O relógio com os números organizados por ordem inversa... Quem se lembra desta imagem de A Cidade Branca (1983), de Alain Tanner, recorda-se também por certo do olhar cândido com que tão insólito objecto era contemplado por Bruno Ganz.
Falecido a 16 de Janeiro, contava 77 anos, Ganz foi uma presença tão intensa quanto inefável de universos rasgados por muitas formas de comoção e vulnerabilidade — foi um dos anjos de As Asas do Desejo (1987), convém não esquecer. Celebrar as suas memórias, logo os seus filmes, é também reconhecer as singularidades de um modo europeu de ser actor que sabe circular pelos mais variados contextos criativos, preservando o enigma de uma identidade primordial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Fevereiro), com o título 'Sob o céu de Lisboa'.
Lisboa, 1983 |
De vez em quando, creio que é salutar não menosprezarmos uma pequena lição de humildade. Por exemplo, a propósito do falecimento do actor Bruno Ganz (no dia 15, na sua cidade natal, Zurique, contava 77 anos).
Assim, qualquer cinéfilo que se preze sabe que Ganz participou em A Cidade Branca (1983), filme incontornável no imaginário cinematográfico e, arrisco dizê-lo, na iconografia mitológica da cidade de Lisboa. Produzido por Paulo Branco, sob a direcção do suíço Alain Tanner (tão brilhante, tão esquecido e tão amigo de Portugal...), Ganz interpretava a odisseia afectiva de um marinheiro que encontrava nas margens do Tejo um lugar de pausa e reflexão, envolvendo-se amorosamente com uma portuguesa (personagem que é, por certo, uma das melhores composições de Teresa Madruga), enredando-se numa nostalgia utópica, amarga e doce, porventura sem solução.
Pois bem, consultem-se os obituários internacionais de Ganz. Sugiro The New York Times, The Guardian e a BBC; ou ainda as duas “bíblias” da indústria audiovisual dos EUA, Variety e The Hollywood Reporter. Que há de comum em todas essas evocações da notável carreira de Ganz? Uma simples omissão: nenhuma delas cita o filme de Tanner.
Eis uma evidência difícil de aceitar, sobretudo se julgarmos que os lugares de estacionamento concedidos pela capital do país aos automóveis de Madonna nos colocam no centro do mundo... Ah, o assombramento da memória: O Centro do Mundo (1974) é também o título de outro belíssimo filme de Tanner, melodrama para acabar com todos os melodramas que, se me permitem uma benigna evocação narcisista, tive o privilégio de apresentar no Teatro São Luiz, algures em 1975, com o próprio Tanner e o meu amigo Camacho Costa (quando Eduardo Prado Coelho ocupava o cargo de Director Geral da Acção Cultural).
Enfim, não podemos esperar, muito menos exigir, que os outros, estrangeiros ou não, partilhem as memórias que são nossas. Até porque sei bem que, nos tempos que correm, qualquer exercício do género tende a ser anulado pela avalanche de vulgaridades “sociais” em que nos obrigam a viver: há três décadas, reconhecer a exuberância criativa de Madonna era, para muitos, um gesto desprezível do jornalismo mais pretensioso... agora, há quem a confunda com um ex-libris de Lisboa.
Tudo isto são pormenores, bem sei. O que conta é o pano de fundo que nos ajuda a compreender a sua singularidade. A saber: o facto de Ganz ter sido um exemplo modelar de um internacionalismo artístico cujas raízes estão numa paisagem multifacetada cujo nome, Europa, passámos a utilizar quase só para suspirarmos face às atribulações dos políticos que moram em Bruxelas.
Vimo-lo, por exemplo, em A Marquesa d’O (1976), contracenando com Edith Clever, sob a direcção de um dos mestres da Nova Vaga francesa, Eric Rohmer. Ou nessa tragédia euro-americana em formato de “thriller” que é o bem chamado O Amigo Americano (1977), de Wim Wenders. Ou ainda, mais recentemente, na brilhante farsa dramática A Festa (2017), de Sally Potter.
E é forçoso lembrá-lo em As Asas do Desejo (1987), também de Wenders. Vogando, literalmente, pelo céu de Berlim (título original: Der Himmel über Berlin), Ganz era o anjo Damiel que, na companhia do seu semelhante Cassiel (Otto Sander), contemplava as linhas cruzadas das solidões de uma cidade ainda dividida. Quando revemos agora o filme de Wenders, há nele a dimensão insólita, de uma só vez perturbante e radiosa, de uma paisagem ainda dividida pelo Muro: são imagens que adquiriram a intensidade de uma derradeira reportagem sobre uma monstruosidade política. Mas são também imagens que não podemos dissociar das palavras que com elas se envolviam.
Foi Peter Handke que escreveu as falas dos anjos de As Asas do Desejo. E se o leitor não vive dependente de olhar, três vezes em cada ciclo de dez segundos, para o ecrã do seu telemóvel, atrevo-me a convocá-lo para estas palavras de Damiel, na voz cristalina de Bruno Ganz (pedindo desculpa pelas limitações da tradução, feita a partir de legendas inglesas):
“Quando a criança era uma criança, caminhava balouçando os braços, queria que a corrente fosse um rio, o rio uma torrente, e que esta poça fosse o mar. Quando a criança era uma criança, não sabia que era uma criança, tudo estava cheio de vida e a vida era una. Quando a criança era uma criança, não tinha opiniões sobre nada, não tinha hábitos, sentava-se cruzando as pernas, partia a correr, tinha um tufo no cabelo e não fazia uma careta quando era fotografada. Quando a criança era uma criança, era o tempo destas perguntas. Porque é que eu sou eu, e não tu? Porque é que estou aqui, e não aí? Quando é que o tempo começou, e onde acaba o espaço? A vida debaixo do sol não é apenas um sonho? Aquilo que vejo, escuto e cheiro não é apenas a ilusão de um mundo antes do mundo? O mal existe realmente, e há pessoas que são realmente más? Como é possível que eu, que sou eu, não existisse antes de começar a ser e que, um dia, aquele que sou, deixe de ser quem sou?”