terça-feira, março 08, 2022

Da privacidade à obscenidade

Judd Hirsch e Timothy Hutton em Gente Vulgar (1980):
entre palavras e silêncios

Quando a dimensão privada é tratada como espectáculo público, está posta em causa a própria noção de comunidade; o que se passou, no plano mediático, com o caso do estudante que preparou um atentado para as instalações da Faculdade de Ciências de Lisboa justifica que paremos para reflectir— este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 fevereiro).

Revi recentemente Gente Vulgar, primeiro trabalho de Robert Redford como realizador, vencedor de quatro Oscars de 1980, incluindo melhor filme do ano. Nele se encena uma crise familiar cujo tríptico — pai, mãe e filho, personagens compostas, respectivamente, por Donald Sutherland, Mary Tyler Moore e Timothy Hutton — adquire uma espécie de ponto de fuga dramático na pessoa de um psiquiatra, interpretado por Judd Hirsch. Redford e Hutton ganharam Oscars, o primeiro de realização, o segundo como actor secundário, com Alvin Sargent a receber a estatueta dourada de melhor argumento adaptado (a partir de um romance de Judith Guest).
Esquematizando (e muito!), recordo que havia um filho mais velho, falecido num acidente. Depois da sua morte, o irmão sobrevivente tentou suicidar-se — as suas sessões com o psiquiatra surgem na sequência de tudo isso, funcionando como um cenário “alternativo” (entenda-se: privado) em que vão ecoar as relações dos pais com o filho e também, inevitavelmente, entre pai e mãe.
Evitemos a estupidez corrente (que tanto mal tem feito ao cinema americano, e não só) que obriga qualquer dispositivo dramático a funcionar como amostragem “edificante” de bons e maus comportamentos: Gente Vulgar não é sobre “a” família como abstração transparente e, por isso mesmo, não procura generalizações moralistas para acomodar as boas consciências — é um filme sobre “uma” família concreta, não generalizável.
Revi o filme por altura da proliferação de notícias sobre o estudante que planeou um atentado a ser perpetrado nas instalações da Faculdade de Ciências, em Lisboa [DN]. A acompanhar tais notícias, assisti a um fenómeno que não saberei definir de outro modo que não seja a “democratização” simplista (a meu ver, francamente inadequada) de muitas formas (psicológicas, psiquiátricas, etc.) de investigação, análise e diagnóstico dos comportamentos humanos.
O terreno é escorregadio, susceptível de atrair vários equívocos. Vivemos um tempo em que o ruído mediático — alimentado por alguns discursos jornalísticos que não pensam a sua responsabilidade social — é infinitamente mais poderoso do que qualquer princípio de reflexão serena e pensamento exigente. Gostaria que se entendesse que não estou a duvidar das competências, muito menos da honestidade, dos especialistas que acharam por bem pronunciar-se (publicamente) sobre a tragédia protagonizada por aquele estudante. Estou, isso sim, a perguntar-me o que faz com que a complexidade labiríntica de análise de um comportamento individual possa ser tratada e, sobretudo, instantaneamente partilhada como uma espécie de cálculo de probabilidades para uso mediático… E não sei responder.
Como qualquer cidadão, senti o assunto como muitíssimo perturbante. Mas não é essa a minha questão. Acontece que a fulanização “científica” do caso do jovem que tinha programado um atentado só pode contribuir para agravar uma doença infantil das nossas sociedades de hiper-vigilância mediática. A saber: a redução de todas as formas de privacidade a “coisas” que, mais cedo ou mais tarde, vão suscitar alguma vozearia tribal — como se a transformação da privacidade humana em espectáculo obsceno (veja-se o horror ontológico do Big Brother televisivo) fosse a nova lei das trocas sociais.
Escusado será dizer que não há qualquer paralelismo “temático” com Gente Vulgar. Também não é essa a questão. A subtil narrativa do filme permite-nos compreender, isso sim, que qualquer existência individual é uma filigrana de factos conhecidos e silêncios enigmáticos, porventura impenetráveis. Quando tal existência surge promovida a “vaudeville” da praça pública é o próprio factor humano que se torna descartável. Se o perfil psicológico de qualquer indivíduo — seja ele um potencial criminoso ou o mais neutro dos cidadãos — pode ser transformado em “objecto” público de suposições e especulações (neste caso, sem qualquer conhecimento directo, isto é, clínico do próprio indivíduo), isso significa que a concepção de comunidade passou a estar parasitada por noções grosseiras de “vigilância” e “purificação”.
Além do mais, um filme é um filme é um filme… não uma avalanche de “análises” que transformam a perturbação do desconhecido em alarido público. Seria salutar pensar tudo isso no plano cultural. Porquê? Porque a cultura não é uma mera agenda de eventos, mas sim o sistema de valores em que vivemos e morremos. Penso nas palavras de Louis Aragon (citado por Jean-Luc Godard): “Quando for necessário fechar o livro, será sem nada lamentar. Vi tanta gente viver tão mal e tanta gente morrer tão bem.” [video]