terça-feira, janeiro 29, 2019

Netflix & MPAA

De Hollywood, chegou a notícia da entrada da Netflix na Motion Picture Association of America: ou como as grandes estruturas de produção e difusão se estão a adaptar aos novos tempos das plataformas de “streaming” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Janeiro).

A notícia não fez muitas manchetes, nem mesmo na imprensa dos EUA, mas não será arriscado considerar, desde já, que corresponde a uma pequena grande revolução no seio da indústria global do cinema: a Netflix acaba de ser admitida como membro da Motion Picture Association of America (MPAA).
Que está em causa? Pois bem, um novo arranjo estratégico das principais entidades do cinema “made in USA”, da produção à difusão. Mais concretamente: rasgam-se, assim, novas e inusitadas perspectivas para a articulação (artística e económica) das mais poderosas empresas cinematográficas, agora tendo a Netflix, uma plataforma de “streaming”, como parceiro directo, com os mesmos direitos e obrigações.
Criada em 1922, a MPAA tem como principal missão gerir os interesses de quem produz e distribui os filmes (aliás, no momento da fundação, a sua designação era Motion Pictures Producers and Distributors from America). Na prática, tratava-se — e trata-se — de estabelecer as regras gerais de coordenação entre os estúdios de cinema e os proprietários das salas.
Da “vigilância moral” dos filmes, através do célebre Código Hays (que funcionou no período 1930-1968), até à luta contra as muitas formas de pirataria, passando pela criação do moderno sistema de classificação etária, a MPAA tem funcionado, afinal, como uma emanação directa dos clássicos estúdios de cinema, pioneiros da paisagem de Hollywood. Por alguma razão, a expressão “studio system” surge tradicionalmente associada à idade de ouro do cinema americano (cujos fundamentos criativos e financeiros começaram a ser postos em causa pelos efeitos da concorrência da televisão nas décadas de 1950/60).
Neste quadro, o “streaming” — e, em particular, a Netflix — tem vindo a representar o fantasma (muito vivo) do próprio sistema. Estamos a falar, afinal, de uma entidade a caminhar para os 150 milhões de assinantes, dos quais cerca de 60 milhões nos EUA. Dito de outro modo: o facto de a Netflix se ter imposto globalmente através do espaço virtual da Internet introduziu um gigantesco grão de areia no sistema. Porquê? Porque a Netflix, fundada em 1997 (como empresa de aluguer de DVDs pelo correio), se afirmou através de uma política “fechada” de difusão, recusando-se a estrear as suas produções nas salas escuras.
Tal resistência criou mesmo um conflito institucional com o Festival de Cannes. Na sua edição de 2018, dando voz aos protestos dos exibidores franceses, o certame condicionou a passagem de filmes da Netflix à assunção de um compromisso, por parte da plataforma, de os lançar nas salas francesas. Resultado? A Netflix abandonou o certame.
Seguiu-se uma peripécia que, ironicamente ou não, não pode ser desligada deste processo conflituoso: quatro meses depois de Cannes, o Festival de Veneza recebeu de braços abertos as produções da Netflix, incluindo o seu título de produção mais ousada e diferenciadora: Roma, de Alfonso Cuarón. Resultado? Roma arrebatou o Leão de Ouro.
Resumindo uma aventura de muitas peripécias (que vai, por certo, entrar nos anais históricos e mitológicos do cinema no século XXI), a Netflix decidiu “suavizar” a sua estratégia inicial e distribuir Roma em salas de muitos países (incluindo Portugal). Por um lado, mesmo estando disponível para os assinantes da Netflix, o filme de Cuarón tem conseguido excelentes performances no mercado tradicional; por outro lado, Roma é um “papa-prémios” que já foi distinguido, por exemplo, como melhor filme estrangeiro de 2018 pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (Globos de Ouro), surgindo na linha da frente da corrida aos Oscars (24 Fevereiro), acumulando uma dezena de nomeações, incluindo melhor filme do ano e melhor filme estrangeiro.
Tem sido dada especial atenção ao facto de a Netflix estar a investir imenso dinheiro na promoção de Roma junto da comunidade de votantes dos Oscars. Porquê? Talvez porque “precise” de uma estatueta dourada para consolidar o seu poder, efectivo e simbólico, face às forças clássicas de Hollywood. Será, em parte, verdade. O certo é que a MPAA não necessitou da “caução” de um Oscar para reconhecer a importância da plataforma.
De acordo com a imprensa cinematográfica dos EUA, nomeadamente The Hollywood Reporter, em artigo de Pamela McClintock publicado a 22 de Janeiro (dia em que foram também conhecidas as nomeações para os Oscars), a notícia da entrada da Netflix na MPAA não foi, na classe dirigente de Hollywood, uma surpresa absoluta. Isto porque, segundo fontes internas dos estúdios, já há algum tempo que a plataforma e a associação tinham aberto um diálogo com uma prioridade absoluta: criar novos modelos de combate à pirataria dos filmes.
Na prática, a “nova” MPAA será constituído por sete poderosos membros: a Netflix junta-se a Disney, Fox, Paramount, Sony, Universal e Warner Bros. Segundo as palavras de Charles Rivkin, presidente da MPAA, a mudança está longe de ser banal e envolve os circuitos de todos os ecrãs: “Os nossos membros estão empenhados em melhorar a indústria de cinema e televisão, tanto no modo como contamos histórias como no modo de mobilização as audiências. A entrada da Netflix dá-nos ainda mais força na defesa efectiva da comunidade global de contadores de histórias, e tenho grande expectativa em relação ao que podemos conseguir em conjunto.”
Em jogo está também a própria gestão financeira da MPAA, já que cada membro contribui para o orçamento anual da associação com uma quota entre 10 e 12 milhões de dólares. Assim, quando se consumar a já anunciada fusão da Fox com a Disney, haverá uma contribuição a menos — e a MPAA voltará a ser um sexteto. De qualquer modo, no seio da indústria, há também quem considere que a entrada da Netflix é apenas o primeiro gesto de abertura ao universo do “streaming”, sendo a Amazon, também já com um importante papel na área de produção, outro sério candidato à integração na MPAA.
Uma coisa é certa: vai ser necessário superar a noção mais ou menos dramática, por vezes purista, segundo a qual a vida artística e económica do cinema se divide entre o material (dos estúdios e das salas) e o virtual (dos filmes em “streaming”). Quase um século depois da sua fundação, a MPAA adapta-se a um mundo em que, da concepção dos filmes à sua distribuição, não foi apenas a identidade do cinema que mudou — em boa verdade, somos também nós, espectadores, que nos vamos transformando através da descoberta e adopção de novas formas de consumo.