Jeff Daniels |
Newsroom é um dos acontecimentos maiores dos últimos anos da televisão americana. Aaron Sorkin, o seu criador, inventou um canal televisivo que espelha, não apenas o mundo da informação “instantânea”, mas também as contradições simbólicas da América dos nossos dias — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'A nostalgia utópica da América'.
[ 1 ] [ 2 ]
Talvez possamos definir Newsroom como uma abordagem do jornalismo televisivo que aposta em exponenciar uma contradição bem reveladora dos desafios que podem estar envolvidos no entendimento austero, intransigentemente crítico, do jornalismo televisivo e, em boa verdade, do trabalho jornalístico em geral: por um lado, a sala de redacção da ACN (sublinhemos o óbvio: “newsroom” = “sala de redacção”) vive contaminada pela aceleração característica de um tempo em que a informação “instantânea” passou a ser uma lei dominante do labor de qualquer prática informativa; por outro lado, a preservação dos valores clássicos dessa mesma informação passa por princípios cujo admirável primitivismo (por exemplo, o confronto de duas fontes para tentar fixar uma determinada informação e, a partir daí, construir uma notícia) importa reconhecer e reafirmar.
No sétimo episódio de Newsroom, dirigido por Joshua Marston, encena-se mesmo uma situação limite em torno da revelação de que Osama bin Laden terá sido morto por forças especiais do exército americano. A informação chega à redacção da ACN proveniente de uma fonte anónima, sendo o episódio menos sobre o conteúdo da notícia e mais sobre a discussão que se gera em torno da pertinência e da legitimidade da sua difusão. A estratégia narrativa da série passa sempre, aliás, por dispositivos desse teor: são dramas vividos por personagens de ficção a partir de eventos muito concretos da história recente dos EUA (cada episódio inclui mesmo informação específica sobre a data desses eventos).
Newsroom mostra que é possível lidar com as matérias noticiosas muito para além desse misto de ansiedade e “velocidade” que tende a dominar o tratamento da actualidade. No limite, Sorkin sabe mostrar-nos que nenhum acontecimento é um dado bruto à espera de ser “transcrito”: a sua “transcrição” corresponde a uma forma de narrativa, sendo a narrativa um complexo sistema de linguagens que, necessariamente, envolve os pensamentos e sensibilidades dos seus produtores.
E não deixa de ser curioso referir que, desde o primeiro episódio, a série tenha adoptado um sistema “single-camera” de rodagem. Que é como quem diz: em vez de usar várias câmaras dispostas de acordo com as regras mais frequentes da televisão (por exemplo, nas “sitcoms”), Newsroom é registado com uma única câmara. Na prática, a alternância de duas personagens num determinado diálogo obriga a dois tempos sucessivos de filmagem, primeiro com um actor, depois com o outro. Ou ainda: apesar de estarmos perante um objecto eminentemente televisivo, os métodos de rodagem provêm dos modelos mais clássicos do... cinema!
Tudo isto encontra o seu admirável ponto de fuga na personagem nuclear de Will McAvoy (Jeff Daniels), o emblemático pivot da ACN. Ele emerge como símbolo exemplar, “fora de moda”, do espírito liberal da informação. De acordo com a tradição mais forte de Hollywood, a exigência de permanente questionamento dos discursos políticos (e do comportamento dos políticos) faz dele uma variação exemplar sobre o modelo do democrata que, seja qual for a cor partidária do Presidente em exercício, não abdica de manter um permanente alerta em relação aos labirintos nem sempre muito transparentes do poder. Ora, não é a menor das maravilhas conceptuais de Newsroom que Sorkin faça de McAvoy um simpatizante do... Partido Republicano. Mais do que isso: a sua fidelidade (cansada, mas genuína) ao mais tradicional ideário republicano confere-lhe o valor simbólico de um trânsfuga do “American Dream”, ferido pelas atribulações e angústias típicas de um destino profissional (social e conjugal) vivido numa grande metrópole do século XXI.
Semelhante caracterização surge como um claro contraponto à vaga direitista (“Tea Party”) que tem abalado os republicanos, procurando devolvê-los a um entendimento primário, próximo de um moralismo fundamentalista, da própria identidade americana. Em todo o caso, McAvoy representa algo mais do que um cidadão/eleitor descontente com os ziguezagues do seu partido. Sorkin caracteriza-o como alguém que conserva a nostalgia utópica de uma América que não abdica de viver a democracia como uma permanente e obstinada interrogação dos seus valores e respectivas formas de acção e concretização.
Em tempos de tantos e tão quotidianos discursos niilistas (inclusive na representação das relações humanas através da publicidade), Newsroom consegue a proeza de relançar um discurso sobre a informação televisiva cuja contundência crítica não exclui, antes reforça, as marcas de uma genuína paixão pelos valores mais radicais da coabitação democrática. Aí reside, afinal, a energia primordial do olhar liberal made in USA: não escamotear os desequilíbrios internos da sua democracia, renovando os sinais de um profundo amor pela América.