quinta-feira, março 31, 2022

Pensar [citação]

>>> Chamo "impensado" àquilo a partir do qual penso
e que, por isso mesmo, eu não penso.

FRANÇOIS JULLIEN
"Faison confiance au déroulement face au devancement"
in Où est passé le temps (Gallimard, 2012)

A democracia ameaçada pela maioria!

PAUL KLEE
Pintura de maio
1925

A. A cena política portuguesa — dos protagonistas directos até aos chamados meios de comunicação — continua enquistada no seu infantilismo de pensamento. Aliás, nem se trata de pensamento, apenas da incessante colagem de fait divers, incidentes e soundbytes, num delírio em que, como se pode observar, quase todos os envolvidos se reconhecem e deleitam.

B. Surgiu, agora, uma nova mitologia — mitologia que, como Roland Barthes nos ensinou, funciona como uma narrativa que se espalha como um vírus ideológico. A saber: a existência de uma maioria parlamentar pode ser uma terrível ameaça para a democracia! Eis o que se pode chamar uma forma perversa de desqualificar e, no limite, insultar "aquilo" que, de acordo com os mensageiros de tal ameaça, se diz estar a defender — ou seja, a vontade do povo.

C. Escusado será dizer que o reconhecimento desta perversidade — que só contribui para diminuir os fundamentos e as práticas de qualquer dinâmica democrática — seria sempre válido, fosse qual fosse a força política detentora de tal maioria. Mas não nos iludamos: até mesmo esta ideia está fragilizada, já que o mesmo tipo de (não-)pensamento tende a encarar qualquer reflexão política como expressão de alguma acção partidária.

Arcade Fire: vem aí o sexto álbum

A 6 de maio vão chegar notícias do Canadá. Ou seja: já não falta muito para conhecermos We, sexto álbum de estúdio dos Arcade Fire, ao que parece procurando reavivar uma energia primitiva — primitiva na trajectória da banda, primitiva no país sem fronteiras do indie rock. A prova: The Lightning I, II em magnífico teledisco assinado por Emily Kai Bock.

segunda-feira, março 28, 2022

OSCARS 2022
— que aconteceu no Dolby Theatre?

> Debater os Oscars? Digamos que um tema eventualmente interessante, envolvendo sugestivas questões artísticas, a par de opções industriais e comerciais, seria perguntar como — e porquê? — um simpático, competente e banalmente rotineiro telefilme como CODA acaba por ser celebrado (como melhor filme do ano) por uma Academia do cinema e, assim o supomos, cinéfila?

> O certo é que a agressão de Will Smith a Chris Rock afunilou tudo o resto e, em boa verdade, ficou como o momento central da 94ª cerimónia dos Oscars — lamentável, grosseiro, ofensivo, mas central.

> A agressão aconteceu num contexto simbólico (a reorganização da Academia visando uma cada vez maior abertura à pluralidade dos filmes e do cinema) e até cenográfico (o emblemático Dolby Theatre) que está longe de ser banal. A importância e a dignidade de tal contexto suscitam, desde logo, uma interrogação deontológica: que atitude vai a Academia tomar face ao comportamento de Will Smith?

> A interrogação arrasta, aliás, uma dúvida metódica que, compreensivelmente, já começou a ser colocada por alguma imprensa dos EUA: que efeitos tão triste episódio pode ter na própria relação da indústria com Will Smith, em particular com os seus projectos mais imediatos?

> No limite mais poético, mais brutalmente poético, se assim nos podemos exprimir, Will Smith lembrou (quando agradecia o Oscar que lhe foi atribuído poucos minutos depois de ter agredido Chris Rock) que "o amor faz-nos fazer coisas loucas". Exactamente. Seria útil que alguém, ou alguma entidade, confrontasse Will Smith com a pergunta clássica a que, no mínimo, está obrigado a responder: de que falamos quando falamos de amor?

A IMAGEM: Jérôme Sessigni, 2022

JÉRÔME SESSIGNI / Magnum
Bilohorodka, Ucrânia
13 março 2022

domingo, março 27, 2022

Jean-Daniel Pollet
— no país do mar e do cinema

Philippe Sollers em Dieu Sait Quoi (1993):
leituras, espelhos e ecrãs

Graças ao ciclo da Cinemateca dedicado a Jean-Daniel Pollet reencontramos as aventuras do nosso olhar e os seus ecrãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 março).

Comunicação. A proliferação dos chamados meios de comunicação tornou-nos indiferentes à linguagem. Às linguagens. Deixámos de pensar, ainda menos discutir, as linguagens que usamos. Ou melhor, restringimos a sua discussão ao cumprimento pueril das normas de correção (política, simbólica, sexual, etc.) com que descrevemos, ou julgamos descrever, o mundo à nossa volta.
Olhemos, precisamente, à nossa volta. Em todo o planeta televisivo, vemos e escutamos um qualquer relator — com um microfone na mão e uma paisagem ucraniana em fundo — a falar durante cinco minutos para o olho silencioso de uma câmara… e aquietamos as nossas angústias, aceitando que estamos perante um modelo mágico de conhecimento. O medo sustenta a nossa frágil razão: afinal de contas, sem esse relator sentir-nos-íamos ainda mais sós face ao absurdo do mundo. Ao mesmo tempo, uma pergunta sussurra e enreda-se no nosso medo: será que estamos a saber utilizar todas as potencialidades dos meios decorrentes da fascinante tecnologia de que hoje dispomos?
Deslocando a questão para o país cinematográfico, esta é uma pergunta que nos pode levar a reconhecer que o cinema não evolui de forma linear — o passado refaz o presente. Penso no exemplo corrente dos efeitos especiais dos filmes dos estúdios Marvel. Em boa verdade, se olharmos com um mínimo de disponibilidade mental para os filmes que Georges Méliès realizou há mais de 100 anos (A Viagem à Lua é de 1902), compreenderemos que o génio inventivo dos efeitos de Méliès reduz os departamentos técnicos da Marvel a uma colecção de burocratas sem imaginação.
Descubram-se, a esse propósito, os filmes de Jean-Daniel Pollet (1936-2004), a passarem na Cinemateca Portuguesa num ciclo que se prolonga até final de março. No seio da Nova Vaga francesa, Pollet foi uma figura das margens, mas não marginal — bem pelo contrário: central no pensamento e na acção desse movimento (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.) que refez todo o continente cinematográfico, pensando e repensando as suas linguagens.
O célebre Méditerranée, datado de 1963 — ano em que o grande espectáculo de Hollywood era Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, ou em Portugal surgia o Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira —, pode servir de símbolo exemplar da visão cinematográfica de Pollet. A saber: uma atenção militante (entenda-se: obsessiva) aos sinais que herdámos da história, cruzando-os com os enigmas dos elementos naturais — o mar é, em Pollet, uma entidade propriamente mitológica, à beira do divino — e os sobressaltos da palavra escrita. E também da sua transfiguração em pura oralidade. Como diz a voz de Méditerranée, este é um “país múltiplo, falsamente adormecido”.
Pollet foi arauto de uma liberdade criativa que, por vezes, precipitadamente, encaramos como uma “descoberta” do século XXI. De facto, os seus filmes dispensam qualquer convenção fechada que tenda a separar a “objectividade” do documentário e o “artifício” da ficção. Creio mesmo que a sua curta-metragem de estreia, Pourvu Qu’on Ait l’Ivresse (1957), primeira de muitas colaborações com o actor Claude Melki, registando a timidez de um homem face às mulheres num baile de domingo, pode resumir a agilidade do seu olhar: tudo aquilo tende para uma alegria burlesca (Buster Keaton é uma referência recorrente quando se fala de Melki na obra de Pollet) que não exclui a dimensão de testemunho de um tempo social muito concreto, de irrepetíveis gestos e singularidades.
Pollet assinou um dos seis episódios de Paris Visto Por… (1964), deliciosa colecção de histórias que ficou como uma espécie de manifesto da Nova Vaga. O seu trabalho foi-se abrindo à pluralidade das linguagens, incluindo a “aplicação” do movimento do cinema às imagens fotográficas. Assim acontece em Contre-Courant (1991), montagem dramática de fotos da paisagem urbana parisiense, ou no belíssimo Jour Après Jour (2006), filme póstumo, concluído por Jean-Paul Fargier, tendo como base as fotografias que Pollet foi fazendo na sequência de um grave acidente que, na fase final da sua vida, o impediu de caminhar.
No limite, um pouco à maneira do Godard do século XXI, Pollet convoca memórias dos seus próprios filmes para relançar a reflexão sobre os poderes e limites do cinema. É o caso de Dieu Sait Quoi (1993), em que a poesia de Francis Ponge o leva a revisitar imagens filmadas para Mediterranée e também Contretemps (1988), revendo, por exemplo, Philippe Sollers, agora num ecrã televisivo. Fica, por isso, uma lição básica: as imagens existem e renascem através dos ecrãs em que as vemos, refazendo a nossa identidade.

sábado, março 26, 2022

Do teatro para o cinema

Annette Bening e Josh O'Connor:
saudades do paraíso perdido

Tendo como base uma peça de sua autoria, William Nicholson realizou Uma Réstia de Esperança, filme capaz de nos devolver o valor das palavras e a importância dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 março).

Como todos sabemos (a começar pelos distribuidores e exibidores de filmes), a nossa actualidade cinematográfica está perversamente inflacionada — esta semana [17 março], entre salas e plataformas de streaming, surgem 17 novos títulos. A avalanche de estreias faz com que haja uma percentagem mínima de filmes protegidos por grandes campanhas promocionais. Os outros, silenciosamente, batalham pela atenção dos espectadores.
Entenda-se: esta é uma observação objectiva, não uma fútil atribuição de “culpas” seja a quem for. Acontece que, por vezes, entre essas estreias há pequenas pérolas que merecem ser descobertas. É o caso de Uma Réstia de Esperança (Hope Gap no original), produção britânica revelada em setembro de 2019, no Festival de Toronto, com William Nicholson, argumentista e realizador, a adaptar uma peça de sua autoria, intitulada The Retreat from Moscow.
Na conjuntura actual, as raízes teatrais deste drama acabam por adquirir uma importante dimensão cinematográfica. Dito de outro modo: nada do que aqui acontece tem que ver com o novo-riquismo de efeitos (pouco) especiais, muito menos com seres vindos de outras galáxias para atormentar os pobres humanos — são as palavras que comandam.
Em cena estão Grace e Edward, habitantes de Seaford, cidade costeira do sul da Inglaterra. Casados há 29 anos, vivem num ambiente de solidões desencontradas: ele professor de liceu, obcecado pelas suas intervenções na Wikipedia, ela envolvida na organização de antologias poéticas. Subitamente, ou talvez não (trata-se, afinal, de uma crise que se foi insinuando em todos os detalhes do quotidiano), Edward confessa que tem uma relação com outra mulher e vai partir… As convulsões afectivas enredam-se com o facto de o primeiro ouvinte da sua confissão ser o filho que vive em Londres, visitando Seaford de forma irregular…
O que mais conta são, de facto, as palavras que circulam por este labirinto privado. Aliás, se pelo meio o filme se “perde” um pouco, isso parece resultar da tentativa criar uma alternância de espaços algo supérflua. Porquê supérflua? Porque se há “tema” que pontua os momentos vitais de Um Réstia de Esperança é, justamente, a dificuldade de verbalização do que está a acontecer. Por alguma razão, a demanda de Grace dirgida a Edward envolve o desejo de que ele fale, não pare de falar.
Annette Bening e Bill Nighy são magníficos na representação dessa relação conjugal cuja ilusória naturalidade vai ser drasticamente posta à prova. No papel do filho, Josh O’Connor (mais conhecido pela interpretação da personagem do Príncipe Carlos na série The Crown) consegue encarnar a ambivalência de sentimentos que o faz viver num ziguezague moral, também ele habitado por muitas palavras por dizer, entre o pai e a mãe. Sem esquecer que William Nicholson sabe tirar o melhor partido da paisagem costeira, afinal transformando Seaford numa verdadeira personagem da história de Grace e Edward — dir-se-ia um pequeno paraíso perdido, desencantado com as tragédias íntimas dos humanos.

Fuga de Mariupol [NYT]

Intitula-se "A Desperate Escape from Mariupol". Assinado por Yousur Al-Hlou, Masha Froliak, Ben Laffin e Benjamin Foley, este é um video do New York Times, continuando a testemunhar a experiência de cidadãos ucranianos face à agressão do governo da Rússia.
 

sexta-feira, março 25, 2022

John Berger: sobre o tempo

Regresso a A Aparência das Coisas, traduzido por José Miguel Silva, um dos livros de John Berger (1926-2017) disponíveis no mercado português com chancela da Antígona.
Desde logo porque a sua condição de "Ensaios e artigos seleccionados" lhe confere a vivacidade de um textura de diferenças e contrastes que, afinal, em última instância, definem a singular energia — e alegria — de um singularíssimo sistema de pensamento.
Depois, porque há em tudo isso uma teatralidade a que apetece chamar realista, já que as suas deambulações querem afirmar e, de alguma maneira, servir uma exigência, de uma só vez epistemológica e ética. A saber: não desistir de olhar o mundo, vendo o que pode ser visto — será preciso recordar que o livro mais famoso de Berger se intitula Modos de Ver?
Num dos "Retratos" que o livro inclui, dedicado a Alexander Herzen, Berger aventura-se no labirinto da herança marxista, sublinhando a sua actualidade, não propriamente como um património congelado no tempo por acção de uma qualquer ideologia partidária (ou por uma partidarite que alienou a própria noção de discurso ideológico), antes reconhecendo a sua operacionalidade prática e teórica. Assim:

>>> Muitos marxistas e antimarxistas têm-se mostrado tão ansiosos por provar ou refutar a letra das profecias de Marx que ignoraram um dos modos em que ele foi mais profunda e incontestavelmente profético. O modo de descontinuidade demonstrado pelo seu pensamento converteu-se num elemento essencial dos meios de comunicação modernos. A descontinuidade é hoje intrínseca à nossa visão da realidade.

Le Corbusier, Victor Serge ou Walter Benjamin são alguns dos outros "retratados" por Berger, num livro em que encontramos reflexões que podem oscilar entre a ligeireza ambígua da reportagem e a metodologia austera do ensaio — a ponto de estar em jogo o carácter de uma só vez contundente e precário de qualquer noção de tempo. Há mesmo um ensaio que se intitula "O passado visto de um futuro possível".

>>> About time (Channel Four, 1985).

quarta-feira, março 23, 2022

La Règle du Jeu: elogio da leitura

A revista dirigida por Bernard-Henry Lévy, La Règle du Jeu, celebra 30 anos com um número especial organizado a partir de uma sugestiva interrogação: Comment lisez-vous?
Ao todo, são 177 vozes que, cada uma delas esclarecendo como vive, habita ou protagoniza um determinado gosto da leitura, nos convocam também para as singularidades da escrita — das escritas.
A propósito desta edição, BHL esteve na France Culture: uma bela conversa em que evocou toda uma trajectória em que pensamento e edição — ou, de alguma maneira, passado e presente — são faces da mesma moeda, isto é, pontuações criativas na circulação de valores do mundo contemporâneo.

terça-feira, março 22, 2022

O conceito “social” do Facebook

O que é e, sobretudo, o que significa formatar a circulação de informação consumida por 2,8 mil milhões de pessoas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 março).

Praticamente desde a sua invenção, o Facebook tem lidado com problemas suscitados pela gestão dos respectivos “conteúdos”, em especial os que possam ser interpretados como incitamentos a formas de violência. E há que reconhecer que Mark Zuckerberg e os seus advogados conseguiram montar um dispositivo “social” que tende a paralisar o nosso pensamento de consumidores: a hiperbolização dos problemas legais enfrentados pelo Facebook vai mascarando as tragédias morais que lhe possam estar associadas.
Por estes dias, surgiu uma nova questão indissociável dessa conjuntura de pensamento que, escusado será sublinhá-lo, é também um sistema mediático de representação do mundo. Segundo as notícias (tomo como referência um artigo da BBC publicado no respectivo site, no dia 11 de março), a empresa Meta, proprietária do Facebook, fez saber que “Facebook e Instagram permitirão em alguns países que os utilizadores apelem à violência contra Vladimir Putin e os soldados russos.”
A tomada de posição da Meta é particularmente explícita: “Tendo em conta a actual invasão da Ucrânia, estabelecemos uma excepção temporária para que os que estão a ser afectados pela guerra possam expressar sentimentos violentos contra as forças armadas invasoras”. A BBC acrescenta que tal determinação permitirá que “os utilizadores de países como a Rússia, a Ucrânia e Polónia possam apelar à morte de Putin, Presidente da Rússa, e Lukashenko, Presidente da Bielorrússia”.
Semelhantes directrizes estão a gerar uma enorme agitação “social” (como, aliás, o Facebook tanto preza). E até mesmo o actual poder político russo, responsável pela terrível orgia de violência a que vamos assistindo dia após dia, achou por bem vir a público comentar o assunto. Num tweet da Embaixada da Rússia nos EUA, surgiu esta “reivindicação”: “Pedimos às autoridades dos EUA que ponham fim às actividades extremistas da Meta e tomem medidas para levar os perpetradores à justiça”. Mais ainda: “Os utilizadores do Facebook e Instagram não deram aos donos dessas plataformas o direito de determinar o critério de verdade, colocando as nações umas contra as outras.”
Seria saudável, creio, que o cinismo diplomático das autoridades russas não nos bloqueasse ainda mais, impedindo-nos de pensar e discutir a ideologia do Facebook. Uma coisa é a profunda revolta que sentimos face à agressão militar do governo russo contra a Ucrânia. Outra coisa, apesar de tudo bem diferente (até porque muito anterior à tragédia que o povo ucraniano está a viver), é o sistema de “vigilância” de que o Facebook se arroga detentor, a ponto de se apresentar como entidade legisladora da circulação de informação no planeta Terra — afinal de contas, estamos a falar de uma plataforma que, em 2020, anunciava possuir 2,8 mil milhões de utilizadores.
Desde o início de tudo isto, há qualquer coisa de obsceno na palavra “social” associada ao Facebook — é mesmo uma palavra reivindicada, formatada e normalizada pelo Facebook. A tal ponto que deixámos de identificar todas as nossas redes (familiares, profissionais, afectivas, etc.) como sociais, aceitando que uma entidade comercial assumisse a exclusividade do seu uso.
Na raiz da concepção do Facebook está a instalação de uma lógica multiplicadora potencialmente infinita. Em 2010, fomos alertados para isso por esse filme prodigioso que é A Rede Social (2010), escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. A avalanche “social” do Facebook, na altura com cerca de 500 milhões de assinantes, era mesmo sustentada por diversos discursos “libertários” (alguns de natureza jornalística) que proclamavam um novo ecumenismo: estamos todos “ligados”, logo isso só pode favorecer a comunhão, a transparência e a paz…
A certa altura, em A Rede Social, numa cena dos tempos da universidade, a personagem de Zuckerberg (Jesse Eisenberg) diz mesmo a Eduardo Saverin, co-fundador do Facebook: “As pessoas querem estar online e saber dos amigos, porque não construir um site que ofereça isso? Amigos, imagens, perfis, tudo o que se possa visitar, navegar, talvez alguém que acabámos de conhecer numa festa… Eduardo, não estou a falar de um site de encontros, estou a falar de recolher toda a experiência social da universidade e colocá-la online.”
Compreendemos agora: “toda a experiência social” significava, afinal, assumir as funções de tribunal da verdade e da mentira, da paz e da violência, no limite em nome da satisfação de 2,8 mil milhões de pessoas. Numa sessão pública realizada a 7 de novembro de 2014 nas instalações do Facebook, Zuckerberg, em pose de bom moralista, não deixou de classificar A Rede Social como um filme “algo ofensivo”. Ainda assim, nessa mesma sessão ficámos a saber que Fincher foi especialmente rigoroso na representação do guarda-roupa de Zuckerberg — a sua “t-shirt” cinzenta era mesmo a indumentária preferida para o dia a dia de trabalho.

sábado, março 19, 2022

A IMAGEM: Jacob Aue Sobol, 2007

JACOB AUE SOBOL / Magnum
Tóquio, Japão
2007

SOUND + VISION Magazine
— "Vive la France!" [FNAC, hoje, dia 19]

A França está na actualidade cultural portuguesa. A propósito da Temporada Portugal-França 2022, propomos uma selecção de imagens e sons em que, da música ao cinema, as memórias dos clássicos se cruzam com experiências do presente.

>>> FNAC Chiado — hoje, 19 março, 17h00.

sexta-feira, março 18, 2022

A tragédia do Homem Morcego [1/2]

[1989]

O vigilante de Gotham City regressou às salas de cinema: Batman é um herói de todas as épocas, desde os “serials” da primeira metade do século XX até às grandes produções dos nossos dias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 fevereiro).

[2022]
Chegou o filme The Batman (3 de março), nova aventura de um dos mais populares super-heróis da banda desenhada e do cinema, agora com Robert Pattinson a estrear-se como intérprete do Homem Morcego. Digamos que não será exactamente um “renascimento”, já que, ao longo das últimas décadas, a personagem tem-se mantido como objecto de muitas variações, algumas admiráveis, outras nem tanto… Talvez se possa mesmo dizer que este filme representará, antes de tudo o mais, uma renovada aposta da DC Comics no sentido de revitalizar uma das suas mais importantes “franchises” — a par, obviamente, do Super-Homem. Vale a pena, por isso, reorganizar algumas memórias.
Nos últimos anos, o vigilante de Gotham City, empenhado em combater o crime fazendo prevalecer um ideal de justiça, tem tido uma vida cinematográfica algo discreta ou, pelo menos, pouco consentânea com a sua aura mitológica e também a sua vocação espectacular. Bastará lembrar que, no século XXI, aquele que é, de longe, o melhor filme ligado ao universo de Batman — Joker (2019), com o genial Joaquin Phoenix — nem sequer o tem como figura central, surgindo apenas como uma personagem discreta, ainda em construção.
Mais do que isso, Batman e Super-Homem têm sido tratados como figuras estranhamente “incompletas”, necessitando de algum apoio dramático para relançar as suas sagas, a começar pelo filme em que, por assim dizer, repartiram as responsabilidades espectaculares: Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça (2016), com um Ben Affleck algo desfasado, deixando a sensação de que a interpretação do homem da capa negra não terá sido uma das escolhas mais felizes no seu trabalho como actor. Reapareceu, é verdade, em Esquadrão Suicida (2016) e nas duas versões de Liga da Justiça (2017 e 2021), mas sempre anulado pela insólita condição de “secundário”.
Hoje em dia, produtos deste género dominam os planos dos grandes estúdios de Hollywood e, nessa medida, determinam o funcionamento dos mercados que cresceram dependentes das suas estratégias de difusão (na prática, o mundo todo). Sintoma eloquente é o facto de há muitos meses assistirmos ao aparecimento regular de notícias, imagens e trailers de The Batman, celebrando mais um grande investimento da DC Comics, procurando recuperar um espaço comercial que tem sido dominado pela produção com chancela Marvel (Vingadores, Homem Aranha, Capitão Marvel, etc.). Tudo isso, claro, é inseparável de elaboradas alianças com o sistema a que pertencem aqueles estúdios — a DC Comics é distribuída pela Warner Bros.; a Marvel está, desde 2009, integrada no império Disney (que pagou 4 mil milhões de dólares para a respectiva aquisição).

[1939]
Cinema & televisão

Os primeiros capítulos cinematográficos de Batman estão ligados a conjunturas de produção muito peculiares, em tudo e por tudo distintas dos modelos actuais. São mesmo “capítulos”, um pouco à maneira dos episódios de uma série televisiva, mas num diferente território de difusão.
O Homem Morcego surgiu, assim, nas salas de cinema, em 1943, quatro anos após a publicação da primeira aventura da personagem criada pelo desenhador Bob Kane e o escritor Bill Finger — acontecera a 30 de março de 1939 no nº 27 da revista Detective Comics. Intitulado Batman/O Homem Morcego, não era exactamente um filme, mas sim um “serial”, isto é, um conjunto de aventuras mais ou menos breves, muito populares desde o período mudo até ao começo da década de 1950: a sua estrutura implicava que o espectador interessado tivesse que regressar alguns dias mais tarde (normalmente uma semana) para conhecer a respectiva continuação.
Novo “serial” seria lançado em 1949, com o título Batman and Robin/Novas Aventuras do Homem Morcego, dando também protagonismo ao jovem parceiro de aventuras do herói. De qualquer modo, uma etapa decisiva aconteceria em 1966 através da aliança de televisão e cinema, quer dizer, rentabilizando em filme o sucesso da série Batman (iniciada no mesmo ano, terminaria em 1968, cumprindo três temporadas).
O estilo de representação de Adam West e Burt Ward (Batman e Robin, respectivamente) poderá parecer-nos, agora, uma risonha caricatura de um passado mais ou menos nostálgico. O certo é que, na altura, essa passagem do pequeno ecrã televisivo para a grandeza das salas escuras representava um sedutor ganho espectacular com o seu quê de pioneiro. Num dos cartazes do filme escrevia-se mesmo: “Pela primeira vez no ecrã de cinema — e a cores!”
Depois, há na história cinematográfica de Batman um hiato de mais de vinte anos. Que aconteceu? Digamos que o cândido heroísmo dos primeiros tempos não “encaixava” nas muitas (e fascinantes!) atribulações artísticas vividas em Hollywood ao longo dos anos 60/70. Mesmo depois de Tubarão (1975), de Steven Spielberg, e A Guerra das Estrelas (1977), de George Lucas, Batman estava longe de ser uma escolha óbvia como matriz da grande aventura — será preciso recordar que a década de 80 foi dominada por um arqueólogo de chapéu e chicote chamado Indiana Jones?
Curiosamente, as coisas começaram a mudar graças ao Super-Homem. Ou seja, através de Superman - O Filme (1978), de Richard Donner, com o saudoso Christopher Reeve. O primeiro Batman da nova era — mais uma vez intitulado apenas Batman — surgiu em 1989, com assinatura do mais talentoso dos excêntricos de Hollywood: Tim Burton. A escolha de Michael Keaton como protagonista era, no mínimo, inesperada, mas funcionou, relançando essa curiosa dialéctica existencial entre a figura do vingador e a sua identidade secreta, o milionário e filantropo Bruce Wayne. O filme foi mesmo um dos maiores sucessos do ano, apenas superado por Indiana Jones e a Grande Cruzada. Sem menosprezar, claro, os outros trunfos do elenco: Kim Basinger e, sobretudo, Jack Nicholson, criando um Joker que serviu de matriz inspiradora de todas as variações que se seguiram.

[1987]
3 x Christian Bale

Tim Burton ainda assinou Batman Regressa (1992) — outra vez com Michael Keaton, agora na companhia de Danny DeVito e Michelle Pfeiffer, isto é, Pinguim e Catwoman, respectivamente — mas, para ele, a “era Batman” tinha chegado ao fim. O que se seguiu não foi propriamente brilhante e, de alguma maneira, bloqueou o desenvolvimento da “franchise”.
Os dois filmes dirigidos por Joel Schumacher — Batman para Sempre (1995) e Batman & Robin (1997) — apostaram num registo mais ou menos paródico, integrando actores como Jim Carrey e Nicole Kidman, no primeiro, e Arnold Schwarzenegger, no segundo. Batman & Robin entrou mesmo na galeria de grandes falhanços involuntariamente “divertidos”, a ponto de alguns fãs mais militantes nem sempre se lembrarem de quem interpretava o próprio Batman. Para a história, recordemos: foi primeiro Val Kilmer e, depois, George Clooney… Na apreciação crítica do segundo filme, Roger Ebert pôs o dedo na ferida: “Percebi que não já interessava quem interpreta Batman. Não está lá ninguém. Feitas as contas, a personagem é apenas o fato.”
Para agravar a situação, alguém se lembrou que a personagem de Catwoman (a que Pfeiffer tinha emprestado uma nova e perversa elegância) podia sustentar um filme. Assim surgiu Catwoman (2004), um desastre à moda antiga dirigido por Pitof, francês especialista em efeitos visuais, com a desamparada Halle Berry a tentar emprestar consistência a uma figurinha bidmensional, reduzida a marioneta de um espectáculo sem imaginação; Sharon Stone também por lá andava, num período em que foi coleccionando falhanços atrás de falhanços, depois da sua assombrosa composição em Casino (1995), de Martin Scorsese.
Enfim, usando uma terminologia da política, é caso para dizer que estavam reunidas as condições para… surgir Christopher Nolan. Depois do impacto de Memento (2000) e Insónia (2002), ele era uma figura em ascensão na máquina de Hollywood. A sua abordagem veio transfigurar o tratamento cinematográfico do universo de Batman, emprestando-lhe (ou devolvendo-lhe) uma vibração física e metafísica que alguns analistas associam à integração de elementos visuais e narrativos provenientes do livro Batman: Year One (1987), escrito por Frank Miller e ilustrado por David Mazzucchelli. Sem esquecer, claro, a contribuição decisiva do novo intérprete, o galês Christian Bale, que Nolan “entronizou” três vezes nos cenários de Gotham City.
Goste-se mais ou goste-se menos, a trilogia dirigida por Nolan — Batman - O Início (2005), O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro das Trevas Renasce (2012) — recolocou Batman numa encruzilhada de peripécias e emoções em que a manutenção da ordem na grande metrópole está sempre contaminada pelas suas memórias de infância, nomeadamente o episódio em que Bruce Wayne, ainda criança, assiste à morte dos próprios pais (evocado em Joker).
Muito para lá de qualquer registo de filme “policial”, a luta entre o Bem e o Mal adquire, assim, uma dimensão trágica que, cena a cena, assombra Bruce Wayne, ameaçando decompor a própria vocação mitológica de Batman. Em O Cavaleiro das Trevas, tal dinâmica tem como ponto de fuga a sofisticada composição do Joker por Heath Ledger (1979-2008) — valeu um Oscar póstumo de melhor actor secundário, persistindo como símbolo universal da paisagem moderna dos super-heróis.

quinta-feira, março 17, 2022

Stromae, Fils de Joie

O álbum Multitude, do belga Stromae, é mesmo aquilo que o título promete: uma fascinante colecção multidisciplinar (saudades desta palavra e da sua pedagogia...) em que os géneros se aproximam, contaminam e relativizam. Em tom de parábola política, visual e coreograficamente admirável, aí está o teledisco de Fils de Joie.

terça-feira, março 15, 2022

Jorge Silva Melo (1948 - 2022)

[ Artistas Unidos ]

Actor, encenador teatral, realizador de cinema, escritor, pensador do Portugal que somos e não somos, Jorge Silva Melo faleceu no dia 14 de março, no Hospital dos Lusíadas, em Lisboa — contava 73 anos.
O Teatro da Cornucópia, fundado com Luís Miguel Cintra em 1973, e os Artistas Unidos, entidade produtora surgida em 1995, onde dirigiu e produziu quase três centenas de espectáculos, são duas referências fulcrais na trajectória de Jorge Silva Melo. De qualquer modo, estão longe de esgotar a pluralidade da sua intervenção artística, também repartida pelo cinema e pela escrita.
Realizou filmes como Passagem ou a Meio Caminho (1980), Ninguém Duas Vezes (1984) e António, Um Rapaz de Lisboa (2002), este último tendo como base a sua peça homónima, estreada em 1995. António Palolo, Ângelo de Sousa e Fernando Lemos são alguns dos artistas plásticos que retratou em documentários. Como actor, surgiu em filmes de Manoel de Oliveira, Paulo Rocha e João César Monteiro, entre outros.
Luigi Pirandello, Bertold Brecht, Heiner Müller, Jon Fosse e Spiro Scimone são apenas alguns dos autores que encenou. Foi também tradutor de obras de autores como Pier Paolo Pasolini, Georg Büchner e Heiner Müller. E escreveu Deixar a Vida (2002), O Século Passado (2007) e A Mesa Está Posta (2019).
Em todas as frentes do seu trabalho, Jorge Silva Melo discutiu, pensou e reencenou as linguagens com que dizemos que vemos ou entendemos o mundo. A sua preciosa herança leva-nos a discutir os sobressaltos individuais da consciência e, nessa medida, também a dramática existência de uma possível consciência colectiva.

>>> 21-03-2019, Dia Mundial da Poesia: poema de Sofia de Mello Breyner Andresen lido por Jorge Silva Melo.
 

>>> Obituário no Diário de Notícias.

segunda-feira, março 14, 2022

William Hurt (1950 - 2022)

Actor de todas as subtilezas e todas as contradições do factor humano, "oscarizado" com O Beijo da Mulher Aranha (1985), o americano William Hurt faleceu no dia 13 de março, vitimado por cancro na próstata — completaria 72 anos no dia 20.
Actor de todas as subtilezas e todas as contradições do factor humano, "oscarizado" com O Beijo da Mulher Aranha (1985), o americano William Hurt faleceu no dia 13 de março, vitimado por cancro na próstata — completaria 72 anos no dia 20.
Disse ele uma vez: “O cinema não é uma arte inata, o teatro é. Se todos os filmes do mundo desaparecessem hoje, continuava a haver representação.” Talvez seja uma boa maneira de resumir a admirável pluralidade do seu trabalho, envolvendo personagens como o homossexual de O Beijo da Mulher Aranha (Hector Babenco, 1985), o escritor de guias de viagem de O Turista Acidental (1988) ou ainda o mestre pensador de A.I. - Inteligência Artificial (Steven Spielberg, 2001). Dito de outro modo: possuindo uma impecável formação teatral, Hurt foi um ser eminentemente cinematográfico, genial ao ponto de nos fazer sentir que as suas personagens, pelo menos nos grandes filmes em que participou, nasciam de um processo de construção em que o actor nunca era um “ilustrador”, antes um investigador disposto a arriscar a segurança da sua própria imagem.

>>> Genérico e cena de abertura de O Turista Acidental.


>>> Cena de A.I. - Inteligência Artificial, com Haley Joel Osment.


>>> Cena de Uma História de Violência (David Cronenberg, 2005), com Viggo Mortensen.


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

domingo, março 13, 2022

Ron Miles (1963 - 2022)

Lançado no outono de 2020, Rainbow Sign foi o seu primeiro álbum na etiqueta Blue Note. E também o último da notável discografia do trompetista, cornetista e compositor americano Ron Miles: faleceu no dia 8 de março, na sua casa de Denver, Colorado, vítima de um raro cancro no sangue — contava 58 anos.
Com uma sensibilidade jazzística indissociável de uma apurada formação clássica, publicou Distance for Safety em 1987, primeiro de um conjunto de 12 álbuns gravados em nome próprio; o seu nome surge também como colaborador de muitos outros registos, nomeadamente do quarteto de Bill Frisell. A sua música possui a variedade, e também a capacidade de invenção, de uma sensibilidade capaz de integrar a herança dos clássicos sem menosprezar, antes pelo contrário, a possibilidade de cruzamentos com os mais diversos domínios, incluindo a pop e o rock. Desde a década de 1990, deu aulas na Metropolitan State University of Denver, instituição em que veio a dirigir o programa de Estudos de Jazz.
Na ficha de Rainbow Sign encontramos alguns dos seus colaboradores mais frequentes: Bill Frisell (guitarra), Jason Moran (piano), Thomas Morgan (contrabaixo) e Brian Blade (bateria) — do respectivo alinhamento, aqui fica o tema The Rumor. Em baixo, podemos ver e escutar Ron Miles, com Joshua Redman (saxofone), Scott Colley (contrabaixo) e Brian Blade (bateria), na edição de 2017 do festival Jazz in Marciac, interpretando Unanimity, tema que viria a integrar o seu álbum Still Dreaming (Nonesuch, 2018).




>>> Obituário na JazzTimes.
>>> Concerto publicado pela NPR (20 março 2009), com Bill Frisell (guitarra), Reginald Veal (contrabaixo) e Matt Wilson (bateria).
 

Madonna: Frozen 2022

Foi há 24 anos que surgiu Frozen, primeiro single do álbum Ray of Light, devidamente celebrado por um teledisco com assinatura de Chris Cunningham. Agora, Madonna refaz a canção na companhia de Sickick, com remix de Fireboy DML — Ricardo Gomes realiza, com impecável rigor formal e amor pelos detalhes.
 

sexta-feira, março 11, 2022

A Zona russa

Stalker (1979)
— a deriva humana filmada por Andrei Tarkovsky

Os ecrãs que contemplamos não reproduzem o mundo: estão a criá-lo, momento a momento, uma imagem após outra imagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 fevereiro).

Na quinta-feira, dia 3, no espaço apresentado por Erin Burnett, a CNN difundia uma reportagem de Nic Robertson sobre o tratamento da situação na Ucrânia pela televisão estatal da Rússia. A guerra é aí apresentada como uma “ajuda humanitária” ao povo ucraniano, levando muitos cidadãos russos a acreditar que “a guerra foi-lhes imposta pela Ucrânia, com o apoio da NATO.”


O discurso nacionalista de Vladimir Putin, em particular na sua esquematização da história do século XX, ecoa em algumas breves entrevistas na rua. “Eu sei a verdade”, diz uma das entrevistadas: “Isto foi-nos imposto. Depois daquilo que a Rússia passou na Segunda Guerra Mundial, é uma loucura acreditar que queremos a guerra”. Há mesmo quem tenha ouvido dizer que “morreram algumas pessoas, até mesmo crianças”, embora acrescentando que não tem a certeza porque proliferam as “fake news” com o único objectivo de “ganhar dinheiro”.
Como contraponto, há quem reconheça que a invasão russa é “um crime, uma agressão contra um país vizinho”. E tudo desemboca no gélido testemunho de uma mulher jovem: “É horrível, mas o que é que podemos fazer? As pessoas normais percebem tudo, mas não podemos fazer nada”. Porquê? “Porque temos medo, como toda a gente.”
[ Selo russo, 2007 ]
Se nos lembrarmos que Nic Robertson está, de facto, em Moscovo a fazer reportagens como esta — ao mesmo tempo que o governo russo vai calando vários órgãos de informação independentes —, não podemos deixar de reconhecer o carácter surreal do mundo mediático em que vivemos. Na certeza de que o adjectivo “mediático” não passa de uma perturbante redundância — este é o nosso mundo: a chamada globalização (desde logo, na circulação da informação) não produz uma visão “unificada” seja do que for, antes multiplica os cenários de uma outra guerra (cognitiva e simbólica).
Quem sou eu? Afinal, qual é a minha identidade nacional? Por estes dias de infâmia e crime do governo da Rússia, estas são perguntas que não podem deixar de atravessar o espírito de muitos russos, mesmo quando sejam induzidas por aquilo que classificam como “fake news”. Dito de outro modo: a questão da terra — a que lugar pertenço? — é transversal a uma cultura multifacetada e fascinante que liga a prosa de Tolstoi ao cinema de Andrei Konchalovsky.
Em 1979, portanto ainda no tempo da URSS, uma década antes da Queda do Muro de Berlim, o cineasta Andrei Tarkovsky (1932-1986) terá criado uma das mais admiráveis narrativas sobre esse exílio interior que pode levar cada ser humano a questionar, de forma drástica, misto de crueldade e ternura, o lugar a que pertence. O filme chama-se Stalker (actualmente disponível na plataforma de streaming Filmin) e escusado será sublinhar que, para lá de todos os particularismos que nele possamos detectar, a sua vibração emocional possui uma intensa ressonância universal.


Há três personagens principais em Stalker: um guia (Alexander Kaidanovsky), um escritor (Anatoli Solonitsyn) e um professor (Nikolai Grinko). Viajam em direcção a um território isolado e inóspito que é conhecido como a Zona, assim mesmo, com maiúscula, como a Sibéria ou os Campos Elíseos. Que território é esse? “A Zona é um complexo labirinto de armadilhas. Assim que os humanos aparecem, tudo começa a mudar”. De tal modo que existe a crença de que, na Zona, “os desejos mais secretos se tornarão realidade.”
Quem conhece o filme de Tarkovsky, por certo uma das obras-primas absolutas da segunda metade do século XX, lembrar-se-á da sua tensão nunca resolvida (porque, justamente, é o seu carácter irresolúvel que está em cena): por um lado, o apelo da Zona envolve a possibilidade de uma transcendência imponderável, invisível e indizível, em que o ser humano e os seus desejos existiriam ligados de forma mágica, porventura divina; por outro lado, tudo no filme é eminentemente material, físico e táctil, como se o cinema nos fizesse sentir nas mãos aquilo que os olhos vão contemplando.
O escritor de Stalker procura inspiração para tratar as paixões dos humanos, o professor espera encontrar evidências científicas capazes de apaziguar o sofrimento desses mesmos humanos. São, afinal, peões de uma tragédia que o nosso século XXI não aquietou, acrescentando-lhe novos cenários — o mais recente chama-se Ucrânia.
Em boa verdade, os ecrãs que contemplamos não reproduzem o mundo: estão a criá-lo, momento a momento, uma imagem após outra imagem. Além do mais, como avisa o guia de Stalker, “a Zona quer ser respeitada; caso contrário, castiga-nos”. Porquê? “Porque o que está a acontecer aqui não depende da Zona, depende de nós.”

quinta-feira, março 10, 2022

"Duas formas de civilização" [citação]

>>> A agressão de Putin contra a Ucrânia não é apenas um assunto militar. É um confronto entre duas concepções da sociedade, duas visões do que faz a vida uma coisa boa e, no fundo, duas formas de civilização.
É do nosso futuro que se trata e da sorte reservada, neste século, às centenas de milhões de mulheres e homens que acreditam na democracia, não desistem da liberdade e querem a paz.

BERNARD-HENRI LÉVY, SEAN PENN, SALMAN RUSHDIE e STING
'O destino do mundo joga-se em Kiev'
Libération, 10 março 2022

quarta-feira, março 09, 2022

Son Lux + Mitski + David Byrne

Everything Everywhere All at Once / Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, comédia de ficção científica com assinatura de Dan Kwan e Daniel Scheinert, é um filme americano com estreia marcada para março/abril (7 de abril nas salas portuguesas). Para já, fiquemos com uma canção da banda sonora — intitula-se This Is A Life e resulta da colaboração de um trio de luxo: Son Lux, Mitski e David Byrne.

Bach / Leonidas Kavakos

Os seis solos para violino de Johann Sebastian Bach — 3 Sonatas + 3 Partitas, completadas em 1720 —, mágico tour de force para qualquer intérprete, surgem agora num registo do grego Leonidas Kavakos, com chancela da Sony: Sei Solo é um pequeno grande prodígio de interpretação, levando-nos a reencontrar uma paisagem musical em que a carnalidade das melodias nasce da geometria abstracta das composições (ou o contrário...). Eis o terceiro movimento, Gavotte en Rondeau, da Partita nº 3 — concerto realizado em Verbier, Suíça, no dia 23 de julho de 2018.

terça-feira, março 08, 2022

Da privacidade à obscenidade

Judd Hirsch e Timothy Hutton em Gente Vulgar (1980):
entre palavras e silêncios

Quando a dimensão privada é tratada como espectáculo público, está posta em causa a própria noção de comunidade; o que se passou, no plano mediático, com o caso do estudante que preparou um atentado para as instalações da Faculdade de Ciências de Lisboa justifica que paremos para reflectir— este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 fevereiro).

Revi recentemente Gente Vulgar, primeiro trabalho de Robert Redford como realizador, vencedor de quatro Oscars de 1980, incluindo melhor filme do ano. Nele se encena uma crise familiar cujo tríptico — pai, mãe e filho, personagens compostas, respectivamente, por Donald Sutherland, Mary Tyler Moore e Timothy Hutton — adquire uma espécie de ponto de fuga dramático na pessoa de um psiquiatra, interpretado por Judd Hirsch. Redford e Hutton ganharam Oscars, o primeiro de realização, o segundo como actor secundário, com Alvin Sargent a receber a estatueta dourada de melhor argumento adaptado (a partir de um romance de Judith Guest).
Esquematizando (e muito!), recordo que havia um filho mais velho, falecido num acidente. Depois da sua morte, o irmão sobrevivente tentou suicidar-se — as suas sessões com o psiquiatra surgem na sequência de tudo isso, funcionando como um cenário “alternativo” (entenda-se: privado) em que vão ecoar as relações dos pais com o filho e também, inevitavelmente, entre pai e mãe.
Evitemos a estupidez corrente (que tanto mal tem feito ao cinema americano, e não só) que obriga qualquer dispositivo dramático a funcionar como amostragem “edificante” de bons e maus comportamentos: Gente Vulgar não é sobre “a” família como abstração transparente e, por isso mesmo, não procura generalizações moralistas para acomodar as boas consciências — é um filme sobre “uma” família concreta, não generalizável.
Revi o filme por altura da proliferação de notícias sobre o estudante que planeou um atentado a ser perpetrado nas instalações da Faculdade de Ciências, em Lisboa [DN]. A acompanhar tais notícias, assisti a um fenómeno que não saberei definir de outro modo que não seja a “democratização” simplista (a meu ver, francamente inadequada) de muitas formas (psicológicas, psiquiátricas, etc.) de investigação, análise e diagnóstico dos comportamentos humanos.
O terreno é escorregadio, susceptível de atrair vários equívocos. Vivemos um tempo em que o ruído mediático — alimentado por alguns discursos jornalísticos que não pensam a sua responsabilidade social — é infinitamente mais poderoso do que qualquer princípio de reflexão serena e pensamento exigente. Gostaria que se entendesse que não estou a duvidar das competências, muito menos da honestidade, dos especialistas que acharam por bem pronunciar-se (publicamente) sobre a tragédia protagonizada por aquele estudante. Estou, isso sim, a perguntar-me o que faz com que a complexidade labiríntica de análise de um comportamento individual possa ser tratada e, sobretudo, instantaneamente partilhada como uma espécie de cálculo de probabilidades para uso mediático… E não sei responder.
Como qualquer cidadão, senti o assunto como muitíssimo perturbante. Mas não é essa a minha questão. Acontece que a fulanização “científica” do caso do jovem que tinha programado um atentado só pode contribuir para agravar uma doença infantil das nossas sociedades de hiper-vigilância mediática. A saber: a redução de todas as formas de privacidade a “coisas” que, mais cedo ou mais tarde, vão suscitar alguma vozearia tribal — como se a transformação da privacidade humana em espectáculo obsceno (veja-se o horror ontológico do Big Brother televisivo) fosse a nova lei das trocas sociais.
Escusado será dizer que não há qualquer paralelismo “temático” com Gente Vulgar. Também não é essa a questão. A subtil narrativa do filme permite-nos compreender, isso sim, que qualquer existência individual é uma filigrana de factos conhecidos e silêncios enigmáticos, porventura impenetráveis. Quando tal existência surge promovida a “vaudeville” da praça pública é o próprio factor humano que se torna descartável. Se o perfil psicológico de qualquer indivíduo — seja ele um potencial criminoso ou o mais neutro dos cidadãos — pode ser transformado em “objecto” público de suposições e especulações (neste caso, sem qualquer conhecimento directo, isto é, clínico do próprio indivíduo), isso significa que a concepção de comunidade passou a estar parasitada por noções grosseiras de “vigilância” e “purificação”.
Além do mais, um filme é um filme é um filme… não uma avalanche de “análises” que transformam a perturbação do desconhecido em alarido público. Seria salutar pensar tudo isso no plano cultural. Porquê? Porque a cultura não é uma mera agenda de eventos, mas sim o sistema de valores em que vivemos e morremos. Penso nas palavras de Louis Aragon (citado por Jean-Luc Godard): “Quando for necessário fechar o livro, será sem nada lamentar. Vi tanta gente viver tão mal e tanta gente morrer tão bem.” [video]

Uma imagem de São Petersburgo

"Não à guerra"
São Petersburgo, 27 fevereiro 2022

I. As imagens são uma forma de escrita, a escrita integra imagens que cita, atrai ou imagina.

II. Esta fotografia da autoria de Dmitri Lovetsky/AP está publicada no jornal Le Monde (7 março): a palavra de ordem contra a guerra apresenta-se através de uma contundência ambígua, convocando a interioridade imposta pela pandemia enredada com as palavras que, perante a ignomínia da guerra, se lançam para o exterior.

III. Falar através de um silêncio ensurdecedor, eis a questão — e também a sua indizível urgência.

segunda-feira, março 07, 2022

Spiritualized, Crazy

A boa notícia é: um novo álbum dos Spiritualized — chama-se Everything Was Beautiful. Eis um belo cartão de visita: Crazy, poderoso tema anti-guerra, em teledisco dirigido por Jason Spaceman, himself.