquente a lógica da sua sofisticada energia criativa e também a sua postura no universo da moda: o objecto artístico, mesmo quando integra os clichés do mundo, remete-nos sempre para a figura, a pose e a identidade do seu criador.
Falecido a 19 de Fevereiro, em Paris, contava 85 anos, o alemão Lagerfeld foi, desde 1983, o director criativo da Chanel. Para além do universo específico da moda, o seu trabalho marcou as formas de encenação e percepção de masculino e feminino, pressentindo-se nos seus modelos uma vocação para a pompa que não excluía, antes pelo contrário, a naturalidade com que se inscreviam nas rotinas do quotidiano — daí o sucesso da sua colecção "normal" para a marca H&M, em 2004.
Os seus padrões éticos e estéticos poderão, talvez, ser definidos por uma evocação de sua mãe, em 2005: "Ela disse-me que 'se fumares, as tuas mãos estarão sempre a ser vistas, e as tuas não são especialmente bonitas.' Nunca fumei um cigarro. Quis agradar-lhe porque ela detestava tudo o que fosse de segunda classe."

>>> Lagerfeld como "ícone pop", numa evocação do jornal Le Monde.

>>> Trailer do filme Lagerfeld Confidential (2007), de Rodolphe Marconi.

>>> Obituário na Vogue (Reino Unido).

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Memórias brancas de Bruno Ganz

O relógio com os números organizados por ordem inversa... Quem se lembra desta imagem de A Cidade Branca (1983), de Alain Tanner, recorda-se também por certo do olhar cândido com que tão insólito objecto era contemplado por Bruno Ganz.
Falecido a 16 de Janeiro, contava 77 anos, Ganz foi uma presença tão intensa quanto inefável de universos rasgados por muitas formas de comoção e vulnerabilidade — foi um dos anjos de As Asas do Desejo (1987), convém não esquecer. Celebrar as suas memórias, logo os seus filmes, é também reconhecer as singularidades de um modo europeu de ser actor que sabe circular pelos mais variados contextos criativos, preservando o enigma de uma identidade primordial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Fevereiro), com o título 'Sob o céu de Lisboa'.

Lisboa, 1983
De vez em quando, creio que é salutar não menosprezarmos uma pequena lição de humildade. Por exemplo, a propósito do falecimento do actor Bruno Ganz (no dia 15, na sua cidade natal, Zurique, contava 77 anos).
Assim, qualquer cinéfilo que se preze sabe que Ganz participou em A Cidade Branca (1983), filme incontornável no imaginário cinematográfico e, arrisco dizê-lo, na iconografia mitológica da cidade de Lisboa. Produzido por Paulo Branco, sob a direcção do suíço Alain Tanner (tão brilhante, tão esquecido e tão amigo de Portugal...), Ganz interpretava a odisseia afectiva de um marinheiro que encontrava nas margens do Tejo um lugar de pausa e reflexão, envolvendo-se amorosamente com uma portuguesa (personagem que é, por certo, uma das melhores composições de Teresa Madruga), enredando-se numa nostalgia utópica, amarga e doce, porventura sem solução.
Pois bem, consultem-se os obituários internacionais de Ganz. Sugiro The New York Times, The Guardian e a BBC; ou ainda as duas “bíblias” da indústria audiovisual dos EUA, Variety e The Hollywood Reporter. Que há de comum em todas essas evocações da notável carreira de Ganz? Uma simples omissão: nenhuma delas cita o filme de Tanner.
Eis uma evidência difícil de aceitar, sobretudo se julgarmos que os lugares de estacionamento concedidos pela capital do país aos automóveis de Madonna nos colocam no centro do mundo... Ah, o assombramento da memória: O Centro do Mundo (1974) é também o título de outro belíssimo filme de Tanner, melodrama para acabar com todos os melodramas que, se me permitem uma benigna evocação narcisista, tive o privilégio de apresentar no Teatro São Luiz, algures em 1975, com o próprio Tanner e o meu amigo Camacho Costa (quando Eduardo Prado Coelho ocupava o cargo de Director Geral da Acção Cultural).
Enfim, não podemos esperar, muito menos exigir, que os outros, estrangeiros ou não, partilhem as memórias que são nossas. Até porque sei bem que, nos tempos que correm, qualquer exercício do género tende a ser anulado pela avalanche de vulgaridades “sociais” em que nos obrigam a viver: há três décadas, reconhecer a exuberância criativa de Madonna era, para muitos, um gesto desprezível do jornalismo mais pretensioso... agora, há quem a confunda com um ex-libris de Lisboa.
Tudo isto são pormenores, bem sei. O que conta é o pano de fundo que nos ajuda a compreender a sua singularidade. A saber: o facto de Ganz ter sido um exemplo modelar de um internacionalismo artístico cujas raízes estão numa paisagem multifacetada cujo nome, Europa, passámos a utilizar quase só para suspirarmos face às atribulações dos políticos que moram em Bruxelas.
Vimo-lo, por exemplo, em A Marquesa d’O (1976), contracenando com Edith Clever, sob a direcção de um dos mestres da Nova Vaga francesa, Eric Rohmer. Ou nessa tragédia euro-americana em formato de “thriller” que é o bem chamado O Amigo Americano (1977), de Wim Wenders. Ou ainda, mais recentemente, na brilhante farsa dramática A Festa (2017), de Sally Potter.
E é forçoso lembrá-lo em As Asas do Desejo (1987), também de Wenders. Vogando, literalmente, pelo céu de Berlim (título original: Der Himmel über Berlin), Ganz era o anjo Damiel que, na companhia do seu semelhante Cassiel (Otto Sander), contemplava as linhas cruzadas das solidões de uma cidade ainda dividida. Quando revemos agora o filme de Wenders, há nele a dimensão insólita, de uma só vez perturbante e radiosa, de uma paisagem ainda dividida pelo Muro: são imagens que adquiriram a intensidade de uma derradeira reportagem sobre uma monstruosidade política. Mas são também imagens que não podemos dissociar das palavras que com elas se envolviam.
Foi Peter Handke que escreveu as falas dos anjos de As Asas do Desejo. E se o leitor não vive dependente de olhar, três vezes em cada ciclo de dez segundos, para o ecrã do seu telemóvel, atrevo-me a convocá-lo para estas palavras de Damiel, na voz cristalina de Bruno Ganz (pedindo desculpa pelas limitações da tradução, feita a partir de legendas inglesas):

“Quando a criança era uma criança, caminhava balouçando os braços, queria que a corrente fosse um rio, o rio uma torrente, e que esta poça fosse o mar. Quando a criança era uma criança, não sabia que era uma criança, tudo estava cheio de vida e a vida era una. Quando a criança era uma criança, não tinha opiniões sobre nada, não tinha hábitos, sentava-se cruzando as pernas, partia a correr, tinha um tufo no cabelo e não fazia uma careta quando era fotografada. Quando a criança era uma criança, era o tempo destas perguntas. Porque é que eu sou eu, e não tu? Porque é que estou aqui, e não aí? Quando é que o tempo começou, e onde acaba o espaço? A vida debaixo do sol não é apenas um sonho? Aquilo que vejo, escuto e cheiro não é apenas a ilusão de um mundo antes do mundo? O mal existe realmente, e há pessoas que são realmente más? Como é possível que eu, que sou eu, não existisse antes de começar a ser e que, um dia, aquele que sou, deixe de ser quem sou?”

domingo, fevereiro 17, 2019

Carla Maciel reinventa Dostoievski

De cima para baixo (ensaios):
Albano Jerónimo, Teresa Coutinho e Gonçalo Waddington
[FOTOS: Mário Melo Costa]
A opção central do espectáculo Confissões de um coração ardente, de Carla Maciel [CCB], envolve um desafio, de uma só vez formal e simbólico, que importa sublinhar. De facto, que significa, aqui e agora, trabalhar a escrita de Fiodor Dostoievski para criar um acontecimento a que damos o nome de teatro?
O resultado tem tanto de desconcertante como de fascinante. Porquê desconcertante? Porque, de facto, aquilo que nos é proposto surge como uma cápsula de tempo que não sabemos em que calendário situar. Ou seja: Carla Maciel baralha datas e referências — e se, do guarda-roupa ao cenário, podemos admitir que estamos "no tempo de" Dostoievski, convenhamos que o aparecimento de elementos como a canção Ne Me Quitte Pas (composta por Jacques Brel quase 80 anos depois da morte do escritor russo) nos coloca num contexto de imponderabilidade emocional que é, em última análise, matéria visceral do próprio espectáculo que nos é proposto.
FIODOR DOSTOIEVSKI
(1821-1881)
Daí o fascínio, justamente, aliás condensado nas palavras com que Carla Maciel apresenta esta genuína experimentação teatral: "Partindo da seleção e organização dos textos escolhidos, Confissões de um coração ardente cria uma teia dramatúrgica flexível em que cada personagem, movida pelo Amor, expõe a sua condição humana. Privilegia-se a transversalidade do Amor, que nos heróis dostoievskianos é o principal motor das ações e da trama de que são protagonistas. Os discursos das diferentes personagens que gravitam em torno de uma figura feminina são habitados pelo sonho e pela dor, oscilando entre o trágico, o patético e o grotesco."
Quase apetece dizer que são personagens à procuram de um autor (tal como em Pirandello, são seis). Mas creio que o mais correcto será dizer que são personagens à procura de personagens — como se entre as memórias de Dostoievski e as convulsões do tempo presente (que, ambiguamente ou não, se espelham no palco) cada um vivesse as agruras de uma infinita demanda de identidade. Coisa que, na ausência de Deus, é vivida numa solidão primordial, entre a irrisão e o sublime.
Daí, claro, a intensidade dos actores — Albano Jerónimo, Gonçalo Waddington, Marco Paiva, Miguel Loureiro, Teresa Coutinho e Tónan Quito — e o modo como neles, e através deles, a tragédia suspensa de Carla Maciel ganha corpo e alma. Ironia amarga: neste contexto, a palavra alma será, talvez, um ponto de fuga tão incompreensível como o infinito em que as linhas paralelas se encontram. Mas Confissões de um coração ardente é sobre isso mesmo: uma tocante demanda espiritual que se edifica a partir da consciência exacta das palavras através das quais nos fazemos e inventamos.

Sophie Auster canta Tom Waits

Em vésperas de lançamento de um novo álbum (Next Time, agendado para Abril), Sophie Auster tem vindo a divulgar alguns registos efectuados nos Reservoir Studios, recriando temas de outros autores. Agora é a vez da sua versão de uma pérola de Tom Waits: Take Me Home, da banda sonora de One from the Heart/Do Fundo do Coração (1982), de Francis Ford Coppola [estando bloqueada a incorporação, sugere-se uma visita ao YouTube].

sexta-feira, fevereiro 15, 2019

Maggie Rogers recria Whitney Houston

É uma das genuínas revelações de 2019: Maggie Rogers, com o seu álbum de estreia intitulado Heard It in a Past Life. Vale a pena escutá-la a mostrar como se pode fazer uma nova versão de uma canção clássica — I Wanna Dance with Somebody (1987), de Whitney Houston —, sendo fiel ao original e, ao mesmo tempo, inscrevendo uma marca muito pessoal nos resultados.
Eis a recriação (acústica!) de Rogers, em gravação efectuada num programa da rádio canadiana, The Strombo Show, de George Stroumboulopoulos; em baixo, a fundamental memória.



quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Ellen Page — contra a cultura do sofrimento

Ellen Page esteve há dias em The Late Show. A nova série The Umbrella Academy (Netflix) era o pretexto do encontro com Stephen Colbert, mas a conversa acabou por ficar marcada pelo tema do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Page soube sustentar um discurso, de uma só vez emocionado e conciso, sobre a ideologia da administração Trump, as posições do vice-presidente Mike Pence e o modo como tais posições decorrem de uma postura cultural enraizada no ódio da diferença, procurando o sofrimento do outro — vale a pena ver e ouvir.

Weezer: memórias dos A-ha

O 12º álbum de estúdio dos americanos Weezer (o quinto auto-titulado) não é, convenhamos, um dos momentos mais requintados da sua discografia. Não pelo facto de propor "apenas" uma colecção de novas versões de temas que marcaram a carreira dos intérpretes originais (Tears for Fears, Eurythmics, Miachel Jackson, etc.). Antes porque tal opção se distingue por uma equívoca "fidelidade", tão versátil quanto frustrante.
Há coisas muito menos interessantes, é verdade. O certo é que, até mesmo quando recriam (?) um teledisco emblemático, os Weezer parecem satisfazer-se com o mais básico efeito copista, numa espécie de pós-modernismo simplista que poderia ostentar o subtítulo: covers for dummies.
Aqui fica a esforçada recuperação de Take on Me, dos noruegueses A-ha, um hino pop (com profusão de sintetizadores) do ano de 1984 cujo teledisco, apesar dos recursos digitais, exibe de modo esquemático aquilo que, no original [em baixo], era genuinamente criativo e exuberante.



A IMAGEM: Patrick Zachmann, 2018

PATRICK ZACHMAN
Novas escavações em Pompeia, Itália
Magnum, Outubro 2018

quarta-feira, fevereiro 13, 2019

#MeToo [citação]

>>> (...) que o amor se sinta feliz de dizer "mulher" sem ser alvo da cólera de #MeToo; que se sinta feliz de dizer "homem" sem que se oiça berrar #MeTooToo.

BERNARD-HENRI LÉVY
Bloco-notas, 7 Jan. 2019

O Rato Mickey não entra em “Avatar”

Pixar, Marvel e Lucasfilm são estúdios de sucesso que passaram a pertencer ao império Disney; tal como, a partir de agora, a 20th Century Fox — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro).

Que há de comum entre clássicos como O Pecado Mora ao Lado (1955), com Marilyn Monroe, ou o lendário Música no Coração (1965) e sucessos do século XXI como os novos episódios de Star Wars ou o recente Bohemian Rhapsody, evocando Freddie Mercury? Pois bem, todos têm chancela da 20th Century Fox, um dos nomes emblemáticos da história e da mitologia dos grandes estúdios de Hollywood.
E se o logotipo da Fox passasse a integrar o castelo de fantasia dos estúdios fundados por Walt Disney? Eis uma especulação provavelmente absurda, mas com forte motivação simbólica. Acontece que, em meados de 2018, o império Disney adquiriu a Fox por 71,3 mil milhões de dólares (cerca de 63 mil milhões de euros), sendo o final deste mês de Fevereiro apontado como data de integração de um estúdio no outro.
Na prática, o lendário clube dos “Big Six” de Hollywood vai ficar reduzido: os grandes estúdios (“majors”) passarão a ser apenas cinco (Paramount, Warner, Universal, Columbia e Disney). Mas o que está em jogo excede, e muito, o simbolismo histórico de tão excelsa galeria. Desde logo porque este processo de integração envolve muitas promoções, despromoções e despedimentos (segundo a imprensa especializada de Hollywood, há 4000 trabalhadores de diversos sectores da Fox que receiam perder os empregos); depois porque ninguém sabe como a Disney irá gerir o imenso e valiosíssimo património da Fox.
Uma coisa é certa: da produção à difusão, as dinâmicas internas da indústria de Hollywood vão mudar. E não apenas porque, por exemplo, projectos como as quatro sequelas de Avatar em que James Cameron está a trabalhar (com lançamentos agendados até 2015) foram gerados na Fox. O Rato Mickey não será integrado nos respectivos elencos, mas as suas formas de promoção e distribuição vão, por certo, ser repensadas.
A surpresa de tudo isto é muito relativa. Na verdade, as estratégias artísticas, tecnológicas e comerciais da Disney já pouco ou nada têm que ver com os conceitos em que foram gerados clássicos como Branca de Neve e os Sete Anões (1937) ou Bambi (1942). Nos últimos anos, o estúdio dilatou o seu poder económico, global, por excelência, através da aquisição de três outros estúdios: Pixar (pioneiro na animação digital), Marvel Entertainment (produtor dos maiores sucessos na área dos super-heróis) e Lucasfilm (a casa original de George Lucas e da saga Star Wars).
Ponto fulcral em tudo isto: a Disney está há dois anos a preparar o lançamento da sua plataforma de streaming, denominada Disney+. Com abertura prevista para o próximo mês de Setembro, nos EUA, a Disney+ assume-se como concorrente directa da Netflix, ao mesmo tempo reforçando a presença da Hulu (de que a Disney, através da aquisição da Fox, passou a deter 60%). Resta saber se os responsáveis por todas estas mudanças, a começar por Bob Iger (presidente da Walt Disney Company), possuem ideias criativas que acompanhem o seu inquestionável talento de gestores.

terça-feira, fevereiro 12, 2019

Maggie Rogers, opus 1

The next best thing?...
Maggie Rogers é uma daquelas revelações cuja frescura nasce de uma obstinada ligação a um passado cuja vitalidade se afirma sempre em linguagem do presente. Dito de outro modo: uma sensibilidade pop, rigorosa e depurada, aliada a um elaborado gosto coreográfico das canções, sem esquecer a concisão do fraseado, o peso específico de cada palavra.
Nasceu a 25 de Abril de 1994, em Easton, Maryland, e tornou-se conhecida através de Now That the Light Is Fading (2017), EP que incluía o hit Alaska, celebrizado graças a Pharrell Williams (que o incluiu numa master class na Universidade de Nova Iorque). Lança agora o primeiro álbum, Heard It in a Past Life, uma colecção de 12 temas cristalinos, desenhando um presente carregado de futuro — eis os telediscos de Alaska e Fallingwater, e ainda Light On, num registo de La Blogothèque, em Paris.






>>> Site oficial de Maggie Rogers.

segunda-feira, fevereiro 11, 2019

João César Monteiro — a memória dos filmes

O ciclo ‘Viva João César Monteiro’ permite-nos reencontrar a obra de um cineasta capaz de desafiar convenções e ideias feitas: começou no Porto, prolongando-se por Braga, Lisboa, Coimbra e Setúbal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Fevereiro).

Será que um dos problemas do cinema português é a sua ausência da memória colectiva dos portugueses? A pergunta pode atrair respostas muito contrastadas, porventura contraditórias. Mas todos estaremos de acordo sobre a necessidade de preservar essa memória. Aí está uma iniciativa que tenta corresponder a tal necessidade. Organizado pela Medeia Filmes e a Leopardo Filmes, o ciclo ‘Viva João César Monteiro’ é isso mesmo que está na sua designação: uma celebração da obra de um cineasta que marcou de forma indelével, não apenas a história do cinema português, mas os modos de pensar as suas grandezas e misérias.
O pretexto do evento é uma efeméride: falecido em 2003, João César Monteiro teria feito 80 anos no passado dia 2. O ciclo arrancou no dia 5 na cidade do Porto (Rivoli e Campo Alegre, dias 5 e 6). Segue-se Braga (Theatro Circo, dias 11 e 17), Lisboa (Monumental, 17 a 20), Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente, 18) e Setúbal (Auditório Charlot, 21, 22 e 28; 1 de Março).
Conhecida a dimensão provocatória da obra do cineasta e também a sua vocação de polemista (foi, além do mais, um talentoso crítico de cinema), será salutar evitarmos qualquer processo de canonização dos seus filmes. Acima de tudo, importa contrariar um efeito de consagração que nos empurre para uma beatitude sem alma. Veja-se o que aconteceu em torno da figura de Manoel de Oliveira: depois de décadas de repúdio militante de muitos dos seus filmes, numa atitude quase sempre enraizada no desconhecimento dos próprios filmes, o seu falecimento, em 2015, desencadeou um generalizado processo de consagração como “mestre” que, no mínimo, soa a falso.
Ora, justiça seja feita, João César Monteiro nunca foi artista de suscitar unanimidades. Como é normal acontecer com os autores que têm a coragem de desafiar os limites da expressão cinematográfica, há vários dos seus filmes que nem sempre foram recebidos de forma entusiástica (incluindo pelo autor deste artigo).
Dito de outro modo: importa regressar ao convívio com o seu trabalho e percorrer os ziguezagues de uma trajectória que talvez se possa definir, globalmente, pela defesa de um realismo interior ao próprio cinema. Nada a ver com o naturalismo mediático que hoje prolifera, mais ou menos sustentado pelo pobre imediatismo dos telemóveis e as montagens aceleradas que proliferam na Internet. Nada disso. Antes um realismo que nasce da paixão pelo cinema como lugar de invenção de uma outra dimensão humana, talvez poética, sem dúvida inimiga da futilidade moral e do pensamento seguidista.
A exigência ética e estética do labor de João César Monteiro terá tido a sua expressão mais célebre no filme Branca de Neve (2000), adaptação “selvagem” de uma obra do escritor suíço Robert Walser (1878-1956). Como é sabido, a apresentação do texto de Walser aconteceu, na sua quase totalidade, sobre o ecrã a negro (tendo o filme a duração de 75 minutos). Permito-me relembrar que, na altura da estreia, escrevi que, desse modo, o filme “cria um maniqueísmo formal que ao fim de cinco minutos se torna redundante e previsível, isto é, que acaba por se atolar no seu próprio academismo.”
Apesar disso (ou precisamente por causa disso), importa acrescentar que o formalismo fácil de Branca de Neve nasce de uma revolta artística que, mais do que nunca, importa reconhecer e, pedagogicamente, compreender: trata-se de questionar o triunfo quotidiano de imagens (e sons!) convencionais e redundantes que, em última instância, menosprezam a inteligência do próprio espectador.
Curiosamente, em alguns momentos emblemáticos, através dos sinais dessa revolta, João César Monteiro lidou com uma questão que, com o passar dos anos, se tornou inerente a muito do cinema mais interessante que se vai fazendo nas mais diversas geografias e culturas. Que questão é essa? Pois bem, a discussão sempre em aberto das diferenças entre “documentário” e “ficção”, acrescida da permanente possibilidade de contaminação criativa das respectivas linguagens.
Três exemplos podem ajudar-nos a situar tal questão:
— SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN (1969). É o primeiro título da filmografia do realizador e, a meu ver, um dos mais depurados objectos que ele criou. Encontramos, aqui, a fragilidade de um típico home movie sobre a poetisa e o seu espaço familiar, fragilidade que se transfigura em verdade dos instantes e dos gestos — completamente realista, insolitamente cósmico.


— VEREDAS (1978). Historicamente, é muitas vezes citado como um “descendente” do admirável Trás-os-Montes, realizado dois anos antes por António Reis e Margarida Cordeiro. Haverá alguma justificação para isso, quanto mais não seja porque ambos os filmes ilustram um período de grande (e fascinante!) convulsão da produção portuguesa. Seja como for, João César Monteiro procura algo de muito particular: trata-se de reencenar o património lendário do país para expor uma violência interior que, simbolicamente, nos remete para o nosso presente — cinema político, no sentido mais radical que a designação pode envolver.
— RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA (1989). Tal como em alguns filmes posteriores (incluindo o derradeiro Vai e Vem, de 2003), João César Monteiro assume-se como actor principal, criando uma personagem (João de Deus) que é, de uma só vez, uma projecção sarcástica do seu cepticismo existencial e um ser tendencialmente burlesco que se dá bem com o olhar clínico da câmara de filmar. Por alguma razão perpassa aqui uma sugestão de cumplicidade com a figuração vampiresca do clássico Nosferatu (1922), de F. W. Murnau. Talvez que João César tenha sido um criador que viveu o cinema como supremo gesto de vida, isto é, empreendimento capaz de integrar o silêncio da morte. Estranhamente ou não, isso confere aos seus filmes, mesmo os menos conseguidos, uma alegria alheia ao jogo medíocre dos nossos cinismos.

25 canções de Madonna

Na sua série 'Deep Cuts', a Apple Music acaba de propor uma lista dedicada a Madonna. São 25 canções de diversos álbuns, de Like a Prayer (1989) a Rebel Heart (2015), passando por antologias como Something to Remember (1995) ou Celebration (2009).
Evitando o espírito convencional de um "best of", trata-se de reunir uma série de referências que ficaram mais ou menos secundarizadas pelo sucesso de outros temas incluídos nos mesmos registos. Exemplos significativos: Act of Contrition, um exercício confessional de ousada estrutura, última faixa de Like a Prayer; Sky Fits Heaven, uma delicada deambulação poética do álbum Ray of Light (1998); ou ainda o belíssimo X-Static Process desse álbum assombroso, quase sempre esquecido, que é American Life (2003) — eis X-Static Process num registo da MTV, em 2003.

domingo, fevereiro 10, 2019

A agenda política dos Pet Shop Boys

O tema não está na moda. Que tema? A apropriação artística do discurso político. Porquê? Porque tendemos a confundir os gestos políticos com a ocupação da paisagem televisiva por soundbytes mais ou menos efémeros.
Pois bem, Agenda, o novo EP dos Pet Shop Boys reflecte, precisamente, a agenda política de quem sempre concebeu o trabalho musical como um exercício de uma só vez lírico e pedagógico que, embora evitando encerrar-se num discurso panfletário, não abdica de olhar o mundo à sua volta. Neil Tennant e Chris Lowe oferecem-nos assim, quatro canções ("três satíricas e uma muito triste", no dizer de Tennant) que inventariam temas trágicos do nosso viver e, sobretudo do nosso mal viver. A saber:
Give Stupidity A Chance, sobre a mediocridade de alguns líderes políticos;
On Social Media, expondo as simulações e ilusões da sociedade em rede;
What Are We Going To Do About The Rich, denunciando a associação do dinheiro à insensibilidade humana;
The Forgotten Child, observando o vulnerável lugar da infância num mundo sem compaixão.
Aqui estão as novas canções (que não farão parte do álbum que o duo prepara para o Outono), devidamente ilustradas pela concisão das suas palavras.








>>> Site oficial dos Pet Shop Boys.

Albert Finney (1936 - 2019)

Com a morte de Albert Finney (dia 7 de Fevereiro, em Londres, contava 82 anos), desaparece um dos nomes maiores do moderno cinema britânico — membro da Royal Shakespeare Company, a sua sofisticada formação teatral transfigurou-se em filmes marcantes, quer britânicos, quer americanos, incluindo Charlie Bubbles/Um Homem e a sua História (1968), única produção cinematográfica que dirigiu.
Celebrizado por Tom Jones (1960), adaptação picaresca do romance de Henry Fielding por Tony Richardson, participou das convulsões da "nova vaga" britânica, distinguindo-se através de uma versatilidade enraizada numa capacidade invulgar de expor as mais secretas nuances emocionais do comportamento humano.
Ei-lo em cinco momentos modelares da sua trajectória artística.

>>> Sábado à Noite, Domingo de Manhã (1960), de Karel Reisz

>>> Ao Cair da Noite (1964), de Karel Reisz

>>> Charlie Bubbles/Um Homem e a sua História (1968), de Albert Finney

>>> Debaixo do Vulcão (1984), de John Huston

>>> Erin Brockovich (2000), de Steven Soderbergh

>>> Obituário no jornal The Guardian.

sábado, fevereiro 09, 2019

Clive Swift (1936 - 2019)

Popularizado pela série Cuidado com as Aparências, o actor inglês Clive Swift faleceu no dia 1 de Fevereiro, em Londres, na sequência de uma doença súbita — contava 82 anos.
Membro da Royal Shakespeare Company, Swift era um prodígio de subtileza contracenando com a genial Patricia Routledge, a senhora empenhada em fazer valer os seus (supostos) méritos aristocráticos em Cuidado com as Aparências (1990-95). E se é verdade que a sua carreira passou por muitas produções televisivas, não é menos verdade que o seu nome, sempre como brilhante secundário, ficou inscrito em alguns títulos emblemáticos do cinema britânico, incluindo Frenzy/Perigo na Noite (1972), a obra-prima esquecida com que Alfred Hitchcock regressou a cenários londrinos, Excalibur (1981), fantasia futurista de John Boorman, e Passagem Para a Índia (1984), belíssimo e também muito esquecido filme final de David Lean.
Swift deixou também uma obra considerável como autor de canções. O seu interesse pedagógico pela arte de representar levou-o a escrever os livros The Job of Acting (1976) e The Performing World of the Actor (1981).

>>> Cena de Cuidado com as Aparências.


>>> Frenzy: trailer protagonizado por Hitchcock; em baixo, uma conversa sobre o filme, no BFI, em 2012 — participam Swift e Jean Marsh, também intérprete.




>>> Obituário no jornal The Guardian.