sexta-feira, março 11, 2022

A Zona russa

Stalker (1979)
— a deriva humana filmada por Andrei Tarkovsky

Os ecrãs que contemplamos não reproduzem o mundo: estão a criá-lo, momento a momento, uma imagem após outra imagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 fevereiro).

Na quinta-feira, dia 3, no espaço apresentado por Erin Burnett, a CNN difundia uma reportagem de Nic Robertson sobre o tratamento da situação na Ucrânia pela televisão estatal da Rússia. A guerra é aí apresentada como uma “ajuda humanitária” ao povo ucraniano, levando muitos cidadãos russos a acreditar que “a guerra foi-lhes imposta pela Ucrânia, com o apoio da NATO.”


O discurso nacionalista de Vladimir Putin, em particular na sua esquematização da história do século XX, ecoa em algumas breves entrevistas na rua. “Eu sei a verdade”, diz uma das entrevistadas: “Isto foi-nos imposto. Depois daquilo que a Rússia passou na Segunda Guerra Mundial, é uma loucura acreditar que queremos a guerra”. Há mesmo quem tenha ouvido dizer que “morreram algumas pessoas, até mesmo crianças”, embora acrescentando que não tem a certeza porque proliferam as “fake news” com o único objectivo de “ganhar dinheiro”.
Como contraponto, há quem reconheça que a invasão russa é “um crime, uma agressão contra um país vizinho”. E tudo desemboca no gélido testemunho de uma mulher jovem: “É horrível, mas o que é que podemos fazer? As pessoas normais percebem tudo, mas não podemos fazer nada”. Porquê? “Porque temos medo, como toda a gente.”
[ Selo russo, 2007 ]
Se nos lembrarmos que Nic Robertson está, de facto, em Moscovo a fazer reportagens como esta — ao mesmo tempo que o governo russo vai calando vários órgãos de informação independentes —, não podemos deixar de reconhecer o carácter surreal do mundo mediático em que vivemos. Na certeza de que o adjectivo “mediático” não passa de uma perturbante redundância — este é o nosso mundo: a chamada globalização (desde logo, na circulação da informação) não produz uma visão “unificada” seja do que for, antes multiplica os cenários de uma outra guerra (cognitiva e simbólica).
Quem sou eu? Afinal, qual é a minha identidade nacional? Por estes dias de infâmia e crime do governo da Rússia, estas são perguntas que não podem deixar de atravessar o espírito de muitos russos, mesmo quando sejam induzidas por aquilo que classificam como “fake news”. Dito de outro modo: a questão da terra — a que lugar pertenço? — é transversal a uma cultura multifacetada e fascinante que liga a prosa de Tolstoi ao cinema de Andrei Konchalovsky.
Em 1979, portanto ainda no tempo da URSS, uma década antes da Queda do Muro de Berlim, o cineasta Andrei Tarkovsky (1932-1986) terá criado uma das mais admiráveis narrativas sobre esse exílio interior que pode levar cada ser humano a questionar, de forma drástica, misto de crueldade e ternura, o lugar a que pertence. O filme chama-se Stalker (actualmente disponível na plataforma de streaming Filmin) e escusado será sublinhar que, para lá de todos os particularismos que nele possamos detectar, a sua vibração emocional possui uma intensa ressonância universal.


Há três personagens principais em Stalker: um guia (Alexander Kaidanovsky), um escritor (Anatoli Solonitsyn) e um professor (Nikolai Grinko). Viajam em direcção a um território isolado e inóspito que é conhecido como a Zona, assim mesmo, com maiúscula, como a Sibéria ou os Campos Elíseos. Que território é esse? “A Zona é um complexo labirinto de armadilhas. Assim que os humanos aparecem, tudo começa a mudar”. De tal modo que existe a crença de que, na Zona, “os desejos mais secretos se tornarão realidade.”
Quem conhece o filme de Tarkovsky, por certo uma das obras-primas absolutas da segunda metade do século XX, lembrar-se-á da sua tensão nunca resolvida (porque, justamente, é o seu carácter irresolúvel que está em cena): por um lado, o apelo da Zona envolve a possibilidade de uma transcendência imponderável, invisível e indizível, em que o ser humano e os seus desejos existiriam ligados de forma mágica, porventura divina; por outro lado, tudo no filme é eminentemente material, físico e táctil, como se o cinema nos fizesse sentir nas mãos aquilo que os olhos vão contemplando.
O escritor de Stalker procura inspiração para tratar as paixões dos humanos, o professor espera encontrar evidências científicas capazes de apaziguar o sofrimento desses mesmos humanos. São, afinal, peões de uma tragédia que o nosso século XXI não aquietou, acrescentando-lhe novos cenários — o mais recente chama-se Ucrânia.
Em boa verdade, os ecrãs que contemplamos não reproduzem o mundo: estão a criá-lo, momento a momento, uma imagem após outra imagem. Além do mais, como avisa o guia de Stalker, “a Zona quer ser respeitada; caso contrário, castiga-nos”. Porquê? “Porque o que está a acontecer aqui não depende da Zona, depende de nós.”