Regresso a A Aparência das Coisas, traduzido por José Miguel Silva, um dos livros de John Berger (1926-2017) disponíveis no mercado português com chancela da Antígona.
Desde logo porque a sua condição de "Ensaios e artigos seleccionados" lhe confere a vivacidade de um textura de diferenças e contrastes que, afinal, em última instância, definem a singular energia — e alegria — de um singularíssimo sistema de pensamento.
Depois, porque há em tudo isso uma teatralidade a que apetece chamar realista, já que as suas deambulações querem afirmar e, de alguma maneira, servir uma exigência, de uma só vez epistemológica e ética. A saber: não desistir de olhar o mundo, vendo o que pode ser visto — será preciso recordar que o livro mais famoso de Berger se intitula Modos de Ver?
Num dos "Retratos" que o livro inclui, dedicado a Alexander Herzen, Berger aventura-se no labirinto da herança marxista, sublinhando a sua actualidade, não propriamente como um património congelado no tempo por acção de uma qualquer ideologia partidária (ou por uma partidarite que alienou a própria noção de discurso ideológico), antes reconhecendo a sua operacionalidade prática e teórica. Assim:
>>> Muitos marxistas e antimarxistas têm-se mostrado tão ansiosos por provar ou refutar a letra das profecias de Marx que ignoraram um dos modos em que ele foi mais profunda e incontestavelmente profético. O modo de descontinuidade demonstrado pelo seu pensamento converteu-se num elemento essencial dos meios de comunicação modernos. A descontinuidade é hoje intrínseca à nossa visão da realidade.
Le Corbusier, Victor Serge ou Walter Benjamin são alguns dos outros "retratados" por Berger, num livro em que encontramos reflexões que podem oscilar entre a ligeireza ambígua da reportagem e a metodologia austera do ensaio — a ponto de estar em jogo o carácter de uma só vez contundente e precário de qualquer noção de tempo. Há mesmo um ensaio que se intitula "O passado visto de um futuro possível".
>>> About time (Channel Four, 1985).