domingo, fevereiro 17, 2019

Carla Maciel reinventa Dostoievski

De cima para baixo (ensaios):
Albano Jerónimo, Teresa Coutinho e Gonçalo Waddington
[FOTOS: Mário Melo Costa]
A opção central do espectáculo Confissões de um coração ardente, de Carla Maciel [CCB], envolve um desafio, de uma só vez formal e simbólico, que importa sublinhar. De facto, que significa, aqui e agora, trabalhar a escrita de Fiodor Dostoievski para criar um acontecimento a que damos o nome de teatro?
O resultado tem tanto de desconcertante como de fascinante. Porquê desconcertante? Porque, de facto, aquilo que nos é proposto surge como uma cápsula de tempo que não sabemos em que calendário situar. Ou seja: Carla Maciel baralha datas e referências — e se, do guarda-roupa ao cenário, podemos admitir que estamos "no tempo de" Dostoievski, convenhamos que o aparecimento de elementos como a canção Ne Me Quitte Pas (composta por Jacques Brel quase 80 anos depois da morte do escritor russo) nos coloca num contexto de imponderabilidade emocional que é, em última análise, matéria visceral do próprio espectáculo que nos é proposto.
FIODOR DOSTOIEVSKI
(1821-1881)
Daí o fascínio, justamente, aliás condensado nas palavras com que Carla Maciel apresenta esta genuína experimentação teatral: "Partindo da seleção e organização dos textos escolhidos, Confissões de um coração ardente cria uma teia dramatúrgica flexível em que cada personagem, movida pelo Amor, expõe a sua condição humana. Privilegia-se a transversalidade do Amor, que nos heróis dostoievskianos é o principal motor das ações e da trama de que são protagonistas. Os discursos das diferentes personagens que gravitam em torno de uma figura feminina são habitados pelo sonho e pela dor, oscilando entre o trágico, o patético e o grotesco."
Quase apetece dizer que são personagens à procuram de um autor (tal como em Pirandello, são seis). Mas creio que o mais correcto será dizer que são personagens à procura de personagens — como se entre as memórias de Dostoievski e as convulsões do tempo presente (que, ambiguamente ou não, se espelham no palco) cada um vivesse as agruras de uma infinita demanda de identidade. Coisa que, na ausência de Deus, é vivida numa solidão primordial, entre a irrisão e o sublime.
Daí, claro, a intensidade dos actores — Albano Jerónimo, Gonçalo Waddington, Marco Paiva, Miguel Loureiro, Teresa Coutinho e Tónan Quito — e o modo como neles, e através deles, a tragédia suspensa de Carla Maciel ganha corpo e alma. Ironia amarga: neste contexto, a palavra alma será, talvez, um ponto de fuga tão incompreensível como o infinito em que as linhas paralelas se encontram. Mas Confissões de um coração ardente é sobre isso mesmo: uma tocante demanda espiritual que se edifica a partir da consciência exacta das palavras através das quais nos fazemos e inventamos.