sábado, agosto 31, 2013

Elogio do "lyric video" (5/10)



New Day, tal como recriado por 50 Cent [ver o anterior lyric video], era uma espécie de parábola gráfica sobre a dinâmica da grande metrópole. De algum modo, pode dizer-se que isso já está presente nesta encenação do tema original de Alicia Keys, pertencente ao seu álbum Girl on Fire (2012). Com uma diferença que vale a pena sublinhar: o lyric video de Alicia Keys integra a dimensão física da escrita e do graffiti, transformando as mais diversas superfícies — dos muros da cidade ao caderno pessoal de esboços, passando pelos próprios rótulos dos sprays — em zonas de intervenção. Dir-se-ia um teledisco escrito à mão — a expressão apela à metáfora, mesmo se há nela uma dimensão descritiva absolutamente objectiva.

Miley Cyrus e o caso Bruma

Miley Cyrus de biquini na MTV... Bruma, jogador do Sporting, envolvido num emaranhado labirinto (pouco) futebolístico... Ou como está abalada a percepção mediática e, sobretudo, televisiva da "juventude" — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'Miley Cyrus e Bruma'.

1. Na sua performance nos prémios MTV, Miley Cyrus usou um biquini cor de pele, protagonizando uma coreografia recheada de sugestões sexuais. Tanto bastou para que, nos EUA, se ouvissem algumas vozes chocadas pelo facto de descobrirem que, afinal, a “Hanna Montana” dos estúdios Disney não vai ficar adolescente para sempre... Curiosamente, não se pode dizer que as televisões (pelo menos deste lado do Atlântico) tenham ficado muito comovidas com a ocorrência. O sintoma é claro: a MTV, hoje em dia uma paisagem ocupada pelas desgraças da “reality TV”, não possui, nem de longe nem de perto, o carisma e a inteligência artística de outros tempos. Além do mais, se se trata de desafiar os padrões correntes de figuração dos mais jovens, e da arte de o fazer com a devida ironia, valerá a pena regressar às origens: reveja-se Madonna na primeira edição dos mesmos prémios MTV, vestida de noiva, a interpretar Like a Virgin e avaliem-se as diferenças...


Foi em 1984, faltavam apenas oito anos para que Miley Cyrus nascesse.

2. É verdade que, felizmente, já ouvimos alguns comentadores do futebol chamar a atenção para a desagradável dimensão mediática que adquiriu o caso Bruma (e a sua eventual saída do Sporting): temos assistido a um folhetim “telenovelesco” que, para além das razões que possam assistir a cada uma das entidades envolvidas, tende a favorecer uma visão instrumental, pontuada por cifrões e milhões, das qualidades dos mais jovens. Creio que as televisões deviam reflectir um pouco sobre essa facilidade com que, muito para além dos programas desportivos, se constroem ídolos “juvenis” cuja imagem se vai esgotando nas riquezas que acumulam. E não se julgue que se trata de discutir a legitimidade dos seus ganhos. Trata-se, isso sim, de perguntar que sentido faz reduzir a juventude à miragem de exuberantes performances financeiras, afinal raríssimas. Bruma, convém lembrar, não é veterano de coisa nenhuma e, com os seus 18 anos, ainda é mais novo que Miley Cyrus.

"RPG": português em inglês

Estranha opção, esta de querer lançar uma produção portuguesa escondendo a sua origem... O próprio cartaz de RPG, de David Rebordão e Tino Navarro, reflecte esse bizarro mal-estar que, como se prova, é antes do mais de natureza figurativa. Dir-se-ia que a única força motriz que aqui podemos identificar nem é bem de natureza comercial (e seria um mérito, se o fosse); é antes de pavor iconográfico. Como se nos pedissem: acreditem apenas que os rostos expectantes e as luzes noturnas são o reflexo de um filme de ficção científica sem pátria específica, a não ser a que lhe é concedida pela utilização abstracta e desenraizada da língua inglesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Agosto), com o título 'Ser ou não ser português'.

Seja qual for o ângulo de aproximação de um filme como RPG, somos confrontados com um sentimento de embaraço. Desde logo, inevitavelmente, por razões cinematográficas: o filme tenta inscrever-se numa matriz de ficção científica (um futuro próximo em que as personagens disputam um jogo para garantir a juventude eterna...), cedo se esgotando numa lógica dramática típica da “reality TV”. Depois, porque, mesmo considerando que a base do argumento contém potencialidades sugestivas, há um défice de recursos técnicos que transforma os resultados numa imitação confrangedora de produções que, escusado será dizê-lo, contam com meios de produção incomparavelmente superiores. Finalmente, porque, apesar de todos esses problemas, não podemos deixar de reconhecer a aposta de um produtor português, Tino Navarro, ainda e sempre crente na possibilidade de criar acontecimentos capazes de mobilizar audiências mais ou menos significativas.
Daí as perguntas que ficam. Perguntas práticas: que se pode esperar da presença de Rutger Hauer, por certo com um passado lendário (Blade Runner, etc.), mas reduzido à condição de quase figurante das cenas de abertura e fecho? E para quê integrar uma actriz com o talento de Soraia Chaves, quando a sua função é pouco mais que decorativa? Como fazer valer o espectáculo quando nenhuma personagem, “herói” ou “anti-herói”, suscita a projecção do espectador? E uma pergunta conceptual: para quê fazer o filme falado em inglês?
Esta última pode suscitar uma resposta à qual reconheço toda a legitimidade: porque não? Ainda assim, sobra uma dúvida bizarra, porventura ainda mais embaraçosa: quando um filme português gasta grande parte das suas energias a tentar recalcar a sua condição portuguesa, que visão se tem do próprio espectador?

No verão de há 25 anos... (3)


Mergulhando 25 anos no tempo, encontramos este Don’t Make Me Wait como um dos dois temas do single “double A side” que o projeto Bomb The Bass lançava como sucessor da muito bem sucedida estreia com Beat Dis, editado poucos meses antes. Mais que Megablast, o outro tema do single, onde se propunha uma lógica de extensão natural do modelo da composição feita de corte e colagem de elementos sobre uma matriz house, este Don’t Make Me Wait expressava contudo uma ponte para com um passado (então) recente da história da club culture, revisitando num quadro em que a house redefinia rumos, alguns ecos do som electro que esteve associado à cultura hip hop (e às expressões visuais do breakdance) de meados dos oitentas.

Em conversa: Mourah (1/2)

Entre hoje e amanhã apresentamos aqui a versão integral de uma entrevista com Mourah, a propósito do lançamento do seu novo EP Sublime (The Breakup Sessions). Esta entrevista serviu de base a um artigo publicado na edição de 29 de agosto do DN com o título ‘A música é paixão ingrata onde se dá muito e recebe-se pouco’.

Porque foi longa a pausa entre este e os discos que editou em meados da década anterior (o álbum ‘From one Human Being to Another, de 2005, e o disco de remisturas ‘New Versions’, de 2006)?
Pouco depois de o meu primeiro álbum ter sido lançado, a editora Zona Música foi à falência, e isso não me permitiu desenvolver a carreira que perspectivava. Foi uma altura onde a indústria do disco entrou na crise profunda que conhece ainda hoje em dia. Foi também para mim o momento para acabar os meus estudos de letras na Universidade de Genebra, que tinha deixado a meio quando decidi ir para Portugal e lançar a carreira musical. Nesse lapso de tempo continuei a compor e fiz música para peças de teatro de objecto (companhia Andrayas) cujo fundador Markus Schmid foi um dos protégés do mimo Marceau, na escola dele em Paris.

O novo EP aprofunda o trabalho não só com electrónicas mas com a própria produção. Houve um investimento neste aperfeiçoamento formal?Sim, tive vontade de aperfeiçoar-me nos vários aspetos que tocam à produção e gravação de um tema. Decidi fazer um semestre numa escola como engenheiro de som, o que me permitiu desenvolver conhecimentos que já tinha antes, mas de uma forma autodidata e algo anárquica. Também é óbvio que, com o passar do tempo, torna-se mais fácil transpor uma ideia, um sentimento para algo de mais concreto, que é o som, a melodia, o ritmo. Este EP foi coproduzido pelo Armando Teixeira, e isso também ressente-se no lado mais monolítico e brutalista dos temas. Era uma cor que queria dar ao EP.

Mas mantém-se uma clara ligação a todo um universo de referências formativas que conhecíamis dos discos anteriores...Este EP é uma transição para mim. Insere-se ainda numa forma musical que me é familiar e que adquiri jovem graças aos meus pais e irmão; tudo se forma e cristaliza durante a infância, inclusive a linguagem, e por extensão, a linguagem musical. Mas a natureza e razão de ser de um artista, é aquela de procurar e experimentar, reinventar-se. O próximo álbum, Kardia, vai guardar o meu “código” mas haverá surpresas no que toca a universos e gramáticas musicais. Sempre gostei daqueles artistas que transcendem as fronteiras dos géneros para criar algo de iconoclasta e singular. Há poucos dias pus a tocar o álbum da Björk, Post, que não ouvia há muito tempo, e de surgir um tema jazzy, de big-band, ou seja orgânico, It’s Oh So Quiet, no meio duma produção electrónica tão meticulosa. Acho genial e impede o ouvinte de catalogar o artista num estilo exato.

Ficou satisfeito com as “conquistas” do álbum de 2005 e do disco de remisturas?Sinceramente, acho que um pouco mais de meios da parte da editora na altura, e mais experiência do meu lado... E uma pontinha de sorte... E acho que esse disco podia ter alcançado algo mais em termos de visibilidade. Mesmo assim, ainda oiço pessoas dizerem-me que foi um disco completamente inesperado e muito pessoal na música portuguesa dessa época. Só isso para mim, já é uma grande conquista, pois o que fica para história é a obra musical. Outra conquista é criar credibilidade, legitimidade para o que vem a seguir. Talvez o Armando Teixeira não tivesse aceite colaborar comigo...

No novo EP junta uma vez mais um espaço para remisturas. O que permite uma remistura de uma canção? É só uma ideia de novo ponto de vista a uma composição?
Produzir um tema é como se tivéssemos uma dúzia de caminhos à nossa frente, cada qual também composto de inúmeros cruzamentos. Um tema finalizado é o resultado de uma ramificação de ideias e escolhas, por vezes assumidas, por vezes acidentais. Para mim a remistura serve precisamente a levantar o véu sobre o que podia ter sido o tema original seguindo uma ramificação e escolhas diferentes, a nível do som, da composição. É uma forma de vestir o tema dum estilo completamente diferente, para outras circunstâncias, como a pista de dança, por exemplo. Isso permite também a outro tipo de público vir a conhecer a minha música. É um convite.

David Bowie a 45 RPM (33)


Os primeiros sinais firmes de um interesse de David Bowie pelas linguagens da música soul, que começara a emergir durante a Diamond Dogs Tour, ganharam retrato mais firme na primeira canção revelada do alinhamento de um álbum de estúdio que, por essa altura, tinha estado a gravar nos Estados Unidos e com a colaboração de músicos americanos. Contando com a colaboração de Luther Vandross, e editada em single em fevereiro de 1975, a canção Young Americans (que daria título ao novo álbum) apresentava sinais de partida para um território novo na obra de Bowie, e deixava definitivamente arrumada a etapa glam rock (que Diamond Dogs não encerrara completamente, apesar dos pontos de fuga que já refletia). Young Americans é assim o momento em que emerge a noção de plastic soul, que teria daí expressão em vários instantes da obra de Bowie, mas com expressão maior, e depois deste álbum de 1975, em discos como Let’s Dance (1983) e Black Tie White Noise (1993), os três definindo uma trilogia que, pelo brilho maior do trio berlinense de 1977 e 79 por vezes acaba injustamente esquecida quando se aborda o todo da sua obra.

sexta-feira, agosto 30, 2013

Uma canção para o verão (2013.21)

Concluímos hoje mais uma série de canções escolhidas para ir ouvindo ao longo do mês de agosto (tradição que aqui já se instalou desde 2008)... E a fechar fica uma viagem no tempo até 1967, e a uma canção marcante da discografia de Françoise Hardy, num "filme" televisivo da época. Aqui fica Volià.

Uma campanha para poder cantar 'Vitória'

Foto: N.G.
O Museu do Louvre vai lançar na próxima terça-feira uma campanha de recolha de fundos (objetivo: um milhão de euros) para permitir o restauro da Vitória de Samotrácia, uma das peças mais icónicas da sua coleção que mora ao cimo de uma das escadarias mais concorridas do museu (afinal a Mona Lisa está ali perto e as hordas diárias de gente de máquinas e telemóveis na mão pode não ver outros cantos do edifício, mas aquele não falha). Descoberta em 1863 na ilha de Samotrácia, esta escultura do século II a.C. representa a deusa da vitória Nike como a proa de um navio. A campanha de restauro visa limpar a estátua e recuperar toda a escadaria onde reside. A estátua deverá regressar ao lugar onde há muito a conhecemos em 2014. A reparação completa da escadaria deverá estar concluída em 2015. 

Qualquer um de nós pode contribuir online. Neste link pode ler mais sobre a campanha de restauro e a obra a recuperar.

Repoisções de verão:
'How I Ended This Summer' (2010)

Nem sempre o verão é terreno de calor... Mesmo com praia, a latitude a que a história se conta pode pedir mais que um calção e uma toalha. É o caso. Estamos na península de Chukotka. No extremo nordeste da Rússia, o mar ártico a Norte, o Alasca a Leste... Estamos em concreto numa ilha, afastada de tudo e todos onde além dos ursos polares e das trutas pouco mais encontramos senão dois habitantes. E é em volta dos dois que o realizador Alexei Popogrebsky faz nascer em How I Ended This Summer (título traduzido para inglês) um filme que, sem procurar caminhos do postal documental, mostra como sabe olhar o espaço para dele fazer mais que apenas o “fundo” cénico em volta do qual evolui uma narrativa.

A paisagem é desolada, mas imponente. Dos olhares sobre o mar, as falésias de xisto, as praias pedregosas, a tundra a câmara mostrando-nos não apenas as formas, mas também o sentido de solidão, de isolamento e, sobretudo, distância, que a paisagem sugere. É assim, longe, que vivem dois homens. Não sabemos há quanto tempo ali estão, mas depreendemos que, por ali, as temporadas de trabalho não se medem ao ritmo da semana em clima urbano, com horário das nove às cinco e as folgas logo a seguir. Ali trabalha-se ininterruptamente, dormindo entre tarefas. E só não é de sol a sol porque, em pleno verão ártico, o sol não se põe nunca, tocando por minutos a linha do horizonte para voltar logo depois a subir... Nesta região estão instalados alguns postos de observação meteorológica cujas observações permitem recolher dados sobre as alterações climáticas. Mas não há uma agenda ecologista no texto. Vemos apenas que o dia a dia daqueles dois homens vive de incessantes medições em estações e dados de telemetria, que enviam de tantas em tantas horas para uma estação maior, supomos que no continente... Não falam dos fins a que se destinam os valores que colhem. De resto, só os vemos a ditar números. Nem sabemos bem do quê. Pressão atmosférica? Temperatura? Albedo?... O certo é que pouco resta aos dois senão o cumprir dessa rotina, ocasionalmente com pontos de fuga nas horas vagas.

Eles são Gulybin (interpretado por Sergei Puskepalis) e Danilov (Grigory Dobrygin). O primeiro um veterano já conhecedor do espaço, do trabalho e transformado em servo de uma rotina que não ousa romper, a mais séria das suas infrações sendo ocasionais passeios de barco a uma laguna onde pesca trutas. O segundo é mais jovem, supomos que ainda estudante universitário (está ali com o fim de escrever um ensaio com o título do próprio filme), e mora nos antípodas do comportamento do primeiro. Agarra-se a um radar como se fosse um carrocel, usa brinco, ouve rock’n’roll por uns headphones que raramente esquece quando sai da estação. O que esquece, por vezes, são os cartuchos da espingarda que não deve nunca deixar no armário quando se afasta um pouco, não vá ter um encontro imediato com um urso... Que, pelo que o mais velho conta, não são coisa fofinha de peluche e já mataram um colega numa campanha anterior.

How I Ended This Summer pode refletir sobretudo sobre a mutação de comportamentos que o isolamento por vezes desencadeia. Mas o seu foco está antes na forma como, afastados dos lugares onde a população em massa vive, dois homens podem ser, cada qual, o paradigma de uma Rússia. Uma, vergada a regras e conservadora. Uma outra mais desafiante, mas que não parece ter rumo definido. Mas tudo isto sem conotações políticas face ao poder vigente. Isso daria (e dará certamente) outros filmes...

PS. Este texto é a adaptação de um post anteriormente publicado no Sound + Vision

quinta-feira, agosto 29, 2013

Lady Gaga, Elvis e o resto

Esta imagem a cores surgiu recentemente na secção de fotografias da revista Rolling Stone e ilustra os momentos de convívio de Lady Gaga com um grupo de fãs, numa recente passagem pelo programa da ABC, Good Morning America (19 de Agosto). Vale a pena olhá-la a par desta outra imagem, a preto e branco, disponível no site oficial de Elvis Presley.
Que aconteceu no tempo — mais de meio século — que separa as duas imagens? Se nos quisermos ficar pelo banal relatório tecnológico, diremos que o mundo passou a desfrutar de uma muito concreta invenção: o telemóvel. Mas a história dos gadgets não faz sentido como mera acumulação de referências "científicas". Porquê? Porque é sempre uma história de pessoas, gente viva, corpos e olhares.
O que mudou é a própria pulsão que conduz à imagem. Com Elvis, a imagem nasce do desejo de olhar o ídolo — todos os olhares confluem para ele. No exemplo de Lady Gaga (obviamente extensivo a muitas outras personalidades do entertainment), vive-se uma mera antecipação pueril da imagem, de tal modo que o aparato técnico obriga a que já ninguém olhe para a star — todos olham para o gadget, emergindo o autor da fotografia como motor, e matéria principal, da sua figuração. Passámos da sensualidade do olhar para a asséptica multiplicação de imagens.

Uma canção para o verão (2013.20)

Já na reta final da série que escolhemos este ano de canções para ouvir ao longo de agosto, fica mais um olhar de verão que não corresponde aos paradigmas habitualmente imaginados para os dias de calor. Nem festa, nem luz, nem praia... Chama-se Summertime Sadness e foi um dos temas apresentados no alinhamento do álbum de estreia de Lana del Rey editado no ano passado. Aqui ficam as imagens.

Há personagens de Dylan para ver num museu

Este texto foi originalmente publicado na edição de 25 de agosto do DN com o título 'As outras faces de Bob Dylan chegam ao museu'.

As linhas do rosto são angulosas e marcadas. O olhar não esconde o cansaço. O boné sugere que seja um homem da classe trabalhadora. O nome? Skip Sharpe... A seu lado um rosto feminino. De queixo anguloso, cabelos longos, roupa de verão e olhar distante. Chama-se Nina Felix. Tal como nas personagens de uma canção, podem ter partido de memórias de figuras reais, mas nada exclui que não sejam também fruto de ficções. Estes são dois entre os rostos que agora moram numa das salas da National Potrait Gallery (em Londres), que assim acolhe a primeira exposição de pintura de Bob Dylan no espaço de um museu em solo britânico.

'Skip Sharpe'
Sob o título “Bob Dylan: Face Value”, esta mostra de 12 retratos inaugurou-se ontem na National Portrait Gallery (nas traseiras da National Gallery), devendo ali permanecer até 5 de janeiro de 2014, sempre com entrada gratuita. Tal e qual o próprio texto de apresentação deste museu esclarece, a exposição não apresenta as suas mais habituais imagens de figuras do nosso tempo ou de outras épocas, sendo antes produto do trabalho “de um retratista”. Estes são, continua o texto, “retratos de personagens com uma amálgama de traços que Dylan colheu das suas experiências de vida, de memórias e da sua imaginação”, projetando-as em pessoas ora reais ora de ficção.

John Elderfield, especialista em História da Arte que desempenhou um papel determinante no processo que conduziu estes retratos à National Portrait Gallery, descreveu já que as pinturas de Bob Dylan, tal e qual as suas canções, “são produtos da sua extraordinária e inventiva imaginação”, referindo ainda que nascem da “mesma mente e do mesmo olhar” pelo “mesmo artista contador de histórias para quem mostrar e contar - o temporal, o espacial, o verbal e o visual - não são facilmente dissociáveis”. Por sua vez, Sandy Nairne, que dirige neste momento a National Portrait Gallery, diz no texto oficial do museu que Bob Dylan “é uma das figuras culturais mais influentes do nosso tempo”, lembrando que o músico “sempre criou um mundo muito visual tanto nas suas palavras e músicas, como o faz nas pinturas e pastéis”.

'Nina Felix'

Com uma carreira na música que ultrapassa já o meio século, com 46 álbuns editados, mais de 600 canções e vendas de discos acima dos 110 milhões de unidades, Dylan não é contudo um novato no campo das artes plásticas. Sabe-se que já desenhava nos dias de infância e que pintava desde a década de 60, mas a verdade é que só começou a expor publicamente as suas obras de há cerca de seis anos a esta parte. Mesmo assim já tinha havido primeiros sinais do seu olhar como artista plástico, desde a capa do álbum de 1970 Self Potrait (com sequela recentemente editada em Another Self Portrait, recorrendo à mesma ideia na hora de pensar a ilustração para a capa) ou uma série de esboços apresentados em 1994 sob o título Drawn Blank (que, juntamente com outras séries de 2007 e 2008 seriam mais tarde expostos na Kunstsammlungen Chemnitz, na Alemanha e, mais tarde, na Halcyon Gallery, em Londres). Em 2010, o Statens Museum for Kunst, em Copenhaga (Dinamarca) expôs a sua Brazil Series. E em 2011 a Gagosian Gallery, em Nova Iorque, teve patente a Asia Series. Entre as mais recentes exposições de obras de Dylan contam-se a mostra da The Revisionist Series na Gagosian Gallery em Nova Iorque (2012) e a The New Orleans Series, inaugurada já este ano no Palazzo Reale em Milão.

'Self Portrait'

'Another Self Portrait (1969-1971)'

A exposição de Bob Dylan é complementada com a edição de Bob Dylan: Face Value: Character Sketches, um livro de 64 páginas com um ensaio de John Elderfield.

Dylan não é contudo caso único entre músicos de terreno pop/rock com carreira em paralelo nas artes plásticas. Nomes como os de David Bowie, Kurt Wagner (dos Lambchop), Robyn Hitchcock ou Ani DiFranco, ou, nos domínios da fotografia, Lou Reed ou Nick Rhodes (Duran Duran), são alguns exemplos de vozes que não se esgotam na música.

Música para ouvir em dias quentes (12)

Discos para ouvir em tempo de Verão... Este texto integra a série 'Para ouvir na praia', que por estes dias tem sido publicada no DN.

Foi em inícios dos anos 80, num documentário realizado por Peter Greenaway, que Philip Glass descreveu de forma magistral o deliciosos paradoxos que podem habitar na forma como as pessoas vivem a sua música. “ Há quem goste porque é barulhenta, e quem goste porque é rápida, há quem goste porque é muito clássica, há quem goste porque não é clássica, há quem goste porque soa a música indie e quem goste porque acha que não soa a música indie”... Algo desencantado com o panorama da música clássica em meados de 70 (numa altura em que Glass encontrava o seu eureka ao som de Einstein on The Beach), Simon Jeffes, um multi-instrumentista britânico de formação clássica e viajado pelo mundo (por “culpa” da itinerância do trabalho do pai) resolveu criar uma banda diferente que, como poucos projetos musicais, assimilou esta mesma capacidade em jogar em frentes aparentemente contrárias de que falava Glass.

Estreados em disco em 1976, editaram em 1987 Signs of Life, um quarto álbum que, mais ainda que todos os anteriores, consegue libertar-se da releção mais evidente com certas geografias, cruzando latitudes e longitudes, diluindo-as num corpo com alma global, com referências musicais que vão da folk aos minimalistas. Instrumental, a música da Penguin Cafe Orchestra sempre desafiou as tentativas de rotulagem, nem encaixando na world music, nem na pop nem na clássica, entre todas colhendo boas ideias.

quarta-feira, agosto 28, 2013

Mert & Marcus: todos os estilos

Malgosia Bela (LOVE #8)
Foram eles que fizeram o portfolio do álbum MDNA: Mert Alas e Marcus Piggott, ou apenas Mert & Marcus, transformaram-se numa das duplas mais procuradas do mundo da moda, definindo-se por um estilo capaz de integrar... todos os estilos. É assim que são tratados num perfil que vale a pena descobrir na revista American Photo.
Angela Lindvall (POP Fall/Winter 2002/2003)

Entre policial e documentário (2/2)

Até Ver a Luz, primeira longa-metragem de Basil da Cunha, prolonga a lógica documental, e também o desejo de ficção, das suas experiências em formato curto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Agosto), com o título 'O espaço, o tempo e o realismo'.

[ 1 ]

São muito variadas as experiências que têm procurado devolver ao cinema a intensidade de algum realismo. Até Ver a Luz, de Basil da Cunha, é mais um curioso exemplo dessa vontade de reencontrar a vibração primordial dos corpos e a verdade material de objectos e lugares.
Problema complexo, sem dúvida, desde logo porque envolve alguma resistência ao “naturalismo” determinista de muita informação televisiva, mas também porque não podemos reduzi-lo às propostas de um cinema mais ou menos “independente”. Observe-se a ansiedade realista de alguns “blockbusters” (Elysium, de Neill Blomkamp, pode servir de sintoma) e o modo como, melhor ou pior, nela se exprime a consciência da saturação do cinema dito de “efeitos especiais”.
Para além das suas diferenças de produção, muitos desses filmes, incluindo Até Ver a Luz, revelam uma contradição desconcertante: procuram a dimensão humana de qualquer relação, ao mesmo tempo cedendo a uma espécie de esperanto tecnológico da “velocidade” (câmara à mão, aceleração de montagem, etc.) que, não poucas vezes, retira ao espectador o prazer de ver e admirar a duração concreta daquilo que está a acontecer.
Não pretendo minimizar a sinceridade de Até Ver a Luz, muito menos os momentos de genuína emoção que Basil da Cunha consegue gerar com os seus actores não profissionais. O que está em causa é uma tendência transversal do cinema contemporâneo, ligado a culturas e economias muito diversas. A saber: o abandono da noção mais básica (e mais cinematográfica) de “plano” como unidade vital de construção formal do espaço e gestão narrativa do tempo. Como se este cinema que nos quer mostrar o que nunca vimos, secundarizasse a própria dúvida que o faz nascer: como partilhar a visão do filme com o olhar do espectador?